Quarentenas? A ficção científica tem algumas, talvez até mais interessantes do que A Peste do grande Albert Camus.
Vou pegar um exemplo apenas, um romance de um dos meus
escritores preferidos de FC hard, Greg
Egan. Quarantine
(1999) foi o seu primeiro romance, depois de vários contos surgidos nas
principais revistas de FC.
O enredo de Quarantine
começa de maneira simples.
Nick Stavrianos é uma espécie de detetive particular, no
ano de 2067, em Perth, na Austrália (a cidade onde vive o autor). Ser detetive
nessa época é uma atividade interessante, porque o desenvolvimento da
nanotecnologia criou implementos chamados de mods, que são implantados no cérebro e funcionam mais ou menos como
o que hoje chamamos de apps –
aplicativos que executam funções específicas.
Isso possibilita a Nick ativar, apenas pela vontade,
qualquer um desses aplicativos, como por exemplo o “... CypherClerk (Neuro Comm, $ 5.999)” que atende chamadas telefônicas,
projetando-as diretamente no cérebro. Combinado com o “... The Night Switchboard (Axon, $ 17.999)”, espécie de secretária
eletrônica que atende durante o sono, ele nem sequer precisa “escutar” o que
diz o interlocutor do outro lado: ele já acorda sabendo do que se trata.
E assim Nick desperta, na primeira página, para
investigar o desaparecimento misterioso de Laura Andrews, trinta e dois anos,
paciente de uma clínica de reabilitação. Laura nasceu com uma grave deficiência
cerebral e tem a capacidade mental de uma criança de seis meses. A família a
internou ali para ser cuidada, e ela viveu a vida inteira numa pequena cela,
sendo alimentada, medicada, etc., como qualquer paciente semi-inválido, de
família rica.
Só que Laura desapareceu dias atrás dessa cela
hermeticamente fechada, vigiada 24 horas por câmeras e enfermeiros. Todo mundo
está perplexo. E lá vai Nick Stavrianos, ajudado pelos seus mods, investigar o caso.
Um desses mods,
curiosamente, é um aplicativo que produz no cérebro de Nick a sensação da
presença de sua esposa Karen, que morreu tragicamente. Quando o mod está ativado, ele vê “Karen” ao seu
lado, conversa com ela, consegue tocá-la. “Karen” se manifesta de modo
autônomo, recorrendo ao banco-de-dados das lembranças dele, mas usando
algoritmos próprios, de modo que na “companhia” dessa projeção mental ele se
sente como se a mulher estivessse viva ao seu lado.
E a quarentena?
Bem, todo esse enredo iniciado acima ocorre no contexto
de um fenômeno cosmológico espantoso, chamado A Bolha. No dia 15 de novembro de
2034 (portanto, trinta e três anos antes da ação do livro) o nosso sistema solar foi,
em questão de minutos, envolvido por uma gigantesca bolha de escuridão, como
uma esfera opaca, apagando todas as estrelas do céu. A Terra foi trancada numa
quarentena cósmica. Por quê? Por quem? Ninguém sabe.
Aconteceu e ficou por isso mesmo, com as previsíveis
consequências: pânico, destruição, crise universal da ciência, proliferação
desordenada de seitas místicas e de profetas do apocalipse. Durante vários
anos, o caos. Depois, a poeira foi baixando. Todo mundo precisava comer, viver,
trabalhar. A materialidade de vida cotidiana se impôs. E em última análise, o
Sol, a Lua e todos os planetas continuavam se movendo como sempre – só as
estrelas (todas as estrelas) tinham sumido. E Nick filosofa:
Quanto às estrelas... nunca tinham sido nossas, de modo que não as
perdemos. Na verdade, perdemos somente a ilusão de que elas estavam próximas.
Uma das seitas religiosas mais atuantes nesse mundo
futuro é a das Crianças do Abismo, formada apenas por pessoas nascidas após o
aparecimento da Bolha. (Lembra um pouco o tema de Midnight Children, de Salman Rushdie, o romance sobre as crianças
nascidas exatamente na virada do Dia da Independência da Índia.) A seita tem
propósitos nebulosos, que não excluem o assassinato em massa.
Seguindo uma pista possível do desaparecimento de Laura
(como é possível uma pessoa comum, tida inclusive como retardada mental, desaparecer de um quarto trancado e vigiado?), Nick vai parar em New Hong Kong,
uma região da Austrália que hospedou a migração em massa de habitantes de Hong
Kong, após uma violenta crise desta com a China, a partir de 2029.
E é lá que Nick está expandindo suas investigações,
acompanhado por “Karen”, o cyberghost de sua mulher, quando eles param numa
tenda num mercado ao ar livre. Uma moça está redigindo horóscopos por um preço
módico. “Karen” sugere a Nick que encomende um. Ele ri e diz que nenhum deles
dois acredita naquilo, e além do mais...
– Horóscopo, quando nem existem mais estrelas?!
Ela insiste. Ele
diz à moça:
– 10 de abril.
– Não é o meu horóscopo, idiota. O de Laura.
Ele pede o horóscopo para o dia 3 de agosto de 2035, dia
do nascimento da mulher desaparecida. Lê as previsões, que são banais, e volta
para o hotel. Mas aquilo não sai de sua cabeça. Ele sabe que “Karen” é apenas
um algoritmo que mexe em suas lembranças inconscientes – e está querendo lhe
dizer alguma coisa.
Ele lembra que, no prontuário médico de Laura, na
clínica, ele soube que o nascimento dela foi levemente prematuro. Gestação de
trinta e cinco ou trinta e oito semanas, mais ou menos. Portanto... O momento
da concepção de Laura teria sido num
período de uma semana em torno do dia 15 de novembro de 2034. O Dia da Bolha.
E ele pensa: "Bem, que importância tem para mim o fato de
que Laura pode ter sido concebida no momento exato em que a Bolha cercou o Sistema
Solar?"
E pensa em seguida: “Para mim, não. Mas para a Seita das Crianças do
Abismo, pode ter uma importância enorme”.
Acreditem: não estou dando spoiler nenhum. O resumo acima se refere às primeiras 50 páginas de Quarantine, que tem 280. Nick Stavrianos avança muito mais em suas investigações, por entre perseguições, fugas, sequestros, lavagens cerebrais, violências individuais e coletivas.
O segredo que envolve A Bolha e o desaparecimento de
Laura tem a ver com o modo como a mente humana faz “colapsar” um conjunto de
futuros possíveis num único presente concreto. O exemplo clássico disto é o
famoso “Gato de Schrodinger” – o gato que pode estar vivo ou morto até o
momento em que o cientista abre a caixa onde ele está trancado. A mente humana tem
o poder de destruir universos no instante mesmo em que toma uma decisão,
optando por apenas um deles.
Quarantine é uma
história de aventuras, um thriller tecnológico e uma meditação cosmológica
sobre os perigos da existência humana. E se a nossa espécie fosse um risco não
apenas para o planeta Terra, mas para o Universo inteiro?
Greg Egan é um personagem meio low profile na FC. Já ganhou inúmeros prêmios, publicou cerca de 20 livros, eu acompanho sua carreira há mais de duas décadas, e nunca vi uma foto dele. Consta que mora em Perth (Austrália) e trabalha com informática.
Egan é um desses escritores obsessivos, que pegam uma idéia e a examinam por todos os lados, avaliam todas as consequências possíveis, as dúvidas, as objeções de alguém, respondem a essas objeções... e escrevem essa idéia num parágrafo de oito ou dez linhas, numa prosa clara e direta, condensando ali informações que dão o que pensar por uma hora inteira.
Já publiquei dois contos dele em minhas antologias, aqui no Brasil: “Mais perto” (“Closer”, trad. BT), em Contos Fantásticos de Amor e Sexo (Rio: Ímã Editorial, 2011) e “A Carícia” (“The Caress”, trad. Fábio Fernandes) em Detetives do Sobrenatural (Rio: Casa da Palavra, 2014).
http://www.gregegan.net/QUARANTINE/Quarantine.html