“Esculpir o tempo” é o título de um livro do cineasta
Andrei Tarkovsky, um livro onde se misturam memórias pessoais, reflexões sobre
a arte, episódios da carreira profissional, etc. Um livro bonito, e útil para quem gosta do
tipo de cinema feito pelo diretor russo – eu, por exemplo.
Sempre que digo que gosto de Tarkovsky, as pessoas me
dizem que não simpatizam muito com o cinema dele – um cinema “lento, arrastado,
sem diálogos, sem ação, filmes onde nada acontece”. E um ou outro se sai com:
“Eu gosto do outro tipo de cinema: Spielberg, Tarantino, Woody Allen.” Isso
sempre me diverte, porque eu gosto de todos estes... e consigo gostar de
Tarkovsky. É como se eu dissesse que gosto de sushi, e a pessoa respondesse:
“Eu detesto sushi, gosto mesmo é carne-de-sol.”
Eu acho que sou um excentricão, um agnóstico sem devoções
setorizadas. Eu gosto de sushi e de carne-de-sol.
Um dos cineastas tarkovskyanos do cinema atual é o
húngaro Béla Tarr, famoso por seus planos de oito ou dez minutos “onde nada
acontece”. Que é, como sempre, um engano.
A sequência inicial de O Homem de Londres (2007, baseado num romance de Georges Simenon)
mostra como um vigia num cais do porto percebe uma movimentação estranha entre
indivíduos num barco, depois no cais... Percebe como um crime é cometido; e
como uma maleta que provavelmente contém algo valioso esteve a ponto de se
perder – mas ele vai lá e a recolhe.
Tudo acontece de madrugada, sem ninguém ver. É uma cena
longuíssima, que parece cinema mudo. Ele nos obriga a ver o que o vigia está
vendo, deduzir o que ele está pensando, e entender o motivo de suas ações
subsequentes.
A ação física no interior desses planos é mínima, ou uma
só com mínimas variações, mas existe uma ação interior que não é visível, é
projetada pelo espectador.
Lembra a famosa cena do Blow-Up (1966) de Antonioni, em que o fotógrafo passa uns dez
minutos de filme revelando e ampliando as fotos que tirou de tarde, pendurando
na parede, examinando com uma lupa... até descobrir que um crime foi cometido.
Ele não diz uma palavra. Cabe a nós perceber o que ele está pensando.
Filmes assim me fazem pensar às vezes numa expressão que
existe em inglês. Quando se quer dizer que os exemplos ou os casos de alguma
coisa são raros, diz-se: “few and far between”. “My visits to my parents are few and far between” = minha visitas
aos meus pais são poucas, e “com muito espaço entre elas”.
É o que se dá com os momentos de ação intensa em filmes
muito “parados” como Stalker de
Andrei Tarkovsky, ou os filmes de Béla Tarr.
Os momentos de ação que há nesses filmes não teriam o
mesmo peso se fossem numerosos, ou muito próximos uns dos outros. A distância entre
eles é importante. É como uma constelação que vemos no céu noturno, seja Órion,
a Ursa Maior ou o Cruzeiro do Sul. A constelação não é formada apenas pelas
estrelas, mas também pela posição relativa delas entre si, pela distância
relativa (do nosso ponto de vista) entre elas.
(Béla Tarr, em Um
filme de cinema)
Num depoimento ao documentário de Walter Carvalho Um Filme de Cinema, Béla Tarr diz que
desdenha o modo habitual de montagem do cinema: “ação, corte; ação, corte;
ação, corte”. Para ele, os filmes em geral procuram excluir a presença do
tempo, e se concentram apenas no ato de contar a história.
Parece um contra-senso, pois uma história é justamente
uma sucessão de eventos no tempo. Mas Tarr está dizendo que (como na comparação
acima, da constelação) o tempo não consiste apenas na sequência dos eventos, mas nos espaços
vazios entre eles.
Que na verdade não são tão vazios assim. Como dizia
Guimarães Rosa, quando não acontece nada, há um milagre que não enxergamos. Alguma
coisa acontece, o tempo inteiro. Do ponto de vista da Natureza, o fato de um
vulcão estar em plena erupção equivale ao fato de o sangue no corpo de um
coelho estar circulando. Um deles não é maior ou mais importante do que o
outro, porque a Natureza na verdade não tem “ponto de vista”, ela é apenas uma
superposição e justaposição de fenômenos independentes entre si, e que às vezes
se relacionam.
Ou, como dizia Mário Quintana, referindo-se ao espaço, em
vez do tempo:
O homem acha o Cosmos infinitamente grande
e o micróbio infinitamente pequeno.
E ele, naturalmente,
julga-se do tamanho natural...
Mas, para Deus, é diferente:
cada ser, para Ele, é um universo próprio.
E, a Seus olhos, o bacilo de Koch,
a estrela Sírius e o Prefeito de Três Vassouras
são todos infinitamente do mesmo tamanho...
(em Velório sem Defunto, 1990)
O cinema pode nos fazer comparar uma hora, um minuto e um
segundo. Raramente faz isso. A preocupação maior é contar a história e evitar
que o público boceje. (E, mais modernamente, evitar que pegue o controle remoto
e mude de canal.)
No filme de Ingmar Bergman A Hora do Lobo há uma cena em que durante uma madrugada de insônia
o personagem de Max von Sydow comenta o quanto um minuto é longo. Pega o
relógio, fica olhando para ele, ouvimos o tique-taque do relógio de parede e
sentimos o minuto inteiro escorrendo diante dos nossos olhos.
O filme está aqui, e a cena começa por volta do minuto
12:05. https://www.youtube.com/watch?v=AZD99vmgdmA
É preciso uma certa arte para dar ao público o poder de sentir o transcorrer de alguns segundos
ou minutos, porque o cinema existe justamente para abarrotar esses segundos e
minutos de acontecimentos que nos façam esquecer a passagem do tempo. Não é
este o comentário feliz que ouvimos depois de um filme bom? “Gente, nem senti o
tempo passar!”
O cinema serve para isso, sim; mas não só para isso.