domingo, 29 de abril de 2018

4342) Dez álbuns: 4 - Jackson do Pandeiro (29.4.2018)




Vou dar continuidade ao desafio que me foi feito via Facebook por Toinho Castro e Mario Bag: postar dez discos que a gente ouviu até a agulha furar o vinil, e continua ouvindo até hoje.

O desafio inicial era falar de um álbum por vez. Como quem manda sou eu, baixo uma Medida Provisória e afirmo que estas três coletâneas de Jackson do Pandeiro formam um único disco. Se me apontarem um revólver à cabeça para eu dizer em qual dos três fica uma música qualquer, podem apertar o gatilho: não sei. Para mim, constituem uma totalidade inconsútil, um continuum.

E eles guardam a nata, o filé, a flor do coco da obra do mestre Jack, mesmo sabendo que ele tem outros álbuns sensacionais e jóias espalhadas por toda a sua discografia. Mas estes três discos não são álbuns no sentido de “obra inteira”: são coletâneas, empacotamento conjunto de sucessos que em sua época saíram de 2 em 2, na forma de discos de 78 rotações.

Se alguém me pagasse eu escreveria um livro inteiro sobre este repertório, mas como é de graça vou fazer como os vendedores de amendoim-torrado da Cinelândia: deixo uma derramadinha grátis e sigo em frente.

Ouvindo faixa por faixa, uma atrás da outra, a gente percebe a variedade de ritmos e de levadas que Jackson malabarizava em seus discos.

Veja-se por exemplo a cadência implacável das percussões conjuntas de “Casaca de Couro” (Rui de Morais e Silva), sem perder um microssegundo de compasso, ajudada pelo canto staccato do coro (tão preciso e marcante quanto o de “Na base da chinela”), justificando plenamente o grito de “ô serviço!” do cantor. Sem falar nas rasgadas lamentosas do clarinete, assinatura eterna desta faixa.

Não é só marcação pesada, é a sutileza. “Tem mulher, tô lá” é um xotezinho divertido, mas seu carimbo é a suspirada da sanfona depois do “tem mulher...”.

“Peneirou Gavião” tem esse paralelo visual (a famosa fanopéia) entre o movimento do gavião planando (peneirando) no ar e o movimento da peneira com a massa da mandioca. E tem um verso de pé-quebrado (faltando uma sílaba), “Filozinha gritou”, que o cantor encaixa magistralmente no ritmo sem deixar traço.

Acho que já se escreveu muito sobre “Cantiga do Sapo”, com seu “Tião – Ôi...”.

Quem já morou perto das lavanderias do Alto Branco já ouviu de longe esse coro dos sapos à noite, um perguntando, outro respondendo, coro que foi glosado por Manuel Bandeira ao satirizar a cena literária carioca (“Os sapos”, em Carnaval), e que Moacir Laurentino imortalizou numa sextilha:

Acho bonito o sertão
quando o chão está molhado:
um sapo faz “ôi” daqui,
outro “ôi” do outro lado,
parecem dois violeiros
cantando um mourão voltado.

E um “diálogo” também imitado no refrão entre o coro masculino e o feminino, e depois nos floreados do clarinete e da sanfona.

Acho que uma das primeiras músicas de Jackson que vieram catalogadas como “samba” foi “Falsa Patroa”, uma música de malandragem digna de Moreira da Silva:

Doutor delegado, eu não tive culpa,
foi a sua criada que me convidou,
doutor, dizendo que o apartamento era dela
me pegou pelo braço para jantar com ela...
O senhor compreende, viu doutor?
A cabrocha é boa... Eu fiquei iludido
até pensando que ela fosse a patroa.

Olha só a distância psicossocial que existe entre músicas rurais e ingênuas como “Moxotó” e uma música como esta, tipicamente de Copacabana ou Botafogo nos anos 1950, com seu exército invisível de empregadas domésticas descolando um PF para um paraíba amigo, na ausência dos donos da casa. Seu lado B deveria ser o “Xote de Copacabana”, que já cantei mil vezes em mesa de bar: “Eu vou voltar, eu não aguento, o Rio de Janeiro não me sai do pensamento”.

Sem falar que nesta faixa aparece por duas vezes uma marca registrada de Jackson: o tratamento “nego véi”, com que ele se dirigia a todo mundo.

Ainda na coletânea O Rei do Ritmo tem pelo menos três faixas com uma coisa curiosa na música nordestina de então: a canção de briga, que seria um equivalente ao funk proibidão ou gangsta rap de hoje em dia. A música que fala de sururu, briga, quebra-pau entre bêbados ou entre eles e a polícia.

“Forró em Caruaru” (Zedantas): “Matemo dois soldado, quatro cabo e um sargento; compadre Mané Bento, só faltava tu!”

“Cabo Tenório” (Rosil Cavalcanti): “Os caba de lá quiseram lhe bater, e ele gritou: Vixe! Vai ter confusão. Balançou a mão, deu murro e bofete, tomou canivete, peixeira e facão...”

“O crime não compensa” (Genival Macedo / Eleno Clemente): “Antigamente eu só andava bem armado, uma peixeira, um revólver e um punhá, tinha uma foice bem vazada dos dois lados, o maior prazer da minha vida era matar”.

Essas músicas passariam hoje nas censuras? Tanto a censura do policialmente errado quanto a censura do politicamente correto? Cartas para a redação. Sociologicamente, elas são reflexo de um tumulto social permanente entre polícia, gente pobre querendo se divertir e gente perturbada querendo perturbar. Canções são acusadas de “fazer apologia” da violência, mas eu vejo tais canções como crônica, jornalismo, documento, retrato da vida real de quem canta e de quem ouve.

E nem vamos nos espalhar no resto do repertório jacksoniano, com “Forró do Surubim”, “A Lei da Compensação”, “Forró em Limoeiro”, “Pacífico Pacato”  e tantas mais.

Essa é a única realidade do forró? De jeito nenhum. Violência tem no rock, tem no samba. Briga em salão tem nos Clubes que reúnem a fina-flor da nossa sociedade, quando um grupo de playboys resolve tomar as dores do filho de Doutor Fulano cuja noiva foi desacatada por alguém. (Eu já vi muita mesa e muito litro de uísque voando pelo ar, nas tertúlias dos nossos sodalícios.)

Saindo dos forrós urbanos e suburbanos, Jackson lembra também o baião rural, coco rural, sei lá que classificação etnomusicológica se dá a isso.

Como por exemplo a beleza que é “Coco do Norte” (Rosil Cavalcanti):

No coco do Norte tem caracachá,
zabumba, ganzá, poeira do chão,
coqueiro fazendo improvisação,
compadre e comadre seguro na mão;
batendo umbigada com palma de mão...

“Isso assim é coco, nunca foi baião”, diz o próprio estribilho da música. E outro retrato rural que vai fundo é o de “Êta baião” (Marçal Araújo):

Como é bonito ver, no alto sertão,
os violeiros rasqueando a prima com bordão...
Os cabras fazem desafio
rima sem perder o fio
e assim nasce o baião... Êta baião!

São os velhos batuques de cem anos atrás, as festas de fazenda em que se misturavam a dança ao som das percussões e os improvisos ao som da viola, antes que as duas modalidades se separassem para seguir carreiras independentes.

É o universo de Dona Guidinha do Poço de Oliveira Paiva, de Luizinha de Araripe Jr., de tantos livros de época que registraram essa origem comum de nossa criação musical e poética. O tronco de onde brotaram Pinto do Monteiro e Jackson do Pandeiro.










quinta-feira, 26 de abril de 2018

4341) A série "The Terror" (26.4.2018)



Fazia algum tempo que eu não assistia uma série de terror, desde alguns episódios de Penny Dreadful que vi no ano passado. Terror foi virando um gênero meio pornográfico. Digo “pornográfico” no sentido de todo tipo de narrativa que arbitrariamente escolhe 2 ou 3% da experiência humana e faz um livro ou um filme inteiro mostrando unicamente aquilo, graficamente, explicitamente, continuamente, insistentemente, reiteradamente, de forma tão repetidamente cansativa quanto estes advérbios.

O terror do cinema e da TV tem se especializado em duas coisas: 1) exaltar aberrações ou monstruosidades psicológicas (afirmo que o Herói Arquetípico na narrativa comercial do século 21 é o Serial Killer, e quem puder que me desminta); 2) mostrar em close-up vísceras, mutilações, esfrangalhamentos, torturas, o chamado “gore”, ou pornografia da crueldade.

The Terror (2018), série de TV produzida pela rede AMC (1 única temporada, 10 episódios) tem um equilíbrio notável entre uma certa ambição literária e essas tendências comerciais (digo “comercial” no sentido de uma obra em que decisões estéticas são tomadas com base no retorno financeiro: “vamos mostrar uma mulher sendo esquartejada viva, porque assim venderemos mais ingressos”).

O sadomasoquismo voyeurista das platéias foi industrializado pelo cinema/TV e já está muitos níveis de complexidade acima de narrativas até ingênuas como as dos penny dreadfuls propriamente ditos do século 19 ou as do teatro de Grand Guignol.

Num quadro como este, The Terror é uma série que, se satisfaz em vários momentos a pulsão sádica da platéia, constrói em torno disso uma narrativa coesa, verossímil, cuidadosamente construída em todas as direções, e desse modo quando brota o “teatro da crueldade” ele surge um efeito a mais, e não como o objetivo maior da narrativa.

Aqui, o link para a série completa, dublada ou legendada:

São dez episódios baseados no romance em que o competente Dan Simmons abordou um mistério verídico, que até hoje não foi totalmente elucidado: O que aconteceu com os dois navios da expedição Franklin, que tentaram entre 1845-1850 descobrir a Passagem Noroeste do continente ártico? O que se sabe é que morreu todo mundo, houve fome, doença, crimes, canibalismo, e nem todos os corpos foram encontrados até hoje.



Simmons é autor de pelo menos dois livros de terror premiados e impressionantes: o ótimo Song of Kali (1985), sobre um casal norte-americano em viagem na Índia cuja filhinha pequena desaparece; e Carrion Comfort (1989), sobre um grupo insidioso de telepatas capazes de assumir o controle da mente de uma pessoa desprevenida e fazê-la praticar qualquer ato. Este não li, li apenas o conto que inspirou a série, e não faço questão de ler de novo. (Muito bem escrito, aliás.)

Para mim, a grande obra dele é o díptico de FC Hyperion (1989) e The Fall of Hyperion (1990), uma space-opera de proporções épicas, com imaginação exuberante, centenas de personagens, uma trama tipo Game of Thrones de proporções galácticas. (Vieram outros livros depois na mesma série, mas não li.)

The Terror pega os dois navios da misteriosa expedição Franklin e os imobiliza no mar congelado. A comida começa a ficar escassa, as rivalidades e ódios latentes entre oficiais e marujos vão se agravando, e ainda por cima há uma criatura enorme e meio sobrenatural atacando e comendo pelas beiras a tripulação.

De uma maneira que me pareceu acertada, o filme (eu chamo tudo isso de “filme”, é hábito) se concentra nos problemas técnico-navegacionais dos personagens, e na escalada das tensões pessoais entre eles. Os ataques do monstro, raros a princípio, só se tornam constantes nos últimos episódios, quando prudência, hierarquia, saúde e autoridade já foram pro espaço.

Diz-se na abertura da série que os dois navios, o Terror e o Erebus, eram a tecnologia naval mais sofisticada da época, e isso faz perpassar uma leve tintura de FC na história toda. Dispor da “mais avançada das mais avançadas das tecnologias”, na expressão de Caetano Veloso, gera uma certa hubris em militares que, como se isso não bastasse, acreditam que a Rainha Vitória e Deus Todo Poderoso os estão protegendo e inspirando suas decisões. (Spoiler: Não estavam.)

Há um paralelismo evidente, e não-forçado, entre a falência da tecnologia e o assédio do sobrenatural. “O sono da Razão produz monstros” (Goya).

Em muitos momentos não há como não ver uma semelhança explícita de clima entre esta série e obras como O Enigma do Outro Mundo (“The Thing”, 1982, John Carpenter) ou O Coração das Trevas (Joseph Conrad, 1899).  O que chamamos de Civilização não passa de uma bolha. Quando homens poderosos e arrogantes se afastam do centro, percebem o quanto a periferia dessa bolha é porosa, e deixa passar coisas que parece estar mantendo à distância.

Não há nenhum campo-de-força invisível protegendo a Civilização. A Civilização é um consenso, um pacto social coletivo. Quando o consenso se estilhaça, pelas frestas emerge o Tuunbaq.












quarta-feira, 25 de abril de 2018

4340) Dez álbuns: 3 - "For Little Ones" (25.4.2018)




(Vou dar continuidade ao desafio que me foi feito via Facebook por Toinho Castro e Mario Bag: postar dez discos que a gente ouviu até a agulha furar o vinil, e continua ouvindo até hoje.)

Este é sem dúvida um dos álbuns que mais escutei durante minha vida inteira, e ele tem além disso uma peculiaridade interessante: é um dos raríssimos álbuns cujas letras eu já sabia quase de cor antes de ouvir pela primeira vez.

Em 1970 eu estudava em Belo Horizonte e mantinha uma correspondência cerrada com os irmãos Jakson (“Son”) e Marcos Agra, meus colegas do Cineclube de Campina Grande. Son era um desses caras que quando se tornam fãs de algo tornam-se verdadeiros missionários, tentando batizar e converter todo mundo.

Ele descobriu esse LP do bardo escocês Donovan, For Little Ones, e sua vida dividiu-se em antes e depois. (Nada de mais: com ele, isso acontecia todo mês.) Copiou à mão todas as letras e mandou para mim, ameaçando-me de ferro em brasa e chumbo derretido se na minhas férias em Campina eu não ouvisse o disco e concordasse com ele.

Concordei. O que fazer? O disco de Donovan é, ao que se diz, um disco de canções infantis (“Para os Pequeninos”). Ao que parece, foi lançado em álbum duplo com outro título, A Gift From a Flower to a Garden, que conheço pouco. Mas são canções infantis para crianças britânicas, que são um universo totalmente diferente do mundo infantil brasileiro. São canções de melodias nostálgicas, belas, recursivas. Versos de grande beleza poética escandidos por uma voz de dicção perfeita (dava para entender quase tudo que era cantado!). Um violão dedilhado que passei anos tentando imitar, e floreios magníficos de uma flauta.

As letras falam de uma viúva na praia esperando a volta de um marinheiro, de um músico ambulante que anda com um macaquinho dançarino, de uma cigana que passa por uma vila e a deixa enfeitiçada, de um maturalista que volta da praia com os bolsos cheios de conchas. São pequenas vinhetas, com imagens visuais fortes, que têm de fato um clima infantil, no sentido de que sugerem um mundo meio de fantasia, de encantamento, a partir de paisagens e personagens reais.

Aqui, links para algumas dessas canções:

“Widow With Shawl (A Portrait)”:

“The Enchanted Gypsy”:

“Epistle to Derroll”:

“The Lullaby of Spring”:

The “Starfish-on-the-Toast”:

Donovan tem discos até melhores do que este, como Mellow Yellow, um disco pop, londrino, moderno; ou Celtic Rock, com banda mais pesada. Ele é um excelente cantor, mas teve o azar de ser contemporâneo de Bob Dylan e ser sugerido pela imprensa como “o Dylan britânico”. Os dylanmaníacos, para quem Dylan não é um cantor e sim uma entidade acima do Bem e do Mal, veem Donovan como “aquele inglês chato” que apareceu no hotel de Dylan durante a turnê londrina.

For Little Ones faz uma ponte muito interessante entre o rock britânico e a literatura infantil britânica, uma das melhores do mundo, ou pelo menos uma das mais influentes. Ser criança na Inglaterra, um país invernal e reprimido, não devia ser fácil naquela época. As escolas inglesas eram um pesadelo a que muita gente não conseguia sobreviver psiquicamente. Basta ler os relatos autobiográficos de dezenas de autores (Roald Dahl, George Orwell em Books vs. Cigarettes, e tantos outros). Uma instituição onde o bullying (de chicote em punho) era oficializado.

Em Revolution In The Head (1994), Ian MacDonald observa que um dos discos mais importantes dos Beatles, o compacto contendo “Penny Lane” / “Strawberry Fields Forever” (1966), mostra McCartney e Lennon recorrendo (cada um ao seu modo) às lembranças de infância (que brotariam novamente em várias faixas de Sgt. Pepper’s (1967). Diz ele (p. 172-173):

Este segundo aspecto da canção [SFF] inaugura para todos os efeitos o espírito “pop-pastoral” inglês, explorado no final dos anos 1960 por grupos como Pink Floyd, Traffic, Family e Fairport Convention.

“Pastoral”, no caso, não tem conotação religiosa, e sim de evocação a uma vida rural idílica, junto à natureza; um paraíso no campo, longe das multidões enlouquecedoras, longe da frieza e do cinismo da vida urbana. Seria algo parecido com o nosso Arcadismo poético. Ou, mais modernamente, com o espírito “eu quero uma casa no campo”.

Mais significativo, no entanto, era o ponto de vista infantil adotado pela canção – porque o verdadeiro tema da psicodelia inglesa não era nem o amor nem as drogas, mas uma nostalgia pela visão inocente das crianças.

Rapazes que aos dez anos frequentavam a escola de terno e gravata descobriam-se de repente com o direito de tirar a roupa e dançar na grama de um parque, ao sol do verão. A tradicional família britânica via nisso uma ameaça permanente de suruba, porque ao que parece as famílias tradicionais não pensam noutra coisa. Ouso dizer, pelos muitos relatos de época que já li, que as surubas ou mesmo as trepadinhas dois-a-dois eram relativamente poucas. Nudez para essa turma era uma espécie de libertação angelical.

O próprio MacDonald lembra outras bandas que conseguiram reproduzir musicalmente esse universo meio Alice in Wonderland da psicodelia inglesa, entre elas a Incredible String Band, cuja coletânea dupla Relics eu talvez acabe incluindo e comentando nesta lista.

Donovan era um bardo tão inimitável quanto Bob Dylan, e a única coisa que os dois tinham em comum era a riqueza poética e a conexão prfunda com a música folk onde bebiam. Dylan era sem dúvida um poeta com territórios poéticos mais variados; mas Donovan, na sua faixa mais estreita, era igualmente imbatível.
















segunda-feira, 23 de abril de 2018

4339) Dez álbuns: 2 - "Samba Esquema Novo" (23.4.2018)




Vou dar continuidade ao desafio que me foi feito via Facebook por Toinho Castro e Mario Bag: postar dez discos que a gente ouviu até a agulha furar o vinil, e continua ouvindo até hoje.

Como já falei nesta coluna, o Facebook é hoje em dia nosso mais sofisticado instrumento de cadastro: de hábitos de consumo (para o Mercado) e de detalhes biográficos, políticos e psicológicos de cada usuário (para o Estado). A briga entre o Mercado e o Estado é uma briga entre Godzilla e King Kong. A briga é entre eles. Nós somos a população de Tóquio, aquele formigueirozinho atarantado por cima do qual desabam os prédios.

Portanto, se o Mercado quiser me empanturrar de ofertas de discos de Jorge Ben, e o Estado quiser me botar na cadeia por gostar deles, sintam-se à vontade, sou réu confesso.

Samba Esquema Novo é o disco de estréia de Jorge em 1963, mas eu provavelmente só vim a ouvi-lo no ano seguinte, quando ele tocava direto na rádio.

Tenho muito clara na lembrança uma noite de meio de semana em 1964, quando fui ao Estádio Presidente Vargas ver um jogo do Treze com o Estivadores, de Alagoas. Nessa noite, sentado na chamada “arquibancada principal” por trás do gol (e não nas cadeiras cativas, onde ia com meu pai) passei o jogo todo com o radinho ao ouvido escutando música, porque o jogo (que acabou 1x1) estava ruim demais. E deve ter tocado “Mas Que Nada” uma dez vezes durante aquela hora e meia.

Um problema auditivo que eu tenho até hoje é a dificuldade em distinguir sons específicos no meio de uma massa sonora. “Olha o que o trumpete está fazendo!”  “Trumpete?! Tem trumpete aí?!”  É como se eu ouvisse tudo fora de foco. Como se visse ao longe a massa de uma floresta, as cores, o formato geral, mas não percebesse que aquilo é formado por árvores individuais.

Daí que ouvindo música erudita, por exemplo, sempre gostei de obras para piano ou cravo, ou, no máximo, de quartetos. Obra orquestral eu também gosto, gosto do resultado geral, mas não percebo – como meus amigos músicos percebem – o que cada instrumento está fazendo ali.

A vantagem que eu via nos discos da Bossa Nova era que o cara era capaz de escutar o violão de João Gilberto sem o diabo duma orquestra atrapalhando. E Samba Esquema Novo, por algum mistério insondável de arranjo & estúdio, permitia ouvir ao mesmo tempo a voz cantando a música, o piano salpicando comentários melódicos, os metais crescendo e reduzindo interferências harmônicas em paralelo, a bateria percutindo seca e precisa ao fundo, e o violão-locomotiva arrastando o resto.

Até aquele momento, meu samba se resumia a Elza Soares, Miltinho, Roberto Silva, Demônios da Garoa. O samba de Jorge Ben coincidiu com o momento em que comecei a aprender violão, porque minha irmã Clotilde já tocava o dela, ao seu estilo Nara Leão; e eu começava a arranhar meus dós maiores, guiado pelo Método Prático de Violão, de Paraguassu, que sigo até hoje (risos).

Jorge Ben era diferente de tudo. Tinha os falsetes ousados; num tempo machista como aquele, provocaram alguns comentários desdenhosos que se evaporaram depressa. Tinha o jeito de dizer “voxê” (todo mundo que escrevia sobre o disco tinha a obrigação de se referir a isso, e lá vou eu entrando na roda de novo).

E tinha algo que sempre me seduziu na música popular, a espontaneidade de criar onomatopéias próprias, sílabas soltas de validade exclusivamente melódica, um canto de garganta-e-língua que não precisava de dicionário. Saiubá, saiubá... Sacundim, sacundém, imboró congá... Uala, ualalá... Tin-don-don... Como se a voz fosse um instrumento intraduzível, que nenhum outro fosse capaz de emular.

O violão de Jorge tinha aspectos que eu, leigo-zero-quilômetro naquele tempo, só vim perceber depois. E me socorro das notas de Armando Pittigliani na contracapa do disco, textos de um tempo mais alfabetizado do que o nosso, em que os discos traziam comentários de si próprios. (É até bom que isso não exista hoje. Dou por visto o nível das sandices que seriam ditas.)

Dizia Pittigliani:

O violão – que Jorge aprendeu sem professor, apenas com um “método” desses que por aí existem e muita força de vontade – é uma das chaves do seu êxito. Seu inato talento musical proporcionou-lhe descobrir uma nova “puxada” para o nosso samba – fazendo do violão um instrumento, sobretudo, de ritmo. Na sua “batida” tanto se destaca o “baixo” como o desenho rítmico da sua pontuação na maneira toda sua de tocar. Um exemplo disso é o fato de várias faixas deste disco não contarem com o contra-baixo na orquestração. Somente o violão de Jorge já dá a necessária marcação, dispensando portanto aquele instrumento de ritmo. O “balanço” do acompanhamento repousa quase sempre no seu violão.

Muitos anos depois, num dos retornos triunfais de Jorge às paradas de sucesso, na época de “W-Brasil”, vi uma entrevista em que perguntaram o segredo de sua “levada” com a banda de Zé Pretinho, e ele disse: “Todo mundo usa só um baixo na banda, eu uso dois.” Parece uma contradição com o que vem transcrito acima, mas não é. A música de Jorge se baseia num ritmo tão fortemente marcado que é capaz de acolher tanto os improvisos dadaístas daquela canção quanto as letras longas, serpenteantes, quase em canto-falado, de “Fio Maravilha” ou “Taj Mahal”.

E aquele romantismo sensual nas letras: “olha, lá vem ela... estou de olho nela...”, “você passa e não me olha, mas eu olho pra você...”, acomodando o fervilhar dos hormônios adolescentes, seduzidos pelo olhar provocante da garota, um jeitinho de ombro, uma leveza no passo, tudo transformando o poeta num predador benigno cheio de amor pra dar. Em “Balança Pema”, o fetichismo inocente da imaginar o pezinho moreno numa sandália prateada.  A presença da chuva (“Chove, Chuva”) molhando o corpo vestido da mulher desejada, imagem que ele retomaria depois em outras músicas, principalmente na irretocável “Que Maravilha” (com Toquinho).

Eu sempre julguei um compositor, em primeiro lugar, por suas letras; mas em alguns casos, como o de Jorge, sempre dei de ombros para versos como “é puro e belo e inocente como a flor”. Não são frases poéticas: são as açafatas da Princesa Melodia, servindo-a, ajudando-a a surgir e a brilhar. Nem tudo que faz parte de uma canção precisa estar o tempo todo à frente do resto. Palco não tem só proscênio.

Quase meio século depois daquela noite do jogo do Treze, eu estava na praia de Tambaú, em João Pessoa, numa noite de céu carregado, no meio de uma turma de amigos que se deslocou para ver Jorge Ben e sua enorme banda. E no auge do show, quando o toró ameaçado finalmente desabou “di cum força”, Jorge atacou o “Chove Chuva”, que todo mundo entoou junto, com o pulmão inteiro.

Pois é... tantas vezes vai o cântaro à fonte que um dia volta cantando. Salve Jorge!













domingo, 22 de abril de 2018

4338) Dez álbuns: 1 - "O Último dos Moicanos" (22.4.2018)




As pessoas do Facebook têm essas modas de sugerir fazer isso, fazer aquilo. A moda agora é de postar a capa de 10 álbuns que a pessoa ouve até hoje, porque marcaram sua história pessoal.

“Basta postar a capa do álbum, sem comentar nada,” foi a instrução que recebi de Toinho Castro e Mario Bag. Ponderei: “Que graça tem postar sem comentar?”  De modo que aqui vão, de um em um, dez álbuns que ouvi até a agulha furar o vinil. E que, tempo havendo e cerveja não faltando, continuo a ouvir, até hoje.

O Último dos Moicanos de Moreira da Silva teve a subida honra de ter sido o primeiro LP comprado quando meu pai comprou uma radiola bem boa em nossa casa do Alto Branco. Era 4 mil cruzeiros; eu dei 2 e minha irmã Clotilde deu 2, porque a gente ouvia rádio o dia inteiro, e éramos ambos fãs de Kid Morengueira.

Eu sempre me pergunto por que ninguém escreveu (pelo menos nunca vi) um livro sobre a obra de Miguel Gustavo, o criador desse imortal personagem junto com Moreira. Talvez ele tenha meio que caído em desgraça porque compôs algumas músicas do tempo da ditadura militar, inclusive o famoso “Noventa milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração...”, que virou o hino da Copa de 1970.

Não importa: era um cronista musical  pra ninguém botar defeito, e os sambas-de-breque de Morengueira são de uma criatividade espantosa, com antropofagia de cultura pop, efeitos de sonoplastia (tiros, cavalos), trechos paródicos, diálogos ping-pong brechtianamente enunciados pelo cantor, locução caricatural, um clima de nonsense narrativo absolutamente moderno.

Tinha jurado à minha mãe por toda a vida
não me meter em mais nenhuma trapalhada...
Depois daquele do bandido em que o índio me salvara
eu resolvi levar a vida sossegada.
Comprei um sítio, e já ia criar galinha
quando a notícia no jornal me encheu de ódio:
um bandoleiro aprisionara aquele índio
que me salvara no primeiro episódio!
(“Cuidado Moreira!...”)

Aqui, a gravação original:

Neste disco, Moreira, com a voz no auge, canta o que é provavelmente o único samba em francês da MPB (“Dancê mademoiselle, dancê... dancê avec moá... dancê mademoiselle, pasquê jêtéim bocú, mon peti-poá...”). (Mal escrevi isto e já descobri que existe um composto em 1922 por Pixinguinha e Duque, quando da famosa excursão dos Batutas a Paris.)

Aqui:

É uma música pichititinha num álbum quase todo de letras longas, serpenteantes, enroscadas sobre si mesmas e quando parecem que vão se perder são cortadas pela guilhotina do breque, que dá um freio de arrumação e retoma a cadência.

Falei em crônica, e vejam que beleza este devastador “Boletim Social”:

Boletim social, de um cronista conhecido
como Boca Rica (lá no Morro da Cuíca);
de uma festinha na tendinha do Fominha
que eu vou te contar (lá estava a Dagmar)
uma das dez mais legais do lugar, gostava de dançar,
o Chicão Caixa Alta patrocinava o ragú
birita com limão, faisão de Maria Angu. (...)

Aqui, o original:

Meio no estilo de uma “Festa de Arromba” fictícia, o cronista social vai enumerando os nomes pitorescos da malandragem presente, e a coluna-social se encerra assim:

E o repórter escreveu uma crônica
numa pedra de gelo e guardou numa estufa...
(Oi gurufim, gurufa...)

A primeira vez que ouvi a expressão “chave de cadeia” foi no samba homônimo em que Moreira se queixa da mulher-encrenca que arrumou:

(...) Vive me malhando, não sou palhaço,
vou mandar tirar seu nome tatuado no meu braço!
Aquele terno branco que eu dei duro pra fazer
você botou no prego e a cautela foi vender...
Meu relógio de ouro não estava perdido
só agora descobri que também foi vendido.

Aqui, uma regravação posterior:

Uma coisa bem da época, na canção popular, era jogar o personagem numa situação meio fantasiosa e improvável, como Jackson do Pandeiro em “Falso Toureiro” ou Luiz Gonzaga em “Siri jogando bola”. No caso de Moreira, é a canção cujo nome não me vem agora, mas é ambientada numa “Mil e Uma Noites” que parece os filmes de J. B. Tanko:

Foi num sonho: eu estava num harém,
alta madrugada o Sultão apareceu.
Conversa vai, conversa vem,
na base do “chega pra cá”;
apontou uma e foi dizendo: “É por aqui!”...
Com a butuca escancarada
dava impressão do capeta, o homem estava abilolado,
veio chegando pro meu lado, eu fiquei todo arrepiado:
no pesadelo eu era uma beldade...
(Me olhava com ferocidade...) (...)

Moreira era conhecido como malandro, mas suas músicas cobriam um Rio muito mais amplo, para além do personagem. Era o Rei do Samba de Breque, mas suas gravações, principalmente nessa década (estou falando em 1960-e-bem-pouquinho) mostram um intérprete onde o dito “canto falado” já era praticado com desenvoltura total.

Se um dia alguém escrever um livro intitulado O Humor na MPB, Moreira da Silva terá que ter um capítulo só seu (tal como os Demônios da Garoa, tal como o Língua de Trapo, tal como Jorge Mautner ou Jards Macalé). O clima de descontração e informalidade, favorecido pelo conceito “malandragem”, contaminava as técnicas de gravação, as letras, os arranjos.

O Último dos Moicanos talvez nem seja o melhor álbum de Moreira, porque até o fim ele se manteve firme como uma rocha e adaptável como um rio. Cheio de suingue nas divisões silábicas, ele soube criar para si um personagem (tal como Luiz Gonzaga fez com seu chapéu de couro e gibão) e era flexível o suficiente para sair dele e voltar a ele sempre que lhe convinha. Esse lado histriônico, meio cinematográfico, deu-lhe um corpo de vantagem sobre intérpretes igualmente cheios de ginga como Jorge Veiga.












quinta-feira, 19 de abril de 2018

4337) "Bandeira Sobrinho -- Uma Vida e Alguns Versos" (19.4.2018)




Neste sábado, 21 de abril, entre as 15:30 e 16:30 horas, estarei lançando no Rio de Janeiro meu novo romance, Bandeira Sobrinho – Uma Vida e Alguns Versos (Fortaleza: Imeph, 2017).

Vai ser no CRAB (Centro SEBRAE de Referência do Artesanato Brasileiro), Rua Visconde do Rio Branco, 3, na Praça Tiradentes. Fica perto do Teatro Carlos Gomes, em frente ao 13º. BPM: é aquele prédio grande, cor de cenoura, cuja calçada ficou durante anos ocupada por tapumes e andaimes.



Sobre o livro: por um lado, acho que é isso que está se chamando atualmente de “auto-ficção”: uma obra de ficção onde o próprio autor aparece como personagem. Comentei com um amigo meu: “Não sei por que esse alarde todo, porque isso já vem pelo menos desde os contos de Borges.” Ele respondeu: “Pelo menos desde a Divina Comédia.”

O livro conta a vida de um cantador repentista de Campina Grande, com quem ficticiamente convivi a partir de 1975, quando eu era um dos organizadores do Congresso Nacional de Violeiros, um festival de repentistas que acontecia anualmente no Teatro Municipal Severino Cabral. Em sua fase de maior sucesso, o Congresso chegou a lotar com 5 mil pessoas o Ginásio da AABB.

Quem organizava o Congresso eram os cantadores locais: José Gonçalves, Ivanildo Vila Nova, José Laurentino, Juvenal de Oliveira, etc.  A eles juntou-se a chamada “turma do Museu”, que se reunia em atividades cineclubísticas no Museu de Arte da FURNe: eu, José Umbelino Brasil, os irmãos Rômulo e Romero Azevedo, meu irmão Pedro Quirino, o fotógrafo Roberto Coura e vários outros.

Bandeira Sobrinho era um cantador de seus 50 anos na época (eu tinha metade disso) e circulava como um ectoplasma no meio daquela poetaria toda. Circunspecto como Manuel Camilo, casmurro como Zé Alves Sobrinho, ranzinza como Pinto do Monteiro. Por trás dessa fachada cactácea, tinha um coração de ouro, um grande senso de humor, era cachaceiro e raparigueiro como todos os outros. (Ou quase todos.)

Bandeira estava cantando certa vez na casa de uma família bem religiosa, e seu parceiro terminou uma sextilha dizendo:

(...) Porque a fé é meu guia,
minha luz e meu farol.

Bandeira respondeu:

Tenho fé em que o sol
amanhã nasce no leste,
vai cruzar o dia todo
a abóbada celeste
e, como sempre tem feito,
vai se pôr no lado oeste.

Era um agnóstico, o que não o impedia de cultivar um lado místico e ler de Erich von Daniken até Mircea Eliade. Era grande admirador de Ariano Suassuna, e no livro transcrevo as estrofes que fez quando foi pessoalmente conhecer as “Pedras do Reino”, no município de Sao José do Belmonte:

(...) São ruínas requeimadas
do arraial de Canudos?
Ou gigantescos escudos
de tropas enfeitiçadas?
São os degraus das escadas
do Morro da Encantação,
degraus que à noite um Dragão
desce pra beber na Fonte?
Pedra do Reino em Belmonte,
Trono dos Reis do Sertão!

Bandeira tinha um fusquinha no qual peguei muita carona para ir assistir suas cantorias, levando a tiracolo meu gravador National e os bolsos cheios de fita Basf-60. Morou quase sempre no alto da ladeira que leva ao Alto Branco, a Vigolvino Wanderley, com uma breve passagem pela rua Luiza de Castro, nesse mesmo bairro.

Registro cantorias dele no Bar Canarinho, na feira de Campina, em Manuel da Carne de Sol; e episódios pitorescos vividos no saudoso bar Miúra, na Estação Velha, no Bar de Zacarias, por trás do Estádio Plínio Lemos, e no Bar do Cearense, no pé da Venâncio Neiva.

Era uma época gloriosa da cantoria de viola, uma época em que de certa forma o Congresso de Campina marcou de forma indelével, graças principalmente à ousadia e à capacidade de mobilização de Ivanildo Vila Nova e sua turma, os critérios de apresentação profissional dos cantadores.

Eu era um simples estudante universitário, um cabeludo “peru de cantoria”, sempre de gravador ou caneta Bic em punho, registrando versos que somente décadas depois apareceriam em forma de livro.

A boemia ao lado dos repentistas marcou esse pedaço da minha vida, e faço minhas as palavras de Bandeira quando disse:

Dos 20 aos 50 anos
gozei tudo que podia:
fui boêmio sem descanso
e gastei uma energia
que dava pra iluminar
do Rio Grande à Bahia.

Farrista, ele? Que o digam lugares como o Vagalume, na feira, ou a Unidade Moreninha, na Rua das Boninas. Bandeira era muito bem casado com Dona Zita, o que não o impedia de produzir sextilhas como esta:

Todo casal tem a hora
em que pega alguma briga;
a esposa se consola
contando tudo à amiga,
mas pro marido só resta
cabaré e rapariga.

Era um meio pesadamente machista, o dos cantadores, não no sentido da violência e do preconceito, mas da aderência a um código de conduta rígido, implacável, em que o destino da mulher era cuidar da casa e dos filhos, e o do homem era o que ele bem entendesse.

Ainda assim Bandeira era um romântico, capaz de dizer:

Isso é a vida que traz,
isso é a vida que leva.
Um dia lá bem distante,
quando eu mergulhar na treva,
minha última lembrança
serão os olhos de Eva.

Por trás dos versos e das farras boêmias, a história mostra pinceladas de uma Campina Grande que em sua maior parte já se foi: a redação do Diário da Borborema, o estúdio de Rádio Borborema onde era transmitido o programa “Retalhos do Sertão”... Nos últimos capítulos o registro de meus encontros com Bandeira já nos anos 2000, no Recife, ele já uma “lenda viva” da cantoria e eu um roteirista de televisão.

E assim a vida vem, a vida se vai. Como disse o próprio Bandeira Sobrinho:

A minha felicidade
perdeu-se como a fumaça,
foi uma sombra que passa
com o surgir da claridade;
fugiu-me contra a vontade,
fugiu sem eu nem dar fé;
minhalma hoje é a ré
e o destino seu juiz.
A gente só é feliz
quando não sabe que é.

E apois não é mêrmo?!

O livro ainda não tem distribuição na rede de livrarias, mas pode ser pedido diretamente à Editora Imeph, aqui:






terça-feira, 17 de abril de 2018

4336) O Presente e o Futuro (17.4.2018)



(ilustração: Daron Mouradian)

Nosso conceito de tempo (o que ensinamos às nossas crianças desde cedo) é dependente da geometria. Precisamos visualizar o tempo de alguma forma, e a maneira mais fácil é reproduzi-lo no espaço, através de linhas e planos.

Dizemos então (não nestes termos, claro) que o tempo é uma linha que se prolonga indefinidamente, uma seta, um vetor (“segmento de reta orientado numa direção”). Para trás ficou o passado; o presente é o ponto em que estamos, e que se desloca conosco para a frente, na direção do futuro.

Santo Agostinho tem uma definição famosa, que já comentei aqui neste blog: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2008/03/0158-o-que-o-tempo-2392003.html

Agora basta-me resumir a conclusão dele: nossa mente só conhece o presente. O que chamamos passado é a lembrança presente de um momento que não existe mais; e o que chamamos futuro é a imaginação presente de um momento que ainda não existiu.

Mas... podemos dizer que o passado não existe mais? Afinal, tudo que vemos e que somos é resultado desse passado, um resultado palpável, sólido. O trabalho que deu origem ao prédio onde moro já deixou de acontecer, mas posso dizer que todo trabalho se prolonga no resultado que deixa. Os dois são um só processo. O trabalho passou; o prédio continua, isso me permite afirmar que o trabalho não deixou de existir, apenas deixou de ser uma ação para ser um objeto material.

O passado é algo que se prolonga materialmente no presente. Na frase famosa de William Faulkner, “o passado não morreu, ele nem sequer terminou de passar”. O presente é apenas um conjunto de formas do passado que se prolongam.

O passado é imutável? Sim. O que aconteceu não pode ser desfeito. É imutável, mas só temos acesso a ele através de lembranças, registros, documentos, versões. E essas coisas não são imutáveis. Nosso conhecimento do passado é incompleto, e pode a qualquer momento sofrer uma reviravolta. Nossa versão do passado tem que mudar para se ajustar aos fatos.

O Inconfidente Mineiro que foi dado como criminoso e executado barbaramente pode ter seus atos reavaliados e considerado herói da pátria. Outra reavaliação talvez o descreva não como criminoso nem como herói, apenas um rapaz exaltado, de bons sentimentos e um tanto ingênuo, que serviu de bode expiatório de um movimento. Os fatos não mudam: mudam as histórias que contaremos aos nossos filhos sobre eles.

O sonho de voltar ao passado para modificá-lo está presente em milhares de histórias de ficção científica onde alguém traça os planos mais mirabolantes para viajar numa Máquina do Tempo e evitar uma guerra, impedir a morte de uma pessoa amada, recuperar um objeto precioso antes que seja destruído.

O Netflix está exibindo uma simpática série de FC, O Ministério do Tempo, que em cada episódio nos propõe uma aventura onde é preciso evitar que alguém mude o passado.

Há duas correntes principais na FC. Na primeira, o passado não pode e não deve sofrer modificações, e existe uma espécie de “patrulha do tempo” voltando constantemente para se certificar de que as coisas continuarão acontecendo da mesma maneira; outro bom exemplo disso é O Fim da Eternidade de Isaac Asimov (Ed. Aleph). Na segunda, o passado é indefeso, e extremamente frágil. As bifurcações do tempo se multiplicam, não há ninguém tomando conta, e a morte de uma simples borboleta pode alterar tudo nos séculos futuros, como no conto clássico “Um Som de Trovão” de Ray Bradbury.

É interessante que tanto a série da TV espanhola quanto o romance de Asimov tratem o futuro com cuidado, como um caminho com acesso vedado. Pode-se voltar milênios atrás, mas não se pode ir mexer no mês que vem.

Isso me traz ao ponto inicial. Penso às vezes que o tempo não se divide em três fases, mas em duas, a que chamo o Passado e o Passando. The Past, and the Passing. Le Passé, et le Passant.

O Passado são todos os fatos concretos que já aconteceram na história, e a que não temos mais acesso. O Passando é isso a que chamamos às vezes de presente e às vezes de futuro, como se fossem duas coisas diferentes, e que não passa da superposição daqueles estados mentais a que Santo Agostinho se referia: lembrança presente, imaginação presente, percepção imediata de tudo que se transforma.

Um turbilhão de possibilidades, uma cachoeira de “pontos de mutação” que surgem e colapsam sem parar, um estado mutável que precisamos domesticar, entender, e por isso recorremos à confortável tríade “passado-presente-futuro”.

Essa tríade, certinha demais, me parece uma visão de burocrata, onde o Presente é a escrivaninha, o Passado é a caixa de Saída (processos já despachados) e o futuro a caixa de Entrada (processos a despachar).

O Passado tem algo de imutável porque não podemos alterá-lo, mas no Passando tudo está sendo reavaliado e decidido (inclusive nossas versões e registros do Passado). No Passado está tudo que é definitivo e inacessível a nós; no Passando, misturam-se versões do passado, planos para o futuro, decisões do presente, como num liquidificador em que todas estas coisas estão girando, num turbilhão que nada poupa.

Em tempos de convulsão política, vale a frase de George Orwell: “Quem controla o Passado controla o Futuro, e quem controla o Presente controla o Passado.” Governos autoritários tendem a incendiar (ou a matar à míngua, o que é mais discreto) bibliotecas, museus, arquivos públicos, bem como as respectivas categorias profissionais. É uma maneira de ir apagando o Passado para melhor se assenhorear dele.

É no torvelinho do presente que o passado é interpretado e o futuro se decide. Algum filósofo disse: “Quem não conhece o seu Passado está condenado a repeti-lo.” Algum potentado gostou da frase e disse: “Façamos com que eles desconheçam seu passado, para que repitam a parte que nos interessa.”