O futebol já havia perdido Diego Maradona há muitos anos,
inclusive se computarmos sua breve passagem como técnico da Seleção Argentina,
onde teve alguns poucos momentos de brilho.
Dentro de campo, foi um dos maiores que vi, produzindo
jogadas de gênio numa sucessão constante, jogo após jogo, ano após ano. Não
somente os gols, que fez em quantidade: mas as jogadas confusas que ele
resolvia com um único toque, um giro do corpo, um desvio de leve com o lado do
pé, um drible definitivo.
A simplicidade minimalista de quem, na hora do jogo, está
pensando apenas no jogo, apenas na jogada, apenas naquele movimento complexo de
gente que se aproxima, gente que se desloca, velocidade de cada um, intenções
possíveis de cada um... E num arremesso de búzios instantâneo, faz o movimento
certo com o corpo e dá o toque certo com a chuteira. Basta isso.
Penso assim porque muitas vezes o futebol é jogado por
jovens que estão com metade da cabeça no jogo e metade nos seus problemas
pessoais. Um olha pro telão o tempo todo. Um se preocupa se o gel do cabelo
está escorrendo. Outro conversa com o colega escondendo a boca com a mão,
porque lhe disseram que há inimigos munidos de teleobjetivas e
leitores-de-lábios querendo adivinhar o que ele disse. Outros estão pensando em
quantos meses restam de contrato e se vale a pena entrar numa bola dividida
contra aquela zaga tão carniceira. E assim por diante.
Um amigo meu, jogador profissional, me disse uma vez:
“Dos 40 do segundo tempo em diante, neguinho se distrai do jogo, já fica
ensaiando mentalmente o que vai dizer ao repórter de pista, antes de ir pro
vestiário”.
É um pouco como aquele músico profissional que me disse:
“Tem horas que eu estou tocando mas nem lembro que música é, estou pensando em
que restaurante eu vou jantar depois do show”.
Maradona dava a impressão (ele e os verdadeiros craques)
que na hora do jogo só existia a jogada. Uma de cada vez. Como dizia outro que
tinha a mesma dimensão dele, o artilheiro Romário: “O jogador só é ele mesmo
depois que o juiz faz pí!...” Ou seja, quando a bola rola.
A bola rolou nos pés de Maradona como nunca tinha rolado
nos pés de ninguém, porque nisso o grande jogador se compara ao grande artista:
ele é somente ele mesmo, inimitável, um conjunto de qualidades que só ele tem,
um conjunto de limitações que só ele tem, uma fórmula de recursos combinados
que nunca se repetirá na História.
Daí a idiotice de questões como “quem foi melhor, Pelé ou
Maradona”, perguntas sem sentido que servem apenas para fornecer a
areia-movediça mental em que vive a grande maioria dos aficionados do futebol.
Pelé tinha um físico impressionante, poderia ser
comparado com um deus grego se não fosse algo maior ainda, um deus negro. Os
livros a seu respeito comprovam os índices atléticos espantosos que ele já
tinha aos 17 anos e conservou até depois dos 30. Impulsão, arranque,
velocidade, resistência ao choque físico, percepção visual, simetria e
equilíbrio de controle muscular, avaliação de distância e movimento. Tudo isso
somado a uma inteligência acima da média, e a uma personalidade forte,
inflexível, inabalável. Nos acertos e nos erros.
Maradona era o contrário disso tudo. De temperamento, era
errático, meio ameninado, piadista, vaidoso, impulsivo. Fisicamente, era a ilustração viva do besouro
que não pode voar, mas voa. Baixinho, meio barrigudinho, radicalmente canhoto. Quando
disparava rumo ao gol, o zagueiro via aquele torso de barril e pensava: “com
três passos eu alcanço ele”. Três passos depois, a bola estava no centro e o
juiz fazia pí!.
Maradona só tinha uma perna, mas a perna esquerda dele
era mais hábil do que um braço direito. O jeito de receber a bola, como se o
peito da chuteira fosse uma mão em concha. O giro do tornozelo no instante
crucial da dividida na pequena área, o bico da chuteira produzindo aquele
desvio de dois centímetros que faz a mão do goleiro passar em branco. A batida
torta de longe, produzindo efeito numa folha seca que era preciso ver por todos
os ângulos na TV para entender o acontecido.
No meio de um tropel de esbarrões no grande círculo ele
se intrometia entre os grandalhões e tocava na bola apenas uma vez, fazendo-a
rolar macia e retilínea ao longo de quinze metros na direção do gol, para a
penetração veloz do atacante que, ao lado dele, tinha que estar sempre na ponta
dos cascos, alerta para o impossível.
Outros o comparam (desta vez com mais propriedade) com
Lionel Messi, também baixinho, argentino e canhoto. Muitas jogadas de Messi
talvez não tivessem existido se Maradona não tivesse provado, antes, que se
aquilo era possível para um não-atleta, um atleta poderia fazê-lo. O mesmo
princípio que Garrincha, o maior não-atleta da História, provou na prática e
liberou milhares de garotos para tentar o impossível.
Era uma figura folclórica, também. Tinha boas frases, tal
como Romário, como Dario, como Garrincha. Quando fez um escandaloso gol de mão
na Copa do Mundo, perguntaram-lhe se o gol foi feito com a mão ou com a cabeça,
e ele disse: “Com a mão de Deus”. Não foi por menos que na Argentina criaram
uma religião em seu nome.
Nessa mesma partida, contra a Inglaterra, no jogo épico
da Copa de 1986 chamado “A Revanche das Malvinas”, fez o que dizem ter sido seu
maior gol, comendo meia dúzia de adversários desde a linha lateral até empurrar
a bola para o fundo das redes.
Qualquer clipagem saudosista no YouTube, no entanto, nos
mostra uma dúzia de gols que poderiam ganhar esse mesmo título. Muitos deles nesse
formato: a recebida da bola lá pelo meio campo, a parada, o balanço do corpo
para desconcertar o marcador e mantê-lo cauteloso enquanto o olho faz uma
avaliação rápida de distâncias e trajetos, e o pulmão se enche para a arrancada
que ao longo de 7 ou 8 segundos atravessa dezenas de metros e dá dezenas de
pequenos toques na bola acompanhados de pequenos saltos e desvios até a a
pancada final e certeira quando o goleiro define em que direção vem e é
possível colocar a bola fora do seu alcance.
Como dizem os motoristas explicando uma barruada: “Foi tudo
muito rápido”.
Valeu, Diego.