(foto: Robert Capa)
A vida na trincheira é feita de horas de ouro, segundos de diamante.
A fuzilaria não descansa, e quando menos se espera (por mais que se espere) desaba um bombardeio.
Não é proibido dormir, mas se adormecer é proibido acordar.
Eu me arrasto naquele sulco lamacento, buscando um barranco mais firme. A deslocação de ar arremessa aos ares meus amigos mais próximos. Ufa. Achei. Escapei. Por enquanto. Para sempre.
De noite, as balas traçantes costuram o ar com riscos luminosos. A escuridão é traiçoeira, mentirosa, finge que nos protege, mas bem-ou-mal nos agasalha, parece apagar em parte aquela matilha de assassinos.
Aqui na trincheira é preciso cuidado. Tem granadas que enguiçaram. Tem cacos de óculos. Tem formigueiros de escorpiões. Tem documentos alheios, amarrotados, cheios de manchas coaguladas, que a gente olha, dobra e bota no bolso, com aquela fé infantil de estar salvando alguma coisa.
Trégua. Pausa. Cilada?... Compartilhamos as latinhas de carne em conserva, abertas com baioneta, comidas com os dedos. Comparamos as de hoje com as de ontem: é uma forma de contar o tempo. Precisamos sentir que alguma coisa avançou. Achar um cantil de água virgem nos emociona. Para adormecer, conto as emoções mais recentes, sinto nelas um avanço, sinto que a esfera de que sou centro se torna mais real.
E de repente tudo desanda, é metralha, é shrapnel, é ricochete, é bala retinindo, é borrifo de sangue pra todo lado, eu me arrasto em joelhos e cotovelos, a capa empapada de lama, o fuzil inútil servindo para afastar os corpos que impedem a passagem. Passagem para onde? Tanto faz. Tudo é importante. Tudo é verdadeiro. Tudo tem a beleza-bruta de estar acontecendo.
Outra pausa. Colo o corpo ao chão. Contraio os dedos dos pés dentro das botas ensopadas, para me certificar de que continuam ali.
Todo dia é isso. Esse dia infernal que não avança, que apenas circula sobre si mesmo.
Um obus de última geração explode numa tenda. Cubro a cabeça com os braços enquanto chovem pedregulhos, canos de metal, pedaços de carne vestida. Um colega a meu lado soergue o corpo para avaliar. O instinto me faz agarrar seus cabelos e puxá-lo para baixo. A bala do sniper se espatifa no barranco a meio metro. Uma fagulha de luz cega meu olho.
Vejo tudo pela metade. Esse meio-inimigo invisível que me vê, esse inimigo que me toca e que não posso tocar.
É a vida na trincheira, e eu não a trocaria por nenhuma outra. Que fiquem os outros com suas salas e suas visitas, seus bares e seus lares, seus reveions e seus Natais, suas adegas e seus domingos. Eu não quero o véu de Maya, não quero as tranças de Circe, eu quero estar positivo-operante, eu quero estar acordado, eu quero a trincheira.
Na trincheira tudo é pão-pão queijo-queijo, quem tem o bem dá o bem, quem tem o mal dá o mal, quem nada tem recebe tudo e mata o seu tipo de fome.
Luz de trincheira, mesmo em noite de chuva, é um meio-dia que nunca passa, uma revelação-de-relâmpago sacudindo a gente e mandando: Morde esse fio elétrico, morde com toda força, pra tu ver o que é a vida.
Eu não quero o paraíso terrestre, eu quero a trincheira.
Me cubram na porrada, me descubram no inverno, me isolem, me exilem no inferno das quengas. Batam, que eu rebato. Cobrem, que eu me recobro, me recomponho, me revenho, me reponho em pé a cada baque, quebro a cara mas depois lavo o rosto, pago o mico, pego a reta, armo meu circo tomara-que-não-chova em qualquer comarca desprotegida capaz de comprar o bonde do meu currículo.
Eu poderia estar amando, estar ganhando, estar gastando, estar flanando, estar causando, estar plantando flores de retórica para a colheita dos biógrafos; mas estou na trincheira, estou na luta, estou no trampo, estou no tranco, estou no sacolejo do busão, estou no passe-sênior do metrô. Eu poderia ter buscado a cobertura avarandada e me esqueci. Eu poderia ter contratado uma percentagem vitalícia e não contratei. Não importa; tinha outra porta que já estava entreaberta e eu passei. A paz é pra quem merece a paz. O descanso é para quem honestamente cansou. Eu não quero o calor do cachimbo, eu quero o frio da navalha. Eu não quero o fogo da lareira, eu quero a luz da batalha.
Dois mil e vinte e cinco?! Quem diria. BANG. Zuiiinnn... Caramba, essa passou raspando. Vida que segue. And so it goes.
A vida na trincheira é feita de horas de ouro, segundos de diamante.
A fuzilaria não descansa, e quando menos se espera (por mais que se espere) desaba um bombardeio.
Não é proibido dormir, mas se adormecer é proibido acordar.
Eu me arrasto naquele sulco lamacento, buscando um barranco mais firme. A deslocação de ar arremessa aos ares meus amigos mais próximos. Ufa. Achei. Escapei. Por enquanto. Para sempre.
De noite, as balas traçantes costuram o ar com riscos luminosos. A escuridão é traiçoeira, mentirosa, finge que nos protege, mas bem-ou-mal nos agasalha, parece apagar em parte aquela matilha de assassinos.
Aqui na trincheira é preciso cuidado. Tem granadas que enguiçaram. Tem cacos de óculos. Tem formigueiros de escorpiões. Tem documentos alheios, amarrotados, cheios de manchas coaguladas, que a gente olha, dobra e bota no bolso, com aquela fé infantil de estar salvando alguma coisa.
Trégua. Pausa. Cilada?... Compartilhamos as latinhas de carne em conserva, abertas com baioneta, comidas com os dedos. Comparamos as de hoje com as de ontem: é uma forma de contar o tempo. Precisamos sentir que alguma coisa avançou. Achar um cantil de água virgem nos emociona. Para adormecer, conto as emoções mais recentes, sinto nelas um avanço, sinto que a esfera de que sou centro se torna mais real.
E de repente tudo desanda, é metralha, é shrapnel, é ricochete, é bala retinindo, é borrifo de sangue pra todo lado, eu me arrasto em joelhos e cotovelos, a capa empapada de lama, o fuzil inútil servindo para afastar os corpos que impedem a passagem. Passagem para onde? Tanto faz. Tudo é importante. Tudo é verdadeiro. Tudo tem a beleza-bruta de estar acontecendo.
Outra pausa. Colo o corpo ao chão. Contraio os dedos dos pés dentro das botas ensopadas, para me certificar de que continuam ali.
Todo dia é isso. Esse dia infernal que não avança, que apenas circula sobre si mesmo.
Um obus de última geração explode numa tenda. Cubro a cabeça com os braços enquanto chovem pedregulhos, canos de metal, pedaços de carne vestida. Um colega a meu lado soergue o corpo para avaliar. O instinto me faz agarrar seus cabelos e puxá-lo para baixo. A bala do sniper se espatifa no barranco a meio metro. Uma fagulha de luz cega meu olho.
Vejo tudo pela metade. Esse meio-inimigo invisível que me vê, esse inimigo que me toca e que não posso tocar.
É a vida na trincheira, e eu não a trocaria por nenhuma outra. Que fiquem os outros com suas salas e suas visitas, seus bares e seus lares, seus reveions e seus Natais, suas adegas e seus domingos. Eu não quero o véu de Maya, não quero as tranças de Circe, eu quero estar positivo-operante, eu quero estar acordado, eu quero a trincheira.
Na trincheira tudo é pão-pão queijo-queijo, quem tem o bem dá o bem, quem tem o mal dá o mal, quem nada tem recebe tudo e mata o seu tipo de fome.
Luz de trincheira, mesmo em noite de chuva, é um meio-dia que nunca passa, uma revelação-de-relâmpago sacudindo a gente e mandando: Morde esse fio elétrico, morde com toda força, pra tu ver o que é a vida.
Eu não quero o paraíso terrestre, eu quero a trincheira.
Me cubram na porrada, me descubram no inverno, me isolem, me exilem no inferno das quengas. Batam, que eu rebato. Cobrem, que eu me recobro, me recomponho, me revenho, me reponho em pé a cada baque, quebro a cara mas depois lavo o rosto, pago o mico, pego a reta, armo meu circo tomara-que-não-chova em qualquer comarca desprotegida capaz de comprar o bonde do meu currículo.
Eu poderia estar amando, estar ganhando, estar gastando, estar flanando, estar causando, estar plantando flores de retórica para a colheita dos biógrafos; mas estou na trincheira, estou na luta, estou no trampo, estou no tranco, estou no sacolejo do busão, estou no passe-sênior do metrô. Eu poderia ter buscado a cobertura avarandada e me esqueci. Eu poderia ter contratado uma percentagem vitalícia e não contratei. Não importa; tinha outra porta que já estava entreaberta e eu passei. A paz é pra quem merece a paz. O descanso é para quem honestamente cansou. Eu não quero o calor do cachimbo, eu quero o frio da navalha. Eu não quero o fogo da lareira, eu quero a luz da batalha.
Dois mil e vinte e cinco?! Quem diria. BANG. Zuiiinnn... Caramba, essa passou raspando. Vida que segue. And so it goes.
