quarta-feira, 13 de julho de 2011
2607) “O Mar, a Escada e o Homem” (13.7.2011)
(The Truman Show, de Peter Weir)
Entre os sonetos de Augusto dos Anjos, este sempre me chamou a atenção pelas sugestões visuais que contém, criando um clima muito diferente do que se vê nos demais poemas. O soneto começa como um diálogo em que o Mar se dirige ao homem: “Olha agora, mamífero inferior, / À luz da epicurista ataraxia, / O fracasso de tua geografia / E do teu escafandro esmiuçador! // Ah! Jamais saberás ser superior, / Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia, / Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia / Voando ao vento o vastíssimo vapor. // Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!”
São nove versos, ou seja, a voz do Mar ocupa os dois quartetos iniciais e invade a primeira linha do primeiro terceto, preparando uma rima riquíssima (“íngreme” / “singre-me”). Ele se dirige ao Homem dizendo, basicamente (pra diluir Augusto precisa de muitos litros de conversa) que ele jamais será superior ao Mar, mesmo sendo capaz de singrá-lo com barcos ou mergulhar nele com escafandros. (E que bela aliteração, com a sugestão visual e pontuda da quilha do barco, este “voando ao vento o vastíssimo vapor”). O Mar se oferece ao Homem como um desafio intransponível ao corpo (o desafio de atravessá-lo) e à mente (o desafio de entendê-lo).
Nesse instante, porém, antes que o Homem possa responder ao Mar, interfere no diálogo um terceiro interlocutor: “E a verticalidade da Escada íngreme: / “Homem, já transpuseste os meus degraus?”. Diferentemente do Mar, que profere uma interpelação relativamente extensa, a Escada limita-se a esta breve pergunta. Mas o resultado é arrasador: “E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços, / ouvindo a Escada e o Mar, caiu de bruços / no pandemônio aterrador do Caos!”.
Posso estar delirando, a esta hora da noite, mas este poema me parece fundado na sugestão visual da letra H maiúscula, que reproduz o degrau de uma escada (não as escadas de pedra e cimento dos nossos prédios, mas as compridas escadas de madeira ou de corda de que nos servimos para escalar alguma coisa). Esse H é o de Homem, Hércules, Hélice, Hórrida... Justapostas, essas letras formam uma escada vertical que se contrapõe à superfície horizontal do Mar. Como um eixo cartesiano, um entrecruzamento de dois infinitos inacessíveis ao Homem.
Esta sugestão não me parece descabida, pois em nenhum outro ponto de sua obra Augusto dos Anjos (que aliás usa a palavra “augusto” com certa frequência, de variadas maneiras) chama a si mesmo de Hércules. Simbolismo proposital? Eu chamaria a isto de associação de idéias que beira a escrita automática dos surrealistas: a visão intuitiva de uma escada infinita que sobe ao céu lhe deixa na mente esse ícone da letra H que acaba contaminando seu vocabulário. Augusto deixa-se (num acesso de impotência tão frequente em seus poemas) cair de soluços no caos, por não ser capaz de escalar o infinito vertical da escada nem de explorar o infinito horizontal do oceano.
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