Não sei se a parteira disse
isto quando me puxou pelos pés (pois rezam as crônicas de família que eu nasci
com os pés à frente, e talvez se deva ao esforço final para extrair minha
cabeça a curiosa conformação craniana que ainda hoje conservo, e que minha mãe
descrevia como “o casco de um cavalo” em relevo, como se um alazão tivesse dado
um coice de dentro para fora da minha moleira, ou, como disse meu pai, “ele tem
um burro no lugar que seria do juízo”), mas como havia ela de não dizer isto,
quando é a primeira coisa que se deve dizer aos filhos nossos e alheios? Não
vai doer, não doerá nem agora nem nunca, pode ir em frente de olhos fechados e
peito aberto. Abra as narinas, os pulmões, o ar não vai doer, a luz também não;
isso que você acaba de sentir é uma lâmina de fogo. Aprenda a andar, a falar, a
ouvir, porque nada disso vai doer.
Não ligue para os joelhos
ralados, o tornozelo torcido, a unha levantada, a mão desmentida, o cotovelo
esfolado, o olho roxo, o lábio partido, a pele escoriada. A infância é indolor,
basta entender que ela é rápida, mesmo que dure uma eternidade e meia. Nada na
infância dói, nada doeu, tá vendo só, um sopro e a dor passa, um sopro e a vida
passa, basta soprar que tudo vai embora, tudo se acaba antes de doer, chega-se
a um limbo onde não há o que doa, e cada pessoa terá que fazer essa escolha
entre a dor e o nada, entre o tudo e o nada, entre o ser e o nada, entre o ser
e o não-ser, entre a dor do prazer e o nada-haver.
Difícil equacionar essas
generalizações para um menino olhando o primeiro patinete, a primeira bola
Drible, a primeira hora-do-recreio em território inimigo. A primeira bebedeira
em campo minado. A primeira moça, o terrível primeiro não, o não-menos-terrível
primeiro sim, a primeira impersonação das paixões alheias no seu real. Não vai
doer, bradam os estatutos do adolescentes e a Constituição de 1988. Não vai
doer, diz, quando o vulto se inclina de instrumento em punho, a voz arfante do
torturador. Não dói, dizem as promessas sorridentes da ciência que recebe chapa
branca e tarja preta. Não vai doer no seu bolso, prometem as euforias da Bolsa.
Não vai doer, você é de metal, diz o iceberg ao Titanic.