sábado, 3 de junho de 2023

4948) Democracia e linguagem (3.6.2023)





Na cabeça de muita gente, democracia é um regime onde eu tenho a liberdade de fazer o que me dá na telha sem que nenhuma autoridade interfira. Ou, como dizia impagavelmente Millôr Fernandes, “ditadura é quando você manda em mim, e democracia é quando eu mando em você”.
 
Nem vou entrar no campo minado da política, mas tento às vezes aplicar esse conceito abstrato, “democracia”, ao uso da língua e da linguagem oral, até porque não mexo com outra coisa o dia inteiro, o ano inteiro. A linguagem é a água onde eu sou peixe.
 
Sou escrevedor de profissão, e inúmeras vezes fui obrigado a negociar com revisores de jornais, revistas, editoras de livros, editoras de enciclopédias, editorias de websaites e de publicações on-line, porque certas coisas que eu havia escrito não passam no crivo gramatical e ortográfico da publicação.
 
Em geral, o revisor passa o trator por cima do meu texto, arranca tudo que lhe parece erva-daninha e planta em cima suas flores de estilo. Só vejo o resultado quando abro o livro impresso. (E de vez em quando, ao constatar a mudança que foi feita, preciso ficar dois dias de cama, com bolsa-de-gelo sobre a testa.)
 
Outras vezes, recebo as provas, antes do livro ser impresso. Em geral, concordo com 90% das mudanças feitas pelo revisor, porque são apenas maneiras diversas de dizer ou escrever, algo que (como se diz em Campina ) “não inflói nem contribói”, então eu deixo passar. Outras vezes são correções (que acabo aceitando) de coisas que eu escrevo do meu jeito. A palavra “idéias”, por exemplo – não há quem me faça escrever “ideias”. Já me pediram explicações, e dei-as.




Mas não brigo por causa disso! Quer corrigir, corrija. Às vezes, contudo, o que parece “erro” é necessário. No texto literário, principalmente. Imaginemos o seguinte diálogo:
 
– Oi, Zé. Tu é o caba que faz amplificador?
– Não, isso é Dóda, lá das Malvina. Tu já falasse com ele aqui.
 
Passando nas mãos de um revisor cauteloso, este pequeno fragmento de campinensês pode ficar horrorosamente assim:
 
– Oi, Zé. Tu és o cabra que faz amplificadores?
– Não, esse é Dóda, lá das Malvinas. Tu já falaste com ele aqui.
 
Ou seja, esses esparadrapos gramaticais desconsertaram o texto e desconcertarão o leitor.
 
Oswal de Andrade bradou pela “contribuição milionária de todos os erros”. Eu concordo, mas salientando que esse “erros” terá que vir entre aspas, forçosamente, porque não se trata de erros e sim de ruídos. Todos nós emitimos ruídos (no sentido de “distorções, interferências, modificações não-intencionais em algo que tem uma forma padrão”) quando falamos nossa linguagem pessoal.
 
E aqui vem um termo importante: existe a linguagem social e existe a linguagem pessoal. E a democracia da linguagem precisa atentar para as duas, porque o equilíbrio harmônico precisa dessa tensão permanente entre “o jeito que todo mundo fala” e “o jeito que eu falo”. Um não pode jamais cancelar o outro.
 
Se eu quiser, eu posso inventar uma linguagem que só eu conheça. Ninguém pode me proibir. Aliás, historicamente, há milhares de indivíduos que tentaram criar um idioma artificial – consultem Babel e Anti-Babel, de Paulo Rónai, um delicioso resumo dessas excentricidades. Homens (é engraçado, não tem nenhuma mulher) que dedicaram a vida a inventar uma língua sem defeitos.




Aí surge o “pobrema”. (Olha aí, um bom exemplo de distorção intencional – “pobrema” é uma forma particularizada da palavra-coletiva “problema”, pronunciada num tom de auto-ironia, bom-humor, descontração.)
 
Se eu invento uma linguagem minha, ainda que seja um pequeno glossário, como vou me comunicar?!  Acho que todo mundo conhece uma variante do conto popular em que um garoto é maltratado por um padre (que exige ser chamado de “papa-hóstia”) e depois de várias lições vocabulares ateia fogo a um chumaço de algodão no rabo do gato e grita:
 
– Acuda, seu papa-hóstia, dos braços da folgazona! Venha ver o mata-rato, com clareiamundo norabo; se não acudir com abundância, leva o demo a traficância!
 
A história completa, junto com uma divertida versão inglesa, está comentada aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2016/10/4175-acuda-seu-papa-hostia-31102016.html
 
Eu posso decidir chamar qualquer coisa por qualquer nome, mas se começar a usar esses nomes fora de casa vou ter que me explicar – e ensinar aos outros. E quem sabe possa até ter a sorte de muitas pessoas, que inventaram uma palavra e a palavra “pegou”. Ouvindo Rita Lee estes dias, pus-me a pensar em qual teria sido o primeiro grupo social em que a palavra “auê” pegou e começou a ser usada, com a multiplicidade de sentidos que tem hoje (rolo, confusão, celebração, algazarra...).




Já conversei sobre a questão da “linguagem neutra”, reivindicada por vários grupos sociais, para quebrar o binarismo sufocante de idiomas como os latinos que (de certa forma) sexualizam tudo. Já vi muitas crianças quebrando a cabeça e perguntando aos pais: “Por que é que árvore é mulher e mato é homem, pé é homem mas mão é mulher, faca é mulher mas garfo é homem, chão é homem mas parede é mulher?...”
 
Essa formulação homem-mulher está mal feita, mas é o primeiro recurso comparativo de centenas de milhões de pais sofredores, tias, avós, que se veem obrigados a avalizar os despautérios do idioma, e a sugerir lógica onde ela não existe.
 
A linguagem neutra é sociologicamente necessária, porque exprime um protesto.  Toda linguagem que exprime um protesto sofre repressão e angaria simpatias, pelo menos a minha. Os fundamentos gramaticais são questionáveis, mas dane-se, os fundamentos gramaticais de “pobrema” também são. A linguagem neutra, que tantas vezes soa incômoda, deslocada, contraditória, exprime a posição emocional e existencial de quem se sente, no mundo, incômode, deslocade, contraditórie. (Não sei se é assim – valha como exemplo.)
 
Vai colar? Não vai colar? Dirá o tempo, que mesmo assim nunca diz a última palavra, pois ambos, tempo e palavras, existem justamente em função de sua renovação constante, pela pressão de quem precisa.
 
Eu não uso linguagem neutra porque de idiossincrasias já me bastam as minhas, que são muitas; mas não por ser contra ela. Dou a maior força. Para que ser contra uma deformação da língua no sentido de mais expressividade? (Haveria problema com ela – e aqui fala o escritor de FC – se numa sociedade futura a linguagem neutra, ou alguma equivalente, fosse imposta por um Estado totalitário, ou por uma Inteligência Artificial politicamente-correta e roboticamente bem-intencionada, hipótese que já brota no horizonte.) 
 
Por força de trabalhos simultâneos, que fazem o meu dia passar rápido, tenho lido muito dois dos meus autores preferidos, Ariano Suassuna e Guimarães Rosa. São dois modelos de linguajar idiossincrático. Ariano tinha um exemplo muito bom para isso. Na opinião dele, a língua escrita precisava estabelecer uma versão-oficial das palavras, mas a língua falada ficava a cargo de cada um. Dizia: 
 
Vejam essa cadeira aqui. Quando eu escrevo essa palavra, escrevo “cadeira”, e todo mundo me entende. É a versão coletiva da palavra, serve para todos. Mas quando eu falo, eu pronuncio “cadêra”, porque sou paraibano. É a minha, ou a nossa, versão da palavra, em nossa comunicação oral. E se algum falante do português disser que não entende a pronúncia “cadêra”, bom, aí é muita má vontade, não é não?...
 
E agora voltamos à palavra “democracia”, um conceito mais escorregadio do que muçu ensaboado. É a conjugação (nem sempre fácil, como toda relação conjugal) entre a conveniência coletiva e o interesse pessoal. Uma palavra precisa ter uma forma “oficial”, sancionada pelos gramáticos, lexicógrafos, etimólogos e acadêmicos, e ao mesmo tempo admitir muitas variantes, usadas por grupos específicos, e até por indivíduos isolados.
 
A linguagem precisa de uma forma básica, essencial, consensual, coletiva. Essa base é fornecida pela "norma culta". Mas ela não é uma camisa-de-força, e sim um mero núcleo para que a nuvem de linguagens parciais possa fervilhar ao seu redor.
 
A linguagem precisa da contribuição constante de pessoas, grupos formais e informais. Precisa (por exemplo) de gírias, regionalismos, bairrismos, jargões profissionais ou comportamentais, modismos passageiros. Precisa também de toda a inventividade e força comunicativa da poesia, da prosa, do teatro, da oratória, das telecomunicações. Precisa tirar dos eruditos a carteirada da erudição, e dos incultos o trauma da incultura, e permitir que se exprimam como lhes der na telha. Alguma coisa boa acaba se incorporando. 
 
O indivíduo propõe o novo. O coletivo decide o que vai permanecer.