segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

5138) "Conclave", o filme (30.12.2024)



 
O filme Conclave (2024), de Edward Berger, está em cartaz há algum tempo e com muitas indicações a prêmios. Ele se baseia no romance homônimo de Robert Harris, que traduzi há poucos anos para a Alfaguara, e que já comentei aqui: 
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/11/4643-conclave-eleicao-de-um-papa.html
 
O filme é muito bom, com excelente direção de arte, fotografia, elenco, os habituais suspeitos de quando se elogia um filme. 
 
Para quem ainda não conhece, um breve resumo: 
 
A história começa com a morte de um Papa cujo nome nunca é pronunciado, um Papa de perfil modernizador (como o atual Papa Francisco).  Na noite de sua morte já começa a luta subterrânea pelo Poder. Vai ter início o “conclave”, o processo da eleição do novo Papa, a ser conduzido pelo Cardeal Lawrence (no livro, o Cardeal Lomeli), interpretado por Ralph Fiennes.  
 
Os principais candidatos são o canadense Tremblay (John Lithgow), o nigeriano Adeyemi (Lucian Msamati), o norte-americano Bellini (Stanley Tucci) e o italiano Tedesco (Sergio Castellitto). E entre eles começa uma ciranda de denúncias, traições, conspirações, maledicências, em que os partidários de cada um tentam bombardear as aspirações dos demais.  
 
Aconselho o filme, que, sem ser uma obra excepcional, produz um suspense razoável, com sua teia de mistérios e surpresas “tiradas da manga” pelo autor da trama. E o filme tem a vantagem adicional de projetar na tela grande a espantosa capacidade da Igreja Católica Romana para a pompa, a circunstância, a beleza visual. 




É um mundo monumental, colorido, em que insensivelmente somos levados a erguer os olhos para o céu o tempo inteiro. E não exatamente para o céu atmosférico, mas para os tetos pintados da Capela Sistina, e outros ambientes deslumbrantes. Os interiores do Vaticano não uma enorme história-em-quadrinhos em escala colossal, criada pelos maiores artistas do Renascimento. Artistas que séculos depois não foram superados.  
 
A arquitetura, a pintura e a escultura se juntam para produzir um ambiente de exaltação intelectual e afetiva, principalmente naqueles homens velhos, calejados, que dedicaram a vida inteira à crença irrestrita naquelas imagens. Vivem cercados, como dizia o poeta, por “Gênios! Deuses! Esferas! Astros! Mundos!...”  



E no meio dessa exaltação renascentista, desse  verdadeiro parque-temático bíblico, ocorrem as conspirações. 
 
O Vaticano é certamente um dos lugares onde mais se conspira à sorrelfa, à socapa. Onde homens taciturnos e poderosos pegam no braço de outro e o levam a um canto do salão para fazer uma revelação bombástica à meia-boca, para exigir juramentos de segredo e silêncio, para acenar promessas de poder. 
 
Imagino que essas redes de intrigas ocorram igualmente em lugares como a sede do Partido Comunista Chinês... o Pentágono... os corredores da ONU... o Congresso Nacional... Verdade, mas em nenhum desses lugares os conluios mafiosos acontecem cercados de tanta espiritualidade e transcendência artística. O Vaticano, sem dúvida alguma, consegue juntar as duas pontas extremas da civilização. 
 
Conclave é um filme sobre tramóias políticas, não sobre a salvação da alma, embora esse tema seja parte tão integrante daquele mundo quanto o mármore e a púrpura. 
 
O roteiro é de Peter Straughan, cujo nome desconheço e fui checar. Ele é o responsável por pelo menos dois filmes muito bem escritos: Os Homens Que Encaravam Cabras (2009) de Grant Heslov, e Tinker, Tailor, Soldier, Spy (2011) de Tomas Alfredson, baseado em John Le Carré. Competência não lhe falta. 
 
O que falta ao filme, então?  Meu palpite é que falta literatura. 
 
Quando a gente passa semanas a fio traduzindo um livro, a gente faz um mergulho mental naquele universo. É como se cada frase do livro estivesse bordada num pano, em letra cursiva, e a gente precisasse desmanchar aquele bordado sem partir a linha, e depois bordar com ela uma frase equivalente em outro idioma. 
 
O filme Conclave reconstitui com perfeição visual a ambientação do livro, que ao traduzir pesquisei exaustivamente no Google, para ter idéia daqueles salões, daqueles saguões, refeitórios, capelas, dormitórios, o micro-ambiente onde a história acontece. 
 
O filme tem um ótimo elenco, com pelo menos três atores que admiro bastante (Fiennes, Lithgow, Tucci) e um que eu não conhecia e me surpreendeu positivamente, Sergio Castellitto, que faz o reacionário e ameaçador Cardeal Tedesco. No livro, é um velhinho maquiavélico mas fisicamente frágil; no filme, Castellito o transforma num leão vicioso, acuado.  



(Sérgio Castellitto, como o "Cardeal Tedesco")

 
O problema é que no livro a narrativa acompanha o Cardeal Lawrence/Lomeli, o organizador do conclave, acompanha suas ações, seus pensamentos, suas hesitações íntimas, suas conjeturas, suas desconfianças, suas hipóteses silenciosas. A narrativa é na terceira pessoa, mas é aquela “terceira pessoa” que vai tempo inteiro colada ao personagem, escutando seu monólogo intimo. 
 
Por duas vezes ele se levantou da cama e foi até a porta, e por duas vezes voltou e se deitou novamente. Ele sabia, é claro, que não haveria nenhum clarão ou revelação súbita, nenhuma infusão repentina de certeza. Não esperava nada desse tipo. Deus não agia dessa forma. Deus já lhe mandara todos os sinais necessários. Cabia a ele agora agir de acordo. E talvez ele tivesse sempre suspeitado de que teria que fazer aquilo afinal, e era esta a razão de não ter devolvido a chave-mestra, que tinha ficado guardada na gaveta de sua mesa de cabeceira. 
(trad. BT) 
 
Lawrence/Lomeli é aquele costumeiro cristão sincero, retalhado por dúvidas, a toda hora achando-se insuficiente, inadequado, indigno das altas tarefas que lhe cabem, consciente de suas fraquezas humanas. Mas é um homem eticamente obstinado, que cultiva uma lealdade ferrenha para com o falecido Papa. E sua angústia muda de foco a cada capítulo, à medida que revelações comprometedoras vão surgindo sobre os principais candidatos ao Trono de São Pedro. 



(Ralph Fiennes, como o "Cardeal Lawrence") 

 
Lawrence/Lomeli muda de rumo a cada capítulo, apoiando ora este, ora aquele (sempre no íntimo, sem fazer proselitismo externo – afinal, ele é o responsável geral pela eleição). Dedica-se, com estoicismo, à politicagem miúda de conversar com um, com outro, com este grupo, com aquele... 
 
No livro, esse varejo de influências pode ser (e é) mais bem esmiuçado do que no filme, que mantém na maior parte do tempo uma narrativa distanciada, hierática, formal. 
 
E à medida que os candidatos eticamente comprometidos vão sendo cancelados – em grande parte pela própria atividade fiscalizadora de Lawrence/Lomeli – a narrativa vai mudando de foco aos poucos, e o nobre Cardeal começa a se revelar o famoso Narrador Não Confiável. Ele começa a perceber que à medida que derruba os candidatos indignos, está fechando as possibilidades em torno do nome de um único candidato que ele considera o menos indigno – ele próprio.  E a mosca azul do poder começa a zumbir em torno do juízo do bom cardeal. 
 
O cinema pode ter um zilhão de vantagens sobre a literatura; mas a principal vantagem que esta tem sobre ele é a capacidade de reproduzir, com clareza constante e sem esforço aparente, o que as pessoas pensam, seus sentimentos, suas intenções, seus atos-falhos, suas presunções de grandeza, seus pontos-cegos mentais. 
 
Nem falo de recursos modernistas e sofisticados como o “fluxo de consciência” (stream of consciouness) ou o monólogo interior. Estas são conquistas da literatura de cem anos atrás, já devidamente assimiladas (e simplificadas) pela literatura “mainstream”, comercial, que qualquer leitor lê e interpreta sem esforço excessivo. 
 
É a simples reprodução do que se passa na mente do personagem, inclusive raciocínios complexos e factuais (as deduções de um detetive, p. ex.) que nenhum ator ou atriz, por melhor que seja, pode reconstituir com a fisionomia ou a linguagem corporal. 
 
Existe sempre o recurso da voz em “off”: vemos o ator pensativo, e na trilha sonora escutamos sua voz, bem baixinho, dizendo o que ele pensa. Mas (como dizia um roteirista amigo meu) “a voz em off é o derradeiro recurso dos incompetentes”. 
 
O filme Conclave nos dá a narrativa quase completa. Um enredo cheio de informações curiosas sobre a Igreja Católica, sobre a política contemporânea, etc.; o que não consegue nos dar é a trajetória tortuosa da mente do Cardeal Lawrence/Lomeli, por mais que o ótimo Ralph Fiennes defenda o papel com bravura.  
 
O livro (lá vou eu repetir um chavão de sempre) é mais completo que o filme, é mais profundo, é mais detalhado, mais esclarecedor, e nos permite ver cada personagem “por dentro”, de uma maneira que nem o melhor câmera e o melhor ator conseguem nos transmitir. (Conseguem outras coisas que a literatura não alcança, é claro—as coisas que são do domínio do cinema propriamente dito, o “específico fílmico”.) 
 
O livro Conclave me deixou com vontade de ver o filme. Se eu tivesse visto primeiro o filme, não sei se teria vontade de ler o livro, porque o filme não dá tantas pistas de todos os subtextos de complexidade que há na prosa original. 
 
Comparar livros e filmes é um jogo onde nunca se ganha. Como dizia o heroizinho de Machado de Assis: “Ganha-se a vida, perde-se a batalha!”. Ou o contrário, quem sabe?  
 
[ CONCLAVE cabeça ]
 
 
 

 




sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

5137) "The Last Dangerous Visions" (27.12.2024)


 



A comunidade de ficção científica dos EUA está comemorando de maneira especial o lançamento da antologia The Last Dangerous Visions, organizada por Harlan Ellison. O livro é bom? É ruim? Não sei – ainda não li, e no momento o que menos importa é a qualidade literária. O livro é um acontecimento. 

 

Eu nunca imaginei que viveria o suficiente para ver esse livro nas vitrines (ainda que virtualmente), porque o livro é uma lenda, é um desses famosos “projetos irrealizáveis”. Passou décadas na gaveta. E depois que o próprio organizador, Ellison, morreu em 2018, aí sim. Pensei comigo mesmo: “babau, Tia Chica”. 

 

Uma coisa interessante no mundo das letras e das artes é a existência de obras que se tornam lendárias antes mesmo de existirem oficialmente. Obras que são anunciadas durante anos e anos mas demoram a vir à luz. 

 

É o fenômeno que o inesquecível Orlando Tejo batizou como “o Vai-e-Vem do Sai-Não-Sai”, quando narrou a via-crucis de redação e publicação do seu clássico Zé Limeira, o Poeta do Absurdo

 

Às vezes um filme é anunciado com algum estardalhaço, chega a ficar pronto, mas... ninguém o lança. Ele vai para o depósito da produtora. Por que? Às vezes porque todos os envolvidos concordam: ficou tão ruim que não lançá-lo dá menos prejuízo do que lançá-lo e desvalorizar o currículo de dezenas de pessoas. 

 

Ou porque o assunto é espinhoso, delicado, quem sabe? É o caso, talvez, do famoso filme de Jerry Lewis The Day The Clown Cried (1972), que ele nem chegou a completar. Este filme é a história de um palhaço de circo preso num campo de concentração nazista, onde recebe a missão de ajudar a levar as crianças para as câmaras de gás. Os poucos que viram esse filme dizem que prefeririam não ter visto. 

 

Filmes incompletos são muitos: o fato de ficarem incompletos ajuda a perpetuar seu mito, e não é impossível que décadas depois alguém arregace as mangas e resolva terminá-los. 

 

Pode ser o próprio diretor, como fez Terry Gilliam com The Man Who Killed Don Quixote, iniciado em 2000, exilado para o freezer, e concluído apenas em 2018. Pode ser algum amigo, como Peter Bogdanovich fez com The Other Side of the Wind, deixado no limbo por Orson Welles.

 

Um filme geralmente envolve gente demais, dinheiro demais, interesses demais. Problema atrás de problema. Já um disco parece ser algo mais simples, pelo menos um disco de rock, com uma banda que já toca em conjunto há anos. 

 

Quando o Guns’n’Roses anunciou um álbum chamado Chinese Democracy, a conturbada década de 1990 estava apenas começando. Alguns integrantes da banda caíram fora, as brigas internas se acirraram, mais de 50 canções foram compostas e provisoriamente descartadas, e o disco chegou a ser considerado o disco mais caro da história do rock, até ser lançado, aos trancos e barrancos, em 2008.  

 

Presta?  Não presta?  É questão de critério pessoal; o que ninguém discute é que é uma obra que nasce dentro de uma lenda. 

 

Uma via-crucis parecida foi cumprida pelo filme Chatô de Guilherme Fontes, cuja produção começou em 1995, foi intensamente discutido e questionado durante os anos seguintes, e só foi lançado em 2015.

 

Prometo não fazer aqui nenhum comentário a respeito do prometidíssimo The Winds of Winter, de George R. R. Martin, o livro final da série “A Song of Ice and Fire”, que para muitos seria a chave-de-ouro da série “Game of Thrones”, e para outros a derradeira pá de cal. 

 

Voltemos a The Last Dangerous Visions



 
 

Em 1967, Harlan Ellison lançou a antologia Dangerous Visions, que foi um modesto terremoto na ficção científica norte-americana. Ellison, um indivíduo brigão, hiper-ativo, articulado, dotado de um estilo elétrico e provocador, queria uma antologia para “desafinar o coro dos contentes”, como dizia Torquato Neto. Na introdução do livro ele dizia: “O que você tem nas mãos é mais do que um livro. Se tivermos sorte, será uma revolução”.  

 

Seu objetivo era claro: ele encomendou aos autores o conto mais desafiador, mais provocativo, mais arriscado e mais perigoso que eles tivessem na gaveta ou fossem capazes de escrever. No tema, no estilo, na linguagem, nas idéias – não importa. Ellison dizia: “Mande para mim aquele conto que NINGUÉM teria coragem de publicar. Eu tenho.” 

 


(Harlan Ellison)

 

Dangerous Visions saiu com 33 contos inéditos, foi um sucesso de vendas, teve várias reedições, alguns dos contos ganharam prêmios.  Um volume com 295 mil palavras que teve o impacto previsto pelo organizador. Dizia ele, à página xxii da edição de bolso da Signet, na introdução “Thirty-two Soothsayers”: 

 

Os escritores, um após o outro, estão pré-censurando sua obra antes mesmo de escrevê-la, porque sabem que o editor Fulano não gosta de discussões políticas nas suas páginas, ou que o editor Sicrano tem receio de explorar o sexo do futuro, ou que Beltrano não costuma pagar a não ser em forma de feijão e arroz. Então... por que se dar o trabalho de queimar todas aquelas células cinzentas num conceito audacioso, quando tudo que o síndico da revista deseja publicar é mais uma história de cientista louco?  (...)  E ninguém dizia a esses escritores: “Tire o pé do freio!  Não tem mais contraindicações!  Diga o que quiser dizer!”  Até que surgiu o presente livro. (trad. BT) 

 

Os bons resultados animaram Ellison a produzir em 1972 uma segunda antologia, Again, Dangerous Visions, desta vez com 46 histórias (algumas delas na verdade são grupos de duas ou três histórias curtas), incluindo apenas autores que não apareceram na primeira antologia; e mais uma vez ganhou elogios e prêmios. 

 

Na introdução a esse segundo volume, “As Assault of New Dreamers” (Pan, 1976), ele dizia:

 

Quatro anos e meio depois, depois de vender cinquenta mil livros em capa-dura e sabe Deus quantos livros em edições de bolso, Dangerous Visions tornou-se um divisor-de-águas (e pelo menos desta vez minhas fantasias ególatras se realizaram) e forçou a criação de um segundo volume, maior que o primeiro. (...) Ele foi reimpresso pelo Science Fiction Book Club e vendeu mais de 45 mil cópias.  (pág. ix-x) (trad. BT) 



 

Então... Ellison anuncia para 1973 um terceiro volume para encerrar a série: The Last Dangerous Visions.   

 

Que chegou às livrarias somente agora – em setembro de 2024. 

 

O que aconteceu nesse intervalo é uma dessas histórias de mercado editorial que nem sempre interessam ao grande público, mas servem para nós, escritores, editores, críticos, como um termômetro para avaliar uma porção de coisas: os riscos que autores e editores estão dispostos a correr; a evolução (ou involução) dos conceitos do que é admissível ou não numa obra literária; as fronteiras do “politicamente correto”; as brechas para propor recursos de vanguarda literária numa forma basicamente comercial e popular; as vantagens e as desvantagens da “atitude” em relação à qualidade literária, e assim por diante. 

 

O verbete da Wikipedia sobre The Last Dangerous Visions registra que por volta de 1979 a antologia já tinha crescido para um total de 113 contos, a serem publicados em três volumes. Incerteza comercial, problemas burocráticos e desentendimentos de Ellison com autores e editores foram atrasando o projeto. Muita gente disse: “Me dá meu conto de volta, já que não vai mesmo publicar”. O inglês Christopher Priest aborreceu-se tanto que escreveu um livro sobre a polêmica (The Book on the Edge of Forever, 1993). 

 

Michael Moorcock preferia reagir com bom humor: 

 

Eu e Harlan somos bons amigos. De cinco em cinco anos eu pego de volta meu conto que está na antologia, publico em outro lugar, e depois mando um conto novo para ele. 

 

Autores foram morrendo, contos foram retirados... e o volume que saiu agora se anuncia com um total de 31 contos por 23 autores. A organização coube ao heróico J. Michael Straczynski (um dos criadores das séries Babylon 5 e Sense8), amigo de Ellison e seu executor testamentário. 

 

Um dos aspectos dicutidos desta nova edição é a franqueza do prefácio (que não li) em que é discutida de forma aberta a questão da “desordem bipolar” de Ellison, fonte de muitas de suas brigas dentro do mercado editorial e do mundo literário. 

 

Aqui, uma entrevista (sem legendas) com Ellison nos anos 1970, na época em que ele já havia publicado os dois primeiros volumes da série. Ellison em plena forma. 

https://www.youtube.com/watch?v=DDxnsNw4FZI

 

E outra, de 1998, ou seja, no que podemos chamar de sua fase “madura”: 

https://www.youtube.com/watch?v=f-KueIGzn1g

 

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

5136) Natal 2024 (24.12.2024)




... e como um zero o ano se arredonda
retornando ao início, ao grão futuro;
eu aperto meu cinto e me asseguro
que agora vai, agora é pra valer... 
Cansei de só estar e nunca ser,
cansei de andar assim de casa às costas,
estas estantes cheias de respostas
todas corretas, mas que não são minhas... 
E o verão, tempestade de andorinhas
de puro fogo, entrou pela janela. 
 
A vida é bala, Bíblia, boi... e a vida é bela
para quem bebe à fonte de água pura
onde a boca devora o que procura
e o instante fugaz se torna eterno. 
“Quanto mais decadente mais moderno”,
o espelho é quem mo diz; e eu me barbeio,
me perfumo, me aprumo, me penteio,
como se fosse o derradeiro dândi
que um dia abandonou Campina Grande
rumo à conquista de outras freguesias. 
 
Era isto, afinal, o que querias?
Pós-prazer, que restou de tal desejo?
Do que eu sonhava, herdei isto que vejo;
do que eu quis, só me coube isto que tenho.
Todo Natal me visto, e aqui venho,
aqui vinho, castanhas, gorgonzolas,
entre arpejos de harpas e violas
votos sinceros de fraternidade...
e o tapete voador desta cidade
decola. Mais um ano. Mais um “round”. 
 
Eu lembro a noite, a lua, o underground,
as calçadas em festa, o riso, as rosas,
as feiticeiras, as misteriosas,
rodas de samba de cerveja erguida,
a catimba de prolongar a vida
mais além do que a vida tem direito;
o beck, o rock, o beijo, o xote... o jeito
de dar ao corpo o pouco que ele pede,
o que transborda, e o que não se mede,
o que o tempo nos traz e leva embora.  
 
Venham, dedos rosados dessa aurora,
tocar em mim e despertar meu sol!
Bacurau, cotovia, rouxinol,
cante aqui quem cantar, eu canto junto! 
Pode tudo faltar, menos assunto;
o mundo é isto, e é maior que o Mangue.
Que força é essa que me empurra o sangue
em seu cego circuito pelas veias?
Eu vou é para a Lapa! E calço as meias,
os sapatos... Tô pronto! E chamo o Uber. 
 
Faço de conta que sou um YouTuber, 
influêncer, tiktoker digital,
mais seguidores do que um general
(e menos divisões que o Vaticano).
Tanto faz! É Natal, é fim de ano,
bola ao centro... e recomeça o jogo.
Veja o exemplo maior: o Botafogo
improvável herói da própria lenda!!!
É Natal. Tudo em volta está à venda.
Menos a noite, a rua, a lua cheia. 
 
Pois seja posta a mesa, e farta a ceia
de quem calcula à pena o pouco e o tanto.
Ergo o brinde, tranquilo no meu canto,
no meu verso, no avesso da alegria...
E na paz provisória deste dia
as cantigas vão se diapasando,
harmonizam-se o quem, o onde, o quando;
tudo parece enfim fazer sentido...
Mais um ano que veio e foi vivido
e em círculo se fecha a linha, a onda... 
 
 
 
 






domingo, 22 de dezembro de 2024

5135) O orgulho do artesão (22.12.2024)



 
“Qual a diferença entre um artesão e um artista?”, pergunta uma piada antiga. E responde: “É que o artesão trabalha por dinheiro, e o artista trabalha por tesão.” 
 
Existe um prazer específico em produzir qualquer uma dessas coisas que chamamos de “obra de arte” – um livro, um filme, uma pintura, uma música... Mas esse mesmo prazer, ou algo equivalente a ele, pode ser obtido ao produzir objetos artesanais em série – bonecos de barro, de madeira, etc. 
 
Esse prazer não é exclusivo da arte, por certo. Um pedreiro tem prazer em contemplar uma parede perfeita, uma médica vê o resultado da cirurgia que fez e se orgulha, um “chef” vai às nuvens quando seu prato recebe um elogio especial... 
 
É um prazer que está ao alcance de muita gente, e por isso me surpreendo ao ver, de vez em quando, esse pedreiro, essa médica ou esse “chef” desdenharem a importância da obra de arte bem realizada. 




Uma das melhores narrativas sobre a criação artística é uma narrativa sobre culinária: A Festa de Babette (conto de Karen Blixen, ou “Isak Dinesen”, e filme de Gabriel Axel). Depois de oferecer um jantar extraordinário a um grupo de pessoas de gostos simples, Babette diz: “No mundo inteiro soa um grito que sai do coração de cada artista: Me deem a chance de fazer o melhor possível!...” 
 
Em outra obra, Contos de Inverno (Ed. 34, trad. Anna Olga de Barros Barreto), Karen Blixen amplia este exemplo, dizendo: 
 
“Vamos supor (...) que um fabricante de flautas faça uma flauta que nunca seja tocada por ninguém. Não seria uma vergonha e uma pena? Então, de repente, alguém pega e toca a flauta, e o fabricante ouve, e diz: “é a minha flauta”. (pág. 173)
 
O criador reconhece a sua criação (ou a sua criatura), porque ali existe algo de si próprio. A criação é ao mesmo tempo coletiva (é a ponta de uma longa linha de outras criações, que vem há gerações, há séculos) e individual, porque foi uma pessoa que, naquele exemplo específico, produziu algo de novo e pessoal numa linhagem de obras. 



Fazer bem feito, pouco importa o quê. Ítalo Calvino, com seu olho perceptivo para as contradições da vida, conta, na sua trilogia Nossos Antepassados
 
Em virtude de todos esses trágicos acontecimentos, o Mestre Pietrochiodo estava produzindo forcas cada vez mais engenhosas.Elas agora eram verdadeiras obras-primas de carpintaria e mecânica, assim como os cavaletes, os molinetes e outros instrumentos de tortura com os quais o Visconde Medrado extraía confissões dos prisioneiros. Eu ia com frequência à oficina de Pietrochiodo, porque era um bom espetáculo vê-lo a trabalhar com tanto afinco e entusiasmo. Mas pesava sempre uma tristeza no coração do velho carpinteiro. Os cadafalsos que ele produzia eram destinados a homens inocentes. “Como faço para conseguir encomendas de trabalhos assim, delicados, mas com outra função?! Que outros mecanismos poderiam me dar o mesmo prazer de construir?” Mas vendo que tais perguntas ficavam sem resposta, ele as afastava da mente e dedicava-se a construir seus instrumentos da maneira mais perfeita e engenhosa que podia.
 
-- Basta esquecer a finalidade a que se destinam – dizia-me, -- e olhar para eles como peças de mecanismo. Não são uma beleza?
 
Eu olhava para aquela arquitetura de traves, aquelas cordas entrecruzadas, cabrestantes conectados a roldanas, e tentava não ver corpos torturados presos àquilo, mas quando mais eu tentava mais me via pensando neles, e dizia a Pietrochiodo:
 
-- Como posso esquecer?
 
-- Pois é, meu rapaz – dizia ele. – Imagine eu.
 
(Italo Calvino: “The Cloven Viscount”, in Our Ancestors, Picador, trad. Archibald Colquhoun; pág. 22; edição original, 1951). (trad. BT)
 
Um orgulho contraditório, problemático, que me traz à lembrança o orgulho do protagonista da série Breaking Bad, Walter White, que se orgulha de produzir a metanfetamina mais pura e mais rigorosamente fabricada de todo o mercado das drogas do Novo México. 
 
“Fazer bem feito” é um critério que vai além da arte, mas tem tudo a ver com ela. Tem a ver também com o grau de humanização impregnado em qualquer matéria que tenha sido usada, modificada, trabalhada, desgastada pelo contato humano. 
 
Um livro muito lido, manuseado, meio amassado, cheio de frases sublinhadas e de anotações. Uma mesa de madeira exibindo círculos deixados por canecas de café e copos de bebida, riscos de facas, marcas de pancadas. Uma escada de pedra, desgastada por milhares de pés que por ali subiram ou desceram. 
 
São duas fases dessa relação amorosa entre a mão humana e os materiais da vida. A mão que pega o material bruto, sem forma, sem sentido, e lhe dá uma forma que pode ser para contemplação (uma escultura) ou para uso (uma cadeira), mas em todos os casos uma destinação que integra aquele material à vida humana. 
 
E, num segundo momento, a mão que usa, o corpo que usa e que desgasta o que outra mão criou. 



(Bertolt Brecht)

 
É o que fez Bertolt Brecht escrever, em “De Todas as Obras do Homem”:
 
De todas as obras do homem eu prefiro
as que têm marcas de uso.
As panelas de cobre com arranhões e bordas amassadas,
as facas e os garfos cujos cabos de madeira
foram desgastados por tantas mãos: formas assim
me parecem as mais nobres. Como as lajes em volta das casas antigas
pisadas por tantos pés, afundadas no solo,
e com tufos de grama brotando entre elas: sim,
essas são obras felizes. (...)



 
Primo Levi tem um livro inteiro dedicado ao ofício de produzir coisas materiais: A Chave Estrela (“La Chiave a Stella”, 1978). É uma série de capítulos quase independentes narrando sua convivência com Fausone, um operário que trabalha supervisionando (e pondo mãos à massa) a construção de pontes, viadutos, represas – obras em grande escala e que envolvem riscos de acidentes graves.
 
Em cada capítulo do livro Faussone conta para o narrador (um químico, que se presume ser o próprio Levi) algum trabalho complicado em que se meteu, os problemas que surgiram, as soluções encontradas, ou os prejuízos resultantes.
 
O amor ao próprio trabalho (infelizmente, o privilégio de uns poucos!) representa a melhor e mais concreta aproximação da felicidade na Terra. (...) Para exaltar o labor, nas cerimônias oficiais, emprega-se uma retórica insidiosa, baseada na noção de que uma louvação ou uma medalha custam menos do que um aumento de salário, e rendem mais frutos. Existe também uma retórica do extremo oposto, contudo, não propriamente cínica, mas profundamente estúpida, que tende a aviltar o trabalho, enxergando-o como algo inferior (...) como se alguém que sabe trabalhar fosse, por definição, um servo, e como se, ao contrário, alguém que não sabe executar um trabalho, ou sabe muito pouco, ou não quer aprender, fosse por essa razão um homem livre. (p. 79-80, trad. BT)
 
(The Wrench, Ed. Michael Joseph, London, 1987, trad. William Weaver)
 
O trabalho material é uma linguagem sem palavras capaz de conectar pessoas diferentes, de culturas e idiomas diferentes, de mundos diferentes. 
 
O roteirista Bo Goldman (Um Estranho no Ninho, A Rosa, Shoot the Moon, Perfume de Mulher, etc) diz que no começo de sua carreira profissional o melhor elogio que recebeu foi : “Bo, você sabe o que é uma coisa”. “You know what a thing is”. É uma maneira de dizer que o escritor nunca perde de vista o significado e a importância de tudo que temos à nossa volta. Tem um peso especial para quem escreve para o cinema – para quem é capaz de pensar em idéias universais, abstratas, e conseguir transmiti-las através de cenas onde elas se encarnam em coisas banais: um copo, um chinelo, um par de óculos. 
 
Quem sabe o que é uma coisa? Em princípio, quem é capaz de fabricar aquela coisa e disso extrair um certo prazer, um certo orgulho, uma realização profissional. E também quem é capaz de usar aquela coisa e reconhecer a quantidade de trabalho humano que foi necessário para produzi-la. 

 



quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

5134) Dicionário Aldebarã XXVII (18.12.2024)

 


(ilustração: Moebius)


O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.
 
Laupinn – Estilo arquitetônico de colunas para edifícios públicos, com colunas redondas, triangulares, quadradas, pentagonais e assim por diante, de acordo com a função do edifício. 
 
Atskont – Sistema de plantar roçados que em geral envolve umas três pessoas em fila indiana: a primeira cava um buraco, a segunda despeja sementes ali, e a terceira cobre sementes com terra, enquanto cantam baixinho uma música qualquer cuja cadência os ajuda a trabalhar em sincronia. Usa-se geralmente com um adulto acompanhado de duas crianças, para acostumá-las à rotina do trabalho. 
 
Cartunth – A sucessão de soluções improvisadas (ou “gambiarras”) que alguém providencia enquanto não resolve um problema qualquer. Soluções que acabam produzindo outros problemas colaterais, e requerendo novos improvisos, os quais se acumulam numa cadeia de situações difíceis de explicar a quem chegou agora. 
 
Akank – Terrina larga que se costuma colocar em cima da mesa durante o dia, entre as refeições, recolhendo pedaços de comida que não merecem ir para o lixo: frutas pela metade, biscoitos partidos, sanduíches incompletos, fatias de queijo da semana passada, tudo que pode ser comido sem problemas mas que em geral se perde porque fica misturado a comidas mais novas e mais atraentes. 
 
Willykunks – Um conjunto de técnicas usadas pelos estudantes para “colar” ou “filar” nos exames, e que envolvem uma infinidade de recursos: papeluchos dobrados e escondidos na roupa ou no cabelo, fórmulas copiadas na pele por baixo das roupas, etc. 
 
Vollcrep – A sensação de recordar um fato relativo a uma pessoa e ser capaz de recuperar na memória várias emoções e opiniões diferentes sobre essa pessoa, antes mesmo de lembrar quem é. Provoca descrições como: “Me disseram para entrar em contato com alguém, que não lembro agora: só sei que é uma pessoa que conheço desde a infância, de quem já me afastei por discussões tolas, voltei a ter amizade mas não consigo confiar totalmente nela, ou nele.” 
 
Guiombs – Uma espécie de lesma coriácea capaz de se alimentar de praticamente qualquer coisa digerível. Os aldebaranes as usam para ajudar na limpeza de pratos, tigelas, copos e outros utensílios após uma refeição, bem como das mesas e pia da cozinha. Elas engolem e digerem tudo que seja orgânico (cascas de frutas, migalhas, de pão, etc.), facilitando o trabalho posterior de limpeza. Algumas famílias  se afeiçoam a elas e costumam deixá-las sobre a mesa durante a refeição, alimentando-as  com ossos, farofa, etc. 
 
Hagazz-hagizz – A consciência de ter um compromisso social importante para cumprir, e  hesitação entre o interesse de comparecer, pelos prováveis resultados positivos para a vida profissional e pessoal, e o desejo de ficar em casa entregue a alguma tarefa banal que exija muito pouca energia íntima. 
 
Anspruch – A curiosa sensação de esperar por alguma coisa longamente, até por muitos anos, e no momento de satisfazer esse desejo perceber que essa expectativa tinha se tornado uma parte essencial de sua vida, e não vale a pena trocá-la por uma satisfação que, a esta altura, não passa de um anticlímax. 
 
Azunkerd – O estado de tensão psicológica de uma pessoa introvertida que precisa estar presente a um evento cheio de gente (uma festa de família, uma confraternização de trabalho, etc.) e fica dividida entre sensações opostas: a angústia da rejeição, quando percebe que ninguém dá importância à sua presença, e a angústia do julgamento, quando alguém se aproxima e tenta estabelecer contato. 
 
Egugs – Pequenos pratos comestíveis, feitos de farinha-doce torrada e prensada, servidos à sobremesa, com doces, mel, etc., que molhando o prato o tornam mais fácil de mastigar. 
 
 




domingo, 15 de dezembro de 2024

5133) A estética do Rolando Lero (15.12.2024)




 
Umberto Eco, no ensaio “Elogio do Monte Cristo” (1984) (em Sobre os Espelhos e Outros Ensaios, Nova Fronteira, trad. Beatriz Borges) comenta a curiosa linguagem desenvolvida por autores de romances-folhetim do século 19, tomando Alexandre Dumas por exemplo típico. 
 
Dumas desenvolveu nesses romances uma maneira caudalosa de narrar, com um excesso de palavras, de descrições, de diálogos. Mas isso não se deve a uma riqueza verbal típica do Barroco renascentista de Rabelais ou do Barroco caribenho-moderno de Lezama Lima, nem do Barroco tecno-político de Thomas Pynchon, Neal Stephenson ou David Foster Wallace. 
 
A verbosidade de Dumas tinha outro formato. Ao invés de um excesso de informação, proporcionava a reiteração redundante de uma informação já transmitida ao leitor. 
 
Diz Umberto Eco, à pág. 141: 
 
Dumas escrevia assim por razões de dinheiro, recebia tanto por linha e precisava esticar. Sem contar que, enquanto escrevia a duas mãos o Monte Cristo, estava ao mesmo tempo redigindo La Dame de Montsoreau, Le Chevalier de Maison Rouge, Les Quarante-Cinq. (...)



(Auguste Maquet, em foto de "Nadar") 

 
É bom notar que a expressão acima “a duas mãos” seria, mais precisamente, “a quatro mãos”, porque Dumas escreveu muitas dessas obras, inclusive o Monte Cristo, em parceria com Auguste Maquet (1813-1888), a quem descrevia a ação e as peripécias das cenas futuras, deixando ao parceiro a tarefa de as transferir por extenso para a página. (A discussão sobre que trechos eram de um ou do outro é gigantesca.) 
 
Eis que assim se explicam aqueles que, em outra ocasião, chamei de “diálogos de empreitada”, onde os interlocutores, fazendo um parágrafo a cada fala, dizem-se durante uma ou duas páginas falas de puro relacionamento, como dois desocupados num elevador. (...)
 
Dumas faz isso em todos os seus livros. Eco transcreve um longo exemplo tirado de Os Três Mosqueteiros:
 
-- Não – disse d’Artagnan - , não, confesso-o, não foi o acaso que me pôs no vosso caminho; vi uma mulher bater à porta de um amigo meu...
--- De um amigo seu? – interrompeu Mme. Bonacieux.
-- Certamente, Aramis é um dos meus melhores amigos. 
-- Aramis? Que é isso? 
-- Ora! Quereis dizer-me que não conheceis Aramis? 
-- É a primeira vez que ouço pronunciar esse nome. 
-- Mas então é a primeira vez que vindes a esta casa? 
-- Certamente.
-- E não sabíeis que era habitada por um jovem? 
-- Não.
-- Por um mosqueteiro?
-- Realmente não.
-- Então não era ele que vínheis visitar? 
-- Nem por sonho. Como viu, a pessoa com quem falei é uma mulher. 
-- É verdade, mas essa mulher é uma amiga de Aramis. 
-- Nada sei sobre ela.
-- Mora com ele.
-- Isso não me diz respeito.
-- Mas quem é?
-- Oh! Este não é um segredo meu. (...) 



E nesse ritmo seguem-se páginas e mais páginas, pagas ao autor por linha, o que tem como consequência estética a criação de tais diálogos entrecortados, um ping-pong verbal que só de vez em quando reproduz a velocidade de uma conversa normal, e está ali apenas para encompridar conversa. 
 
As publicações populares pagavam por linha, mas já no século 20 esse critério evoluiu para número de palavras, ou por número de caracteres – medidas mais exatas. A cada sistema, correspondem técnicas específicas, como na piada do diálogo entre tradutores: 
 
Tradutor 1 – Como você traduz “again”?...
Tradutor 2 – Depende. Se me pagam por número de palavras, “outra vez”. Se pagam por número de caracteres, “novamente.



(Marlise Neyer)

 
Contratos altamente vantajosos eram firmados com os autores de maior sucesso. Marlise Meyer, no clássico Folhetim – Uma História (Companhia das Letras, 1996), observa:
 
Com o sucesso, Dumas assina com Le Siècle um contrato de colaboração exclusiva: 100 mil linhas por ano, a um franco e meio a linha. Para multiplicar o rendimento, Dumas encontra o diálogo monossilábico e introduz uma série de figurantes pouco loquazes. Donde, a partir de certo momento, precaução dos diretores de jornal: a linha tem de ser completa, e Dumas acaba matando vários personagens tornados inúteis. (pág. 61)
 
Umberto Eco confessa que por essas e outras teve que largar no meio uma encomenda da editora Einaudi para traduzir o Monte Cristo ao italiano, e pela primeira vez considerou a sério esses gigantescos diálogos enche-linguiça. O que fazer? Ser fiel ao original? Ser fiel ao leitor? 
 
Que deveria fazer o tradutor para responder a um desafio de tal espécie? Se traduz ao pé da letra, sua dignidade se rebela, a mão hesita em repetir sem motivo a mesma palavra, a mesma expressão pré-fabricada, poucas linhas depois; o tédio exigiria que pulasse, enxugasse, encurtasse. (p. 144) 
 
Surge a questão ética da fidelidade ao autor, mas neste ponto o escritor italiano invoca, com pragmatismo, a necessidade de saber quem é o autor, o que buscava com sua escrita, em que condições trabalhava, que tipo de concessões fazia, que tipo de novas concessões (desta vez ao tradutor) estaria disposto a fazer. 
 
Por acaso Dumas não era um autor que trabalhava em colaboração? E por que não, então, em colaboração com um seu tradutor cem anos depois? Dumas por acaso não era artesão pronto a modificar seu produto de acordo com as exigências do mercado? E se o mercado agora lhe pedisse uma história mais enxuta, não seria ele o primeiro a autorizar cortes, encurtamentos, elipses? (pág. 144)


 
(manuscrito de Alexandre Dumas)
 
 
 




quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

5132) Monte Cristo e a vingança (12.12.2024)



Um dos grandes sucessos do cinema francês recente é a nova adaptação de O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas. Mais uma entre tantas, porque esta é uma das narrativas de aventuras mais populares que existem. Publicada em folhetim entre 1844-1846, é a obra mais bem sucedida de Dumas, juntamente com Os Três Mosqueteiros (1844). 

 

Não é um livro qualquer; eu diria que em mais de um sentido é um livro essencial, e invoco o testemunho de um intelectual insuspeito, o grande Umberto Eco: 

 

O conde de Monte Cristo é, sem dúvida, um dos mais apaixonantes romances já escritos e, por outro lado, é um dos romances mais mal escritos de todos os tempos e de todas as literaturas. 

(“Elogio do Monte Cristo”, em Sobre os Espelhos e Outros Ensaios, Nova Fronteira, 1989, trad. Beatriz Borges, pág. 140) 

 

Falei “intelectual insuspeito”, mas não é bem o caso, pois Eco é suspeitíssimo. Grande admirador de romances policiais, de ficção científica, de histórias em quadrinhos, de folhetins oitocentistas, o nobre professor de Semiótica sabia trazer para o debate modernista ou pós-modernista as obras que lhe davam prazer, e forçava o colegiado a dedicar-lhes tempo e atenção. 



Monte Cristo é provavelmente um livro que merece as duas avaliações de Eco. Nunca o li por completo, embora já tenha possuído umas duas ou três edições diferentes. É aquele livro em que você lê 300 páginas e aí percebe (como diz um amigo meu) “que mal conseguiu sair da Rodoviária”. A viagem vai ser longa. 

 

O filme francês, escrito e dirigido por Matthieu Delaporte e Alexandre de La Patellière, tem três horas (ou pouquinho menos) de duração, e omite partes inteiras do romance – por exemplo, as aventuras de Edmond Dantès entre o momento em que encontra o tesouro, e o momento em que, anos depois, ostentando o nome de Monte Cristo, desembarca em Paris para mostrar que a vingança é um prato que se serve frio. Ou (mais de acordo com sua época) é uma dívida que se faz crescer com o fermento dos juros compostos. 

 

Não custa nada fazer um breve resumo do enredo. Edmond Dantès é um jovem marinheiro que se envolve sem querer nas intrigas políticas da época de Napoleão. Três homens se unem para destruir sua vida: Danglars (por inveja profissional), Villefort (que teme o testemunho de Dantès sobre fatos que presenciou) e Morcerf (que quer a noiva dele). 

 

Dantès é jogado num calabouço no castelo de If, onde passa cerca de 14 anos. Ali, faz amizade com um prisioneiro, o Abade Faria, que lhe ensina idiomas, ciências, filosofia; e lhe dá as indicações para desenterrar um tesouro que está oculto na ilha de Monte Cristo. Dantès foge da prisão, apossa-se do tesouro, e torna-se um dos homens mais ricos da Europa, agora com novo nome e nova identidade. 



(A Ilha de Monte Cristo)

 

O filme se concentra na parte mais dramática do romance: o modo como o misterioso Monte Cristo (o próprio Dantès, irreconhecível) torna-se amigo de Danglars, Villefort e Morcerf e envolve os três numa teia de gentilezas e parcerias. E de repente eles veem, com perplexidade e terror, o mundo desabar sobre suas cabeças. 

 

O filme tem uma narrativa bastante rápida, comprimindo a história talvez até demais. A personagem de “Haydée” (Anamaria Vartolomei) parece cair do céu, e sua presença só fica explicada no final. Além disso, o roteiro dá destinos diferentes a vários personagens, o que certamente terá feito muitos “dumistas” incendiarem as redes sociais francesas. 

 

Paciência. O cinema nunca foi muito respeitador com os desfechos oficiais das obras literárias. Maldo que ainda vou ver alguma adaptação de Hamlet em que o príncipe enforca o criminoso e sobe ao trono, e um Romeu e Julieta em que os dois pombinhos casam-se e são felizes para sempre. 

 

Afora isto, O Conde de Monte Cristo é o típico filmão de sucesso, com excelente direção de arte, fotografia, locações. 



Quem quiser encarar o romance, tem ao seu dispor a edição de bolso dos Clássicos Zahar, na tradução de André Telles e Rodrigo Lacerda (premiada com um Jabuti), com 1.662 páginas. 

 

Mas, o que causa a crítica ambivalente de Umberto Eco ao romance? Como é que um livro pode ser assim tão “apaixonante” e tão “mal escrito”? 

 

Eco poderia ter explicado melhor que “bem escrito” e “mal escrito” são conceitos entrelaçados, que convivem bem na mesma obra. Um livro pode ser composto de parágrafos impecáveis e estar cheio de personagens tediosos. Pode ter excelentes diálogos e uma trama idiota (ou vice-versa). Pode ser chatíssimo de ler mas recheado de lições políticas importantes; pode ter episódios emocionantes e ser cheio de erros na descrição do ambiente ou da época que aborda. 

 

No ensaio que citei acima, “Elogio do Monte Cristo” (de 1984), Umberto Eco examina essa contradição – um livro com qualidades indiscutíveis e defeitos propositais, defeitos em que o autor, Alexandre Dumas, forçou a mão para obter alguma vantagem. 

 

Diz Eco:

 

O Monte Cristo peca por todos os lados. Cheio de palavras ocas, descarado ao repetir o mesmo adjetivo a uma linha de distância, exagerado ao acumular esses mesmos adjetivos, capaz de iniciar uma divagação sentenciosa sem conseguir concluí-la, porque a sintaxe não se mantém, e assim procedendo e ofegando durante vinte linhas, é mecânico e desajeitado ao esboçar os sentimentos: seus personagens ou fremem ou empalidecem, ou enxugam grandes gotas de suor que escorrem pela testa ou, balbuciando com uma voz que nada mais tem de humana, levantam-se convulsivamente da cadeira e tornam a cair, com o autor preocupando-se sempre, obsessivamente, em repetir que a cadeira em que caíram era a mesma em que haviam sentado um segundo antes. (pág. 141) 

 

São os erros de Dumas, e os erros de todo mundo que escreve às pressas e não revisa – porque é um folhetim, e as páginas manuscritas têm que ser levadas às carreiras para a gráfica. São os erros de quem ganha por número de palavras ou de linhas, e por isto estica o texto, esmera-se em descrições de salões ou alcovas, espicha diálogos o mais que pode, sem trazer informação nova (Eco transcreve um exemplo hilário tirado dos Três Mosqueteiros, às páginas 141-143). 

 

Escrever assim é escrever mal, mas Dumas escrevia bem num outro plano, numa escala mais ampla que não a do detalhe. Escrevia “bem” na invenção de peripécias aventurescas, ou na reconstituição delas – tal como Shakespeare, ele colhia muitos dos seus argumentos em textos alheios ou registros de época. 



Quem livra a cara dele neste aspecto é a inesquecível Marlise Meyer, que conhecia o folhetim tão bem quanto Eco, e ressalva: 

 

Dumas descobre o essencial da técnica do folhetim, mergulha o leitor in media res, diálogos vivos, personagens tipificados, e tem senso do corte de capítulo. Não é de espantar que a boa forma folhetinesca tenha nascido das mãos de um homem de teatro. A relação do folhetim com o melodrama que domina então, ao mesmo tempo que o drama romântico, é estreita. Coups de théâtre múltiplos, sempre espantosos, chutes de rideau hábeis. Diga-se aliás que tanto o folhetim quanto o melodrama têm a ver com a forma romanesca que precede o folhetim em termos de popularidade: o chamado romance negro, ilustrado por Ann Radcliffe, e o romance na linhagem de Richardson, que lança o par jovem virtuosa e seduzida (Pamela) e o cínico sedutor (Lovelace). 

(Folhetim: Uma História, Companhia das Letras, 1996, pág. 60) 

 

Alexandre Dumas escrevia bem – na articulação de situações dramáticas, dos conflitos de interesses, dos segredos, das ameaças, das mentiras que precisam ser sustentadas, das traições, das duplicidades, das manobras de poder dentro da vida social ou familiar, do choque entre interesses pessoais e o momento político ou econômico...  

 

Neste aspecto, autores como Dumas, Balzac, Flaubert têm olho esperto, conhecimento das manobras políticas e da natureza humana: mas do ponto de vista da percepção psicológica e do trato da palavra, pode-se argumentar que Balzac escreve melhor que Dumas, e Flaubert melhor que ambos. (E talvez Proust melhor que Flaubert, etc. etc.) 

 

“Escrever” envolve níveis diferentes de criação, e nem todo mundo é igualmente bom (ou ruim) em todos. 

 

a)      A concepção “macro”, de situações humanas, de personagens, de histórias interessantes com fases sucessivas de interesse renovado, ou seja, manter um certo suspense, uma certa surpresa, uma bem-vinda imprevisibilidade nos fatos narrados; 

b)      A arte de compor os trechos menores (capítulos ou parágrafos) colocando em cada um o necessário para fazer “cair a ficha” na mente do leitor; 

c)       A habilidade para compor e alternar trechos de ação física, trechos de reflexão, de descrição, de interpretação dos fatos narrados, etc. 

d)      A habilidade para revelar sua narrativa através de frases bem articuladas, que produzam iluminação, revelação no leitor (informação nova); 

e)      Escolha de vocabulário de acordo com o que a narrativa pede – elevado, plebeu, rebuscado, abstrato – mas sempre a palavra precisa e nova, em vez do clichê desgastado que todo mundo já ouviu (as frases-feitas, os lugares-comuns que confundimos com “realismo”). 

 

Ninguém é igualmente bom em todos estes “aplicativos”, e ninguém é bom o-tempo-inteiro em qualquer um deles. Num mesmo livro de um autor podem ser encontrados exemplos contrastantes. 

 

O veredito de Umberto Eco mostra que para ele Dumas é excelente nos itens a, b e c, e fraco nos itens d e e. De modo que é preciso relativizar, e muito, esse conceito meio simplório de “bem escrito” versus “mal escrito”. O próprio Eco encaminha essa discussão, admitindo que mesmo com todos os defeitos de escrita do Monte Cristo ele é fã do livro.