terça-feira, 6 de setembro de 2022

4860) Zazie no Metrô (6.9.2022)




Zazie Dans le Métro (1959) foi o livro de maior sucesso do romancista Raymond Queneau. Um sucesso meio improvável deste autor que foi tudo em sua vida literária, menos “previsível”, “regulamentar”, “mainstream” e “formulaico”.
 
Este último adjetivo até que se encaixa. Ninguém manipulou e pedicurou as fórmulas literárias tão habilmente quanto Queneau. Não para servir-se delas visando um bestsellerismo qualquer, mas para exibi-las, comentá-las, denunciá-las molequemente. Afinal, foi ele quem escreveu o hilário e santilário Exercícios de Estilo, contando os mesmos dois parágrafos de historiazinha  de acordo com 99 fórmulas diferentes.


 
Zazie parece ter batido no paladar do público francês por uma confluência de motivos. É a história de uma garota de 11 anos que mora no interior e vai passar o fim de semana em Paris, no apartamento do tio, enquanto a mãe vai folguedear com um namorado parisiense. Zazie é descolada, desbocada, despachada e desobediente. Fala palavrão pra caralho. Foge do apartamento para conhecer o metrô (mas este está em greve!), mete-se em grandes cafusões, mete os adultos em cafusões ainda maiores. É uma personagem meio inesperada e (para seguir a fórmula das resenhas da época) “conquistou com seus modos impudentes mas encantadores o coração de toda a velha França!... “



O segundo motivo é que Louis Malle lançou já no ano seguinte o filme homônimo, uma comédia pastelânica, amalucada, irmãosmarxista, que toma muitas liberdades com a história original, o que é ótimo. Fazer um filme de um romance é também traduzi-lo. Há mais coisas em comum do que se imagina. 
 
O terceiro motivo é que Queneau aproveitou essa moldura bem sessão-da-tarde para fazer do livro um campo de experimentação do que ele chamava de “néo-français”: uma adaptação fonética e descontraída da língua francesa, cheia de neologismos e coloquialismos, além de dar saltos imprevisíveis por diferentes registros de estilo de uma frase para outra.
 
O francês é considerado uma das línguas mais formais e mais rígidas do mundo, das menos afeitas à mudança. É como um bordado renascença. Se daquele jeito está bonito, é para continuar sendo feito assim por mais 200 anos, sem mexer em nada. Queneau regaçava as mangas e dizia: “Nada coisa nenhuma, vamos mexer sim senhor.”


Num dos seus melhores livros de ensaios, Bâtons, Chiffres et Lettres (Gallimard, na edição da 1965) ele inclui um longo texto sobre sua teoria do neo-francês, “Écrit en 1955”. Ele cita Voltaire (“A escrita é a pintura da voz; quanto mais parecida, melhor”) e Proust (“Nossa língua é apenas o resultado da pronúncia errada de línguas mais antigas”). Cita a experiência feita por um produtor de TV, que entrevistava escritores famosos e a certa altura dizia que a gravação tinha terminado – o intelectual começava então a falar numa língua natural, descontraída, conversacionista, um tomaladacá num tetatete entre gente de verdade.
 
Ele cita a observação do franco-cubano Alejo Carpentier (trad. BT):
 
Estou cada vez mais convencido de que o diálogo, tal como é escrito nos romances e nas peças de teatro, não corresponde nem um pouco à mecânica da verdadeira linguagem falada (não falo nem das palavras, mas do movimento, do ritmo, do modo real de discutir, de berrar, do modo como uma idéia se emenda ou não se emenda a outra). Aos poucos, depois dos primeiros romances do gênero “realista”, acabamos nos habituando a uma espécie de realismo mecânico, uma espécie de fixação convencional da fala, que não tem absolutamente nada a ver com a fala verdadeira. Existe em nossa linguagem falada algo muito mais vivo: mais desalinhado, mais arrebatado, com mais mudanças de movimento, uma sintaxe lógica que nunca foi verdadeiramente captada.


 


 
Eu tinha duas traduções de Zazie: a de Irène Monique Harlek Cubric (Rio: Rocco, 1985) e a portuguesa de Alexandre Rodrigues (Círculo de Leitores, via Portugália, 1974). E li agora a de Paulo Werneck para a Cosac Naify (2009).
 
Zazie é uma dessas obras ao mesmo tempo impossíveis de traduzir e divertidas de tentar. Toda literatura baseada em trocadilhos, aliterações e assonâncias verte mal para outras línguas. Quem tentar manter o sentido perde os fonemas, e no caso desses efeitos os fonemas importam até mais que o sentido. É respirar fundo, tomar um gole e seguir em frente. Por outro lado, a proliferação de neologismos e invencionices verbais convida à dança. E o tradutor fica todo animado.
 
Impossível traduzir (ou ler) Zazie sem reconhecer o tempo todo que é um livro lúdico, um livro brincalhão, um livro livre e leve como um livro às vezes deve. 



A primeira (e famosa) palavra do original refere-se, enigmaticamente, ao mau cheiro de que um personagem reclama em voz alta, no meio da multidão suarenta de uma estação de trem. A frase francesa “normal” seria D'où (est-ce) qu'il pue donc tant?  Queneau recorre a toda hora a essas fonetizações, escrevendo o francês como os franceses o pronunciam, e que geralmente não tem muito a ver com a maneira como o escrevem. (Deve ser o idioma com mais letras mudas que há no mundo.) 
 
As traduções citadas acima, respectivamente como IMHC, AR e PW:
 
Doukipudonktan? (RQ)
Pômakifedô. (IMHC)
Donde parte este cheirete?  (AR)
Dondekevemtantofedô? (PW)
 
Como se vê, não há “a tradução certa”, e cada tradutor toma suas liberdades. Neste exemplo, o tradutor português desmanchou a palavra numa frase, num caso claro de tentar facilitar para o leitor. (E todo mundo faz isso, em algum momento.)
 
Algumas coisas são relativamente fáceis de traduzir, pois Queneau fonetiza em francês e é só fonetizar em português. Algumas soluções são tão óbvias que parecem consensuais: eu vi aqui a palavra “zatamente” (=exatamente), que eu uso de vez em quando, assim como “’pressionante” (=impressionante). É um jeito espontâneo da voz alta, mesmo que nem todo mundo fale assim.
 
PW traz a cada instante termos como tendi (=entendi), bojolé (=Beaujolais), rapibársdei tuiú (=apibeursdè touillou, no original), djins (=bloudjinnzes, no original)...
 
Como sempre, cada tradutor mexe onde lhe cabe. Na tradução de IMHC, o personagem Trouscaillon vira Bagalhães. A garçonete Mado Ptits-Pieds é mantida assim por PW, vira “Mada dos Pés Pequenos” em AR e “Madô-Pé-Miúdo” em IMHC. Eu, por exemplo, poderia traduzir por “Madô Pezinho”.
 
Essas notas apressadas falam apenas do vocabulário em si, mas o grande desafio de traduzir Queneau é que ele, neste livro mais que em outros, usa um variado repertório de “tons de voz”. Ele parodia a fala dos publicitários, a dos advogados, a dos locutores de TV, a dos conselheiros sentimentais, a de personagens literários... E insere esses pedaços de frases-feitas, frases-fritas, de linguagem fossilizada, facilizada, dentro do discurso normal, sem dar mais explicações, assim como o locutor que vos fala está fazendo agora, de maneira tão fluida que os linguistas futuros coçarão as carecas tatuadas para entender “que diabos querr dizerrr isto”.



Algum leitor pode meter os pés e dizer: “Deus me livre de ler um livro tão intelectual, onde é preciso ser PhD em literatura e linguística para entender!”. Pois apriore não entendeu nada, não capitou. Queneau é paródico, tal como Millôr Fernandes é paródico, como Luis Fernando Verissimo é paródico, como Paulo Leminski (o Leminski trocadilhesco e caricaturista de Catatau) é paródico. É um livro feito com a pena da gréia e a tinta da zuêra.
 
E afora isto tudo, ele conta a história de uma geração pós-guerra, forçada a crescer num mundo novo e sendo criada por gente velha. Zazie é apenas dois anos mais velha do que eu. Pertencia à geração do Antoine Doinel que Truffaut mostrou em Os Incompreendidos (“Les 400 Coups”, 1959), garotos que furtam uma máquina de escrever para comprar cigarros e gibis, e vão parar no reformatório.
 
Zazie conta, meio casualmente, que a mãe dela matou o pai dela a machadadas porque o pai abusava da filha. Daí que Zazie fica hospedada na casa do “tio Gabriel” e descobre que ele ganha a vida dançando de drag-queen numa boite gay, mas ele é casado com a misteriosa Marceline (ou será Marcel?) e se recusa a ser chamado, como ela o chama, de “hormossessual” (que ela não sabe direito o que é).
 
O clímax do livro é uma briga num bar-da-madruga (Les Nyctalopes), onde Zazie e sua turma dimaior enfrentam os mais rudes dos inimigos: garçons franceses!... Há um quebra-quebra-guabiraba generalizado, tropa de choque, mortes por metralhadora, fuga da polícia e tudo o mais. É um mundo novo – e Zazie com 11 anos parece estar mais à vontade nele do que todos os adúlteros que tentam protegê-la, enquanto reclamam que a pirralha fala muito palavrão. Palavrão o caralho.