sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

4659) Leituras de 2020 - parte 3 (1.1.2021)




Jorge Luis Borges dizia que só devemos ler por prazer, e se a leitura de um livro, mesmo o mais respeitável clássico, nos entedia, devemos largá-lo e pegar outro. Isso serve para o que chamo de leituras pessoais. Existem também as leituras de trabalho, os livros que preciso ler, goste ou não. Quando estou pesquisando algum tema especificamente literário, não me basta ler sobre o autor, preciso ler o que ele escreveu, por pior que seja.
 
Existem livros cuja leitura flui, e outros que não. Há livros que já peguei para ler mais de dez vezes, ao longo dos anos, e não consegui. São ruins? Não, muitos deles são clássicos da literatura, obras-primas indiscutíveis. Outros são de meus autores preferidos, mas cuja escrita, nesse título especificamente, não conseguiu me arrastar.
 
Outros são de amigos, e nada nos deixa com mais remorsos do que tentar ler o livro de um amigo e não conseguir. (Imagino que meus próprios livros já proporcionaram a alguém essa frustração; peço desculpas, e compreendo.)
 
Abaixo, comento alguns dos livros lidos em 2020 cuja leitura fluiu sem problemas. Outra coisa: nas minhas anotações, computo apenas os livros que li do começo ao fim. Mesmo livro de contos, artigos, poemas, etc., se só li uma parte, não anoto.


Peguei, apenas para consultar, as Memories and Adventures (1924) de Sir Arthur Conan Doyle. Um dos meus autores preferidos, e um livro que eu tinha há mais de vinte anos e até agora tinha achado a leitura chata. Desta vez, durante a consulta, acabei voltando ao início e não parei mais. Doyle é um inglesão à moda antiga, sólido, prático, patriota, tradicional. No livro, comenta várias de suas obras; repito que seus romances históricos e de FC são literariamente superiores aos livros de Sherlock Holmes.
 
Doyle comenta a certa altura que havia o hábito de serializar romances nas revistas semanais ou mensais, mas o lado negativo disso era que quando o leitor perdia um número ficava com uma lacuna na leitura. Ele considera ter sido o primeiro autor (e The Strand o primeiro periódico) a utilizar de forma deliberada o formato da série de aventuras semelhantes com um mesmo personagem, onde cada publicação contém uma história completa em si – o que ele e a revista puseram em prática a partir de 1887, com as aventuras de Sherlock e Watson.


Outra autora favorita é Ursula Le Guin, de quem li este ano dois títulos. The Other Wind (2001) é o quinto volume da série “Earthsea” a respeito deste arquipélago e da escola de magos de Roke Island. É um romance crepuscular, o último da série, pelo que entendo, em que os Magos e os Dragões de Terramar têm que firmar um pacto que envolve a aceitação da morte. Tales of Earthsea (2001) contém cinco histórias com episódios variados do ciclo, abrindo com “The Finder”, uma notável noveleta descrevendo como foi fundada a escola dos Magos, em Roke.


De outro autor que admiro muito, Stanislaw Lem, li o livro de memórias Highcastle: a Remembrance (1966), centrado na sua infância. Lem é um dos autores mais intelectuais da FC e está para a Polônia assim como Borges está para a Argentina. Sua obra gigantesca é parcialmente traduzida em inglês, e só uma dúzia de romances em português. Highcastle mostra a vidinha comum de um garoto de classe média em Lvov. São especialmente ácidos os seus comentários sobre as preparações militares dos adolescentes poloneses, ensaiando ordem-unida e exercícios militares com bastões em vez de rifles, até a invasão nazista em 1939.
 
Lem fala pouco sobre ficção científica (sobre a qual ele discorre longamente em coletâneas de ensaios como Microworlds (1984). Seu retrato de infância e adolescência entre-guerras é cheio de percepções sagazes e mostram como funciona sua mente observadora, metódica, ousada, ao mesmo tempo de grande objetividade e grande imaginação.



Por falar em ciência, uma leitura importante foi a de Sapiens (2012) de Yuval Harari, um best-seller recente que vem na linha dos grandes livros de Carl Sagan, Arthur C. Clarke ou Fritz Kahn (cujo O Livro da Natureza iluminou meus verdes anos). Harari dá uma geral na evolução da humanidade, e é muito importante a Parte 1, sobre a Revolução Cognitiva. O modo como a espécie humana criou os softwares de interpretação e modelagem da realidade, acompanhado pela linguagem, é uma coisa espantosa. A gente fala no Fogo, na Roda, etc., mas essa revolução que não deixou rastros físicos diretos foi a coisa mais fascinante.
 
O livro poderia se chamar “História da Inteligência Humana”, porque Harari expõe, com linguagem clara e simples, o quanto a civilização é uma ficção coletiva. Ele fala nas ficções jurídicas, nas ficções financeiras, nas ficções ideológicas, nas ficções empresariais. Nada disso tem existência concreta além das ações das pessoas que acreditam nelas. A civilização é um simples conjunto de narrativas (o termo está meio batido hoje; quem tiver um melhor, traga).
 
Na verdade, vivemos numa Matrix que não tem existência física, mas cuja existência abstrata é consenso de bilhões de pessoas que acreditam em Deus, em democracia, em dólar, em amor, em arte, em indivíduo... Alucinações coletivas (diria Philip K. Dick); Harari louva a capacidade do ser humano em “transmitir grandes quantidades de informação sobre coisas que não existem de fato, tais como espíritos tribais, nações, companhias de responsabilidade limitada e direitos humanos”.


Um romance de ficção científica que me impressionou foi Triton (1976) de Samuel R. Delany, um dos meus autores favoritos. Ele tem o subtítulo “Uma Heterotopia Ambígua”, e a ação transcorre quase toda numa lua de Júpiter, colonizada artificialmente, durante uma época de guerra.
 
Bron Hellstrom, o protagonista, é um funcionário mediano na administração local e se envolve com um grupo vanguardista de teatro-de-rua comandado por Spike, uma jovem atriz e dramaturga. Do encontro dos dois começam a sair fagulhas, porque acompanhando as ações de Bron durante as quase 400 páginas do livro vemos o delineamento da personalidade de um sujeito egocêntrico, determinado, inseguro, ousado, bem intencionado, catastroficamente desastroso em seus relacionamentos interpessoais.
 
Delany descreve com a riqueza de detalhes habitual a vida nessa ambiente high-tech, os hábitos, as roupas, as comidas, as práticas cotidianas: seus livros têm uma atenção sociológica constante ao recriar um mundo onde, aliás, as pessoas fazem cirurgias transexuais como nós aqui fazemos uma tatuagem.



Li alguns romances policiais importantes neste ano. Entre eles, um clássico que há anos eu tinha na fila: Death From a Top Hat (1938) de Clayton Rawson, um dos mestres do “crime impossível”. É o romance de estréia de Rawson e tornou-se um clássico, por ser o livro que explorou de maneira mais complexa (e cheia de reviravoltas inesperadas) a proximidade entre o romance policial e a magia de palco, com seus truques mecânicos e suas ilusões perceptivas.
 
Rawson introduziu neste livro O Grande Merlini, um mágico novaiorquino que se torna detetive para competir com criminosos que – no presente caso – estão assassinando os participantes de uma “grande noite” promovida pela Society of American Magicians. Não preciso dizer que cada um dos crimes é cometido da maneira mais complexa possível, bem ao estilo de Ellery Queen, John Dickson Carr e outros clássicos daquela época. O romance é uma antologia de efeitos e de truques; literariamente, talvez Rawson funcione melhor no âmbito do conto, onde suas idéias espantosamente simples e originais têm um impacto mais nítido, numa trama única e compacta que o leitor tem condições de visualizar.
 
Matei este ano a saudade de um dos escritores que mais gosto, Fredric Brown, que hoje parece ser mais conhecido pela sua ficção científica (sempre rápida, satírica, cheia de sacadas leves mas brilhantes) do que pelos seus romances policiais sempre ótimos.


É o caso de The Screaming Mimi (1949), um belo passeio pelo submundo de Chicago, por onde o repórter William Sweeney vagueia procurando um serial killer. A pista principal é uma estatueta de uma mulher gritando de terror, a “Mimi” do título. Sweeney é um desses detetives por conta própria capazes de se meter em confusões que um policial de uniforme evitaria a todo custo. O melhor, aqui, é o realismo sem-nonsense com que Brown descreve todas as peripécias e todos os ambientes da investigação, mesmo que pareçam absurdos às vezes. O clímax tem uma reviravolta de enredo típica de Brown, e um desfecho notável em que Sweeney, desarmado, precisa ficar falando durante horas diante do assassino para evitar ser morto.


Ainda melhor do que este é Madball (1953), onde Fredric Brown volta ao ambiente dos carnivals, aquele misto de circo e de parque-de-diversões ambulante tipicamente norte-americano. Numa narrativa em que cada capítulo salta para o ponto de vista de um personagem diferente, vemos os crimes violentos e os conflitos de interesse entre artistas, técnicos, agregados, cartomantes, dançarinas e toda a fauna humana de um carnival. O enredo: antes do início da narrativa, dois membros do carnival praticaram um roubo enorme e esconderam o dinheiro nas instalações do parque ambulante; logo em seguida, sofreram um acidente de carro em que um deles morre e o outro escapa, mas logo é assassinado. Começa então a caça ao tesouro: em que local do parque eles esconderam a grana?
 
Num livrinho de 192 páginas, Brown comprime uma narrativa rápida, vívida, cheia de personagens banais e marcantes. As cenas de sexo são indiretas mas com sensualidade e malícia. O desenho dos personagens é de uma riqueza inesperada nesse tipo de pulp fiction, que oscila sempre na corda-bamba entre melodrama criminal exagerado e realismo psicológico.


(continua nas próximas postagens)