Peguei, apenas para consultar, as Memories and Adventures (1924) de Sir Arthur Conan Doyle. Um
dos meus autores preferidos, e um livro que eu tinha há mais de vinte anos e
até agora tinha achado a leitura chata. Desta vez, durante a consulta, acabei
voltando ao início e não parei mais. Doyle é um inglesão à moda antiga, sólido,
prático, patriota, tradicional. No livro, comenta várias de suas obras; repito
que seus romances históricos e de FC são literariamente superiores aos livros
de Sherlock Holmes.
Doyle comenta a certa altura que havia o hábito de
serializar romances nas revistas semanais ou mensais, mas o lado negativo disso
era que quando o leitor perdia um número ficava com uma lacuna na leitura. Ele
considera ter sido o primeiro autor (e The
Strand o primeiro periódico) a utilizar de forma deliberada o formato da
série de aventuras semelhantes com um mesmo personagem, onde cada publicação contém
uma história completa em si – o que ele e a revista puseram em prática a partir
de 1887, com as aventuras de Sherlock e Watson.
Outra autora favorita é Ursula Le Guin, de quem li este
ano dois títulos. The Other Wind (2001)
é o quinto volume da série “Earthsea” a respeito deste arquipélago e da escola
de magos de Roke Island. É um romance crepuscular, o último da série, pelo que
entendo, em que os Magos e os Dragões de Terramar têm que firmar um pacto que
envolve a aceitação da morte. Tales of Earthsea (2001) contém
cinco histórias com episódios variados do ciclo, abrindo com “The Finder”, uma
notável noveleta descrevendo como foi fundada a escola dos Magos, em Roke.
De outro autor que admiro muito, Stanislaw Lem, li o
livro de memórias Highcastle: a Remembrance
(1966), centrado na sua infância. Lem é um dos autores mais intelectuais da
FC e está para a Polônia assim como Borges está para a Argentina. Sua obra
gigantesca é parcialmente traduzida em inglês, e só uma dúzia de romances em
português. Highcastle mostra a
vidinha comum de um garoto de classe média em Lvov. São especialmente ácidos os
seus comentários sobre as preparações militares dos adolescentes poloneses,
ensaiando ordem-unida e exercícios militares com bastões em vez de rifles, até
a invasão nazista em 1939.
Lem fala pouco sobre ficção científica (sobre a qual ele
discorre longamente em coletâneas de ensaios como Microworlds (1984). Seu retrato de infância e adolescência
entre-guerras é cheio de percepções sagazes e mostram como funciona sua mente
observadora, metódica, ousada, ao mesmo tempo de grande objetividade e grande
imaginação.
Por falar em ciência, uma leitura importante foi a de Sapiens
(2012) de Yuval Harari, um best-seller recente que vem na linha dos grandes
livros de Carl Sagan, Arthur C. Clarke ou Fritz Kahn (cujo O Livro da Natureza iluminou meus verdes anos). Harari dá uma geral
na evolução da humanidade, e é muito importante a Parte 1, sobre a Revolução
Cognitiva. O modo como a espécie humana criou os softwares de interpretação e
modelagem da realidade, acompanhado pela linguagem, é uma coisa espantosa. A
gente fala no Fogo, na Roda, etc., mas essa revolução que não deixou rastros
físicos diretos foi a coisa mais fascinante.
Um romance de ficção científica que me impressionou foi Triton
(1976) de Samuel R. Delany, um dos meus autores favoritos. Ele tem o subtítulo
“Uma Heterotopia Ambígua”, e a ação transcorre quase toda numa lua de Júpiter,
colonizada artificialmente, durante uma época de guerra.
Bron Hellstrom, o protagonista, é um funcionário mediano
na administração local e se envolve com um grupo vanguardista de teatro-de-rua
comandado por Spike, uma jovem atriz e dramaturga. Do encontro dos dois começam
a sair fagulhas, porque acompanhando as ações de Bron durante as quase 400
páginas do livro vemos o delineamento da personalidade de um sujeito
egocêntrico, determinado, inseguro, ousado, bem intencionado, catastroficamente
desastroso em seus relacionamentos interpessoais.
Delany descreve com a riqueza de detalhes habitual a vida
nessa ambiente high-tech, os hábitos, as roupas, as comidas, as práticas
cotidianas: seus livros têm uma atenção sociológica constante ao recriar um
mundo onde, aliás, as pessoas fazem cirurgias transexuais como nós aqui fazemos
uma tatuagem.
Li alguns romances policiais importantes neste ano. Entre
eles, um clássico que há anos eu tinha na fila: Death From a Top Hat (1938) de Clayton Rawson, um dos
mestres do “crime impossível”. É o romance de estréia de Rawson e tornou-se um
clássico, por ser o livro que explorou de maneira mais complexa (e cheia de
reviravoltas inesperadas) a proximidade entre o romance policial e a magia de
palco, com seus truques mecânicos e suas ilusões perceptivas.
Rawson introduziu neste livro O Grande Merlini, um mágico
novaiorquino que se torna detetive para competir com criminosos que – no
presente caso – estão assassinando os participantes de uma “grande noite”
promovida pela Society of American Magicians. Não preciso dizer que cada um dos
crimes é cometido da maneira mais complexa possível, bem ao estilo de Ellery
Queen, John Dickson Carr e outros clássicos daquela época. O romance é uma
antologia de efeitos e de truques; literariamente, talvez Rawson funcione
melhor no âmbito do conto, onde suas idéias espantosamente simples e originais
têm um impacto mais nítido, numa trama única e compacta que o leitor tem condições
de visualizar.
Matei este ano a saudade de um dos escritores que mais
gosto, Fredric Brown, que hoje parece ser mais conhecido pela sua ficção
científica (sempre rápida, satírica, cheia de sacadas leves mas brilhantes) do
que pelos seus romances policiais sempre ótimos.
É o caso de The Screaming Mimi (1949), um belo
passeio pelo submundo de Chicago, por onde o repórter William Sweeney vagueia
procurando um serial killer. A pista
principal é uma estatueta de uma mulher gritando de terror, a “Mimi” do título.
Sweeney é um desses detetives por conta própria capazes de se meter em
confusões que um policial de uniforme evitaria a todo custo. O melhor, aqui, é
o realismo sem-nonsense com que Brown descreve todas as peripécias e todos os
ambientes da investigação, mesmo que pareçam absurdos às vezes. O clímax tem
uma reviravolta de enredo típica de Brown, e um desfecho notável em que
Sweeney, desarmado, precisa ficar falando durante horas diante do assassino
para evitar ser morto.
Ainda melhor do que este é Madball (1953), onde
Fredric Brown volta ao ambiente dos carnivals,
aquele misto de circo e de parque-de-diversões ambulante tipicamente
norte-americano. Numa narrativa em que cada capítulo salta para o ponto de
vista de um personagem diferente, vemos os crimes violentos e os conflitos de
interesse entre artistas, técnicos, agregados, cartomantes, dançarinas e toda a
fauna humana de um carnival. O
enredo: antes do início da narrativa, dois membros do carnival praticaram um roubo enorme e esconderam o dinheiro nas
instalações do parque ambulante; logo em seguida, sofreram um acidente de carro
em que um deles morre e o outro escapa, mas logo é assassinado. Começa então a
caça ao tesouro: em que local do parque eles esconderam a grana?
Num livrinho de 192 páginas, Brown comprime uma narrativa
rápida, vívida, cheia de personagens banais e marcantes. As cenas de sexo são
indiretas mas com sensualidade e malícia. O desenho dos personagens é de uma
riqueza inesperada nesse tipo de pulp
fiction, que oscila sempre na corda-bamba entre melodrama criminal
exagerado e realismo psicológico.
(continua nas
próximas postagens)