quarta-feira, 8 de outubro de 2008

0582) O Flautista de Hamelin (29.1.2005)



É do inglês Robert Browning a mais famosa recriação da história do Flautista de Hamelin, um conto que cedo ou tarde aparece em nossa infância. O poema de Browning é brilhante; melhor ainda é o acontecimento misterioso que jaz por trás dele, talvez um episódio histórico, talvez uma “lenda urbana” da Idade Média. Teria acontecido no século 13 ou 14: o relato colhido pelos Irmãos Grimm fala em 26 de junho de 1284, mas o poema de Browning situa o fato em 22 de julho de 1376.

A cidade de Hamelin foi vítima de uma praga de ratos. As autoridades não sabiam mais o que fazer. Surgiu na cidade um sujeito que se apresentou como pegador-de-ratos (“Rattenfänger”), que era uma profissão informal muito comum na época. Tocando numa flauta, ele atraiu os ratos da cidade até o rio, onde todos se afogaram. Ao tentar receber o pagamento combinado, o prefeito recusou-se a pagar. Ele pegou a flauta, tocou outra música e atraiu todas as crianças da cidade, levando-as até uma montanha próxima, onde uma caverna misteriosa se abriu para que todas entrassem. E nunca mais ninguém teve notícias do Flautista ou das crianças. As crônicas históricas dizem que o episódio original envolveu apenas as crianças, e o extermínio dos ratos só foi anexado ao enredo alguns séculos depois. A lenda é uma dessas que crescem por justaposição de novos episódios a um episódio inicial. Hamelin vive ainda hoje dessa lenda; durante o verão, uma peça de teatro é montada ao ar livre para os turistas, todos os domingos. A cidade é cheia de estátuas, vitrais e monumentos recordando o Flautista.

Mas Hamelin não é a única. Brandenburgo conta a história de um tocador de realejo que levou as crianças da cidade para dentro de uma montanha; parece ser uma mera transposição de local, e não uma nova lenda. Outra lenda diz que na cidade de Erfurt, em 1257, cerca de mil crianças se agruparam no centro da cidade, cantando e dançando, e partiram assim de estrada afora, até chegarem em Arnstadt, onde foram recolhidas até que seus pais as trouxessem de volta. História parecida com a de Hamelin é contada em Korneuburg, na Áustria, onde as crianças foram levadas num navio e vendidas como escravos em Constantinopla. Algumas versões dizem que a montanha onde as crianças sumiram (o monte Poppenberg) tinha um túnel que ia dar na Transilvânia, e elas passaram o resto da vida lá.

Episódios reais (pragas de ratos, a “Cruzada das Crianças”) podem ter servido de origem para a lenda, mas sua longevidade se deve sem dúvida a sua lição moral nítida (castigo pelo não-pagamento de um acordo), ao cruel nivelamento entre ratos e crianças, ao poder mágico da música, à figura arlequinal e enigmática do Flautista (que geralmente é descrito como vestindo uma roupa de faixas vermelhas e amarelas). O final em suspenso, com uma pergunta que não é respondida ao longo dos séculos (para onde foram as crianças?) garante à lenda um mistério inesgotável.

0581) Os escritores reclusos (28.1.2005)


(Thomas Pynchon)

Quando Thomas Pynchon publicou em 1990 seu romance Vineland, os editores de suplementos literários espoucaram champanhes e correram à janela para soltar uma pistola-de-3-tiros. 

Há dezessete anos que o público e a crítica dos EUA esperavam o “próximo romance” do autor de Gravity´s Rainbow, um livro monumental e impressionante, que muitos disseram ser o maior romance americano do século 20 (e que foi traduzido no Brasil por Paulo Henriques Britto, com o título O Arco-Íris da Gravidade). 

O New York Times apressou-se a encomendar uma resenha do livro logo a quem? Ao indiano Salman Rushdie, autor do famoso e polêmico Os Versos Satânicos, que provocou enorme rebuliço no mundo muçulmano, fazendo com que os aiatolás do Irã lançassem contra Rushdie uma “fatwa”, ou sentença de morte. 

A sutileza e a ironia que cerca a publicação daquela resenha vem do fato de ser um escritor recluso comentando a obra de outro. 

A sentença de morte proferida pelos aiatolás, em fevereiro de 1989, fez com que Rushdie tivesse que desaparecer do mapa. Guardado por policiais britânicos (ele é cidadão britânico, nascido na Índia), Rushdie vivia trocando de apartamento toda semana, isolado da família e dos amigos, refém de assassinos desconhecidos movidos pelo fanatismo religioso ou pelo apetitoso prêmio de um milhão de dólares prometido pelo Irã a quem desse cabo dele. Durante dez ou doze anos viveu desse jeito. O tradutor do livro no Japão foi assassinado, e houve tentativas contra as vidas do editor norueguês e dos tradutores na Itália e na Turquia. 

Thomas Pynchon é outra história. Ele nasceu em 1937, estudou na Universidade de Cornell, trabalhou nos escritórios da Boeing Corporation, e depois que começou a publicar seus romances imensos e complexos, sumiu do mapa. Só se conhecem duas ou três fotografias dele, de quando era estudante. Ao que parece, mora em New York, mas a imprensa não consegue localizá-lo. Todos os contatos são feitos através de seus agentes. O cara é extremamente cioso de sua privacidade, não quer ver a mulher e os filhos envolvidos com assédio de fãs (fã de escritor faz tanta bobagem quanto fã de cantor de rock), e pronto. 

Os casos de Rushdie e Pynchon demonstram o desequilíbrio yin-yang de nossa civilização, das leis do oito-ou-oitenta a que temos de nos submeter. É o sujeito que-se-sair-de-casa-é-morto comentando a obra do sujeito que-se-sair-de-casa-é-endeusado. Ou então é o recluso-a-pulso comentando a obra do recluso-por-opção. 

Fala-se muito em escritores que se refugiam numa torre de marfim, mas existem casos em que a torre de marfim é o único lugar de onde se enxerga o mundo por inteiro, para quem realmente quer fazer isto. Ser recluso tem contra-indicações, mas tem vantagens: a possibilidade de fugir do papo furado, do “compromisso social”, dos coquetéis, das entrevistas sem propósito ou substância, dos milhares de compromissozinhos que impedem um escritor de escrever.





0580) “To do or not to do…” (27.1.2005)


(Innokenti Smoktunovsky, no papel de Hamlet)

Uma das minhas teorias prediletas é que a primeira coisa que qualquer gênio literário faria, se ressuscitasse hoje, seria revisar os próprios livros. Meteria a caneta encarnada numa porção de coisas que hoje em dia são consideradas geniais. Shakespeare é um que gemeria: “Não, não, não era bem assim que eu queria dizer!” Tomem por exemplo o seu trecho mais famoso, o monólogo do Hamlet. Não sei de nada mais inadequado do que iniciá-lo dizendo “To be or not to be, that is the question...” Porque, se continuarmos a leitura, veremos que não se trata de “ser ou não ser”, e sim de fazer ou não fazer.

O poeta nos descreve uma situação, e dois modos possíveis de reagir a ela. Ele nos pergunta o que é mais nobre, diante das injustiças do mundo, diante dos insultos, das calúnias, das flechadas e pedradas com que o mundo nos alveja durante a vida: resignar-se ou reagir? O que é mais nobre: fazer-se de mouco, dar de ombros, mandar o mundo lamber sabão, engrossar o couro, agüentar calado? Ou passar recibo, cismar dos pés, arregaçar as mangas, tomar satisfação, reagir à altura? É este o dilema filosófico proposto pelo poeta.

A questão filosófica de “ser ou não ser” nunca se colocou para mim. Meu negócio é ser, é existir, é estar vivo. Acho que a simples possibilidade de um dia eu não-ser é mais aterrorizante do que os monstros de H. P. Lovecraft. Há uma frase de William Faulkner: “Entre o Sofrimento e o Nada, eu prefiro o Sofrimento.” O problema é que no momento em que decidimos que nossa opção é “To Be”, aí sim, coloca-se o verdadeiro problema: fazer ou não fazer? Agir ou não agir? Encarar ou não encarar a barra-pesada do mundo?

Por bem ou por mal, eu acho que sou dos que não reagem. Acho mais nobre agüentar os sofrimentos do que “empunhar armas contra um mar de problemas, para enfrentá-los, e extingui-los.” Não gosto de enfrentamento. Eu sou o tipo do cara que tenta argumentar até com um tsunami: “Calma, não precisa alagar a praia desse jeito, vamos pensar numa alternativa...” Não digo isto para me gabar: é um mero diagnóstico. Admiro os guerreiros, de Spartacus a Lampião, os valentes que vão à luta e mudam o mundo, mas admiro muito mais os filósofos estóicos, aqueles que trincam o dente e pensam: “É nenhuma...” A maior parte das pessoas perde um tempo enorme tentando resolver problemas irrelevantes, pelo simples fato de que não conseguem suportá-los. São incapazes de dizer as frases mágicas “Deixa Pra Lá”, “Não Vale a Pena”, “O Que Vem de Baixo Não me Atinge” ou “Eu Só Piso em Merda Quando Não Vejo”. Desgastam-se e esgotam-se numa luta incessante contra as besteiras do mundo, como aqueles turistas americanos que nunca viram uma mosca e, aqui no Brasil, ficam querendo espantar da sala cada mosca que aparece.

Reagir? Brigar? Pegar em armas? Admiro quem faz, mas não sou eu. Meu reino não é desse mundo. E meu verbo preferido é dormir – talvez sonhar.

0579) Não é literato, mas é escritor (26.1.2005)




(A autora de Caminho das Borboletas: Meus 405 dias ao lado de Ayrton Senna, 1994)

Eu gostaria de dar um modesto palpite numa discussão interminável que rola por aí quando as pessoas folheiam um jornal e lêem as famosas “Listas dos Mais Vendidos”. Vão lendo os nomes que aparecem e dizem: “Isto é uma injustiça! Paulo Coelho não é escritor. Não escreve nada que preste... E olhe aqui: o livro de Dona Lily Marinho na lista! Ela não é escritora. Lair Ribeiro não é escritor, Içami Tiba também não é, Pasquale Cipro Neto também não... O que diabo esse pessoal, que não é escritor, está fazendo numa lista dos mais vendidos?!”

Se você pensa assim, caro leitor, permita-me discordar. Todos esses cidadãos, e muitos outros, são escritores, sim, pela simples razão de que escreveram e publicaram livros. Escritor é quem escreve, não é mesmo? Podemos, no máximo, maldar que pagaram a alguém para fazê-lo. Quando a esfuziante Adriane Galisteu publicou suas memórias do tempo de namoro com Ayrton Senna, eu me permiti um breve momento de dúvida sobre os pendores daquela senhorita para os processos sintáticos de articulação do discurso, e ousei supor que ela teria contratado um “ghost-writer”. Bastou-me, no entanto, folhear o livro para ter certeza de que foi ela mesma quem escreveu aquilo.

Sim, companheiros, trago para vocês esta má notícia: Adriane Galisteu é escritora, e nada podemos fazer quanto a isto. Escritor não é quem escreve bem: é quem escreve. (Eu, por exemplo, digo a todo mundo que sou cantor; alguém me nega este direito?) Quem escreve um livro de auto-ajuda, um livro de viagens, um livro de “pensamentos”, é escritor; quem escreve uma biografia é escritor. Estas pessoas lidam com a palavra escrita, com o discurso verbal, e têm o direito de se proclamarem escritores. Sem falar que há escritores técnicos, escritores especializados, que publicam livros sobre Gastroenterologia, sobre Jardinagem, sobre Direito Constitucional, sobre Informática. São escritores, sim senhor. Usam o discurso verbal para expor idéias ou agrupar informações sobre as suas respectivas áreas de trabalho.

O que esses indivíduos não são é literatos. Eles não praticam a arte da Literatura, a qual, por coincidência, também se manifesta através do discurso verbal. Toda Literatura se manifesta pelo discurso verbal, embora nem todo discurso verbal seja Literatura. A arte da Literatura, cujo praticante pode ser chamado de “Literato” (acho uma palavra horrível, mas na falta de outra, vá ficando esta) envolve a ficção (o romance, o conto, a novela, etc.), a poesia, a crônica (que tem uma interface com o Jornalismo), a Dramaturgia (que tem uma interface com o Teatro), etc. Quem pratica isto é, além de escritor, literato, e aí tenho outra má notícia, porque não é preciso ser um bom literato para ser literato. O pior literato que você imaginar é tão literato quanto Machado de Assis. Quem os define não é a qualidade do que produzem, é a natureza da atividade a que se dedicam.