Os livrinhos chamados “Escolha Sua Aventura” (“Choose
Your Adventure”) eram, cerca de quarenta anos atrás, um pequeno e simpático
nicho editorial voltado para o público infanto-juvenil, esse que hoje é chamado
de “Jovem Adulto” (“Young Adult”). É uma marca que foi criada pelos autores
Edward Packard e R. A. Montgomery.
O modelo é muito simples: é uma história movimentada, com
segmentos que variam de meia página a duas páginas, em média. Chegando a um
momento crucial, o leitor (que assume o ponto de vista de um personagem) tem
que dizer como o personagem deve agir.
Digamos que é uma aventura de piratas. Você é o capitão
do navio pirata. Seu navio vê no horizonte duas ilhas. Uma delas, maior, é
coberta de florestas e montanhas. A outra é menor, mas vê-se ali um castelo aparentemente
habitado (vê-se fumaça, etc.). Nesse ponto a narrativa se interrompe e aparece
a instrução:
Se você quer atracar com o navio e desembarcar na ilha maior, vá para o
capítulo 33.
Se você quer ir para a ilha menor e o castelo, vá para o capítulo 65.
Em cada um desses capítulos a narrativa prossegue de
acordo com a escolha feita, e daí a pouco será necessário fazer novas escolhas.
É um formato aparentemente simples, mas que pode, à
medida que as escolhas e as bifurcações se amontoam, produzir uma variedade
espantosa de situações.
Havia inclusive desfechos inesperados. Digamos que você é
jogado, de olhos vendados, num porão escuro. Aparecem duas escolhas:
Se você quer acender o isqueiro e ver onde se encontra, vá para o
capítulo 110.
Se você prefere esperar que venham buscá-lo para interrogatório, vá
para o capítulo 144.
Você escolhe o capítulo 110, e ao chegar na página
corresponde, lê:
Sinto muito: o porão estava cheio de barris de pólvora. Você foi pelos
ares. Volte para o começo de tudo.
Esse tipo de jogo existia em livro muito antes de ser
açambarcado pelos jogos de hipertexto (aqueles comercializados em forma de
disquetes), pelos video games, e pelos jogos online da web, onde é facílimo
criar essas “árvores de escolha”, com infinitas ramificações, e permitir que o
público navegue ao longo delas.
Outra série dos EUA que fez sucesso no Brasil foi E Agora Você Decide (“Twist-a-Plot”),
uma criação de R. L. Stine, o inesgotável autor da série de TV Goosebumps.
Os nostálgicos dessas séries (como dizia o lendário Big
Boy, “jovem também tem saudade!”) podem checar aqui a lista de títulos:
https://www.gurpzine.com.br/enrola-e-desenrola/
No meu passeio semanal pelo excelente saite Metafilter, veterano
fornecedor de temas para o Mundo Fantasmo, esbarrei com uma revelação inesperada.
O primeiro livrinho nesse formato de “você escolhe o que acontece agora” não
era de aventuras adolescentes, mas uma história romântica, adulta, escrita por
duas mulheres, Mary Alden Hopkins e Doris Webster, e publicada em 1960.
Mary Alden Hopkins (1876-1960), que parece ter sido a
autora com mais visibilidade na dupla, era uma jornalista e sufragista, com
muitos anos de militância na imprensa novaiorquina. Defendeu o direito das
mulheres ao voto, reformas trabalhistas, controle de natalidade e outros temas
que, um século atrás, eram muito mais nitroglicerinados do que hoje. Bateu de
frente com o governo dos EUA ao fazer críticas públicas ao seu envolvimento na
I Guerra Mundial, o que ocasionou o fechamento do jornal onde trabalhava, Four Lights, em 1917.
Sua parceria com Doris Webster (1885-1967) rendeu uma
série de obras de leitura leve com temas psicológicos, como I’ve Got Your Number (1927), que tem
como subtítulo: “Como psicanalisar você mesmo e seus amigos”. Parecem ser
livros com essa mistura de entretenimento ligeiro e exploração de temas de
sucesso no momento.
Consider the
Consequences! é uma história romântica, centrada em três personagens: uma
moça, Helene, que tem dois pretendentes, Jed e Saunders. O livro tem 146
páginas e apresenta 43 finais diferentes.
Esquecido durante muitos anos, foi redescoberto pouco
tempo atrás.
Deu origem a uma versão interativa na web, por geetheriot:
https://geetheriot.itch.io/consider-the-consequences/devlog/620173/decision-trees-and-you-well-me
Virou programa de rádio, com uma hora de duração, na voz
de James Ryan & Nina, e escolhas de narrativa votadas pelo público:
https://www.youtube.com/watch?v=SWCu6PnK5ls
Teve seu texto completo reproduzido em fac-símile no
Internet Archive, onde pode ser lido:
https://archive.org/details/consider-the-consequences-1930/page/n1/mode/2up
Todo este arrazoado serve para reforçar um dos meus
argumentos preferidos, de que muita coisa que aparece no cinema, na televisão,
nos games, etc., tem um antepassado na literatura. No presente caso, trata-se
do que chamamos de uma narrativa ramificada, com pontos de escolha, criando
universo paralelos, divergentes.
Hoje achamos que o habitat
natural de narrativas assim é o ambiente eletrônico: o computador, o celular, o
game. Mas a sua novidade estrutural
não poderia ter passado despercebida a autores de ficção literária, conscientes,
o tempo inteiro, de que dentro de um único livro podem conviver vários romances
que não passam de versões alternativas do mesmo romance.
Foi o que fizeram Mary Alden Hopkins e Doris Webster. Na
verdade, a grande sacada de uma obra assim é a sua conceoção estrutural,
pioneira. O tema, os personagens, as situações desenvolvidas, podem variar
bastante – histórias de amor, de piratas, de ficção científica, de lutas de boxe...
O que conta é a consciência ficcional de que cada
situação de escolha de um personagem “quebra o universo em dois” e daí em
diante existem dois universos alargando-se e afastando-se ao mesmo tempo.
A literatura experimental de alta qualidade tomou conta
disso, de maneira brilhante, com obras tipo O
Jogo da Amarelinha (1963) de Julio Cortázar, Avalovara (1973) de Osman Lins, A
Vida Modo de Usar (1978) de Georges Perec, Se Um Viajante numa Noite de Inverno (1979) de Ítalo Calvino e
muitos outros.
São alegorias literárias das sugestões encafifantes da
Física Quântica, e sua teoria dos muitos universos, dos mundos paralelos onde
todas as possibilidade de existência de um fato existem realmente, mas em
“corredores” distintos do Tempo, que só se pode percorrer um de cada vez.
E assim, ao que parece (não li o livro – ainda) é Consider the Consequences!. A história
de uma moça dividida entre dois rapazes, cada qual com suas qualidades e seus
defeitos, com suas vantagens e seus inconvenientes. É preciso fazer escolhas a
cada passo, e os universos se multiplicam como descendentes numa árvore
genealógica.