A biografia romanceada é um gênero literário de alto risco.
Como toda tentativa de juntar duas coisas diferentes, na esperança de agradar a
dois públicos, corre o risco de desagradar a ambos. O leitor de romances preferiria,
às vezes, que a história seguisse um caminho que lhe parece dramaturgicamente
mais promissor, mas a história não pode fazer isto, porque o autor precisa se
ater aos fatos. (Ainda escreverei uma biografia de Bob Dylan em que ele morre
naquele acidente de moto em 1966, e uma de Augusto dos Anjos em que ele vive e
escreve até os 80 anos.) Já o leitor
que tem um apego técnico às leis e regras da atividade biográfica sente-se
incomodado o tempo inteiro por certas liberdades imaginativas do biógrafo. Inventar cenas, diálogos e pensamentos e
atribuí-las a uma vida que de fato aconteceu parece uma coisa meio desonesta. É
como retocar uma foto no Photoshop incluindo objetos que não estavam lá.
Isto me volta à mente com o lançamento recente de Edgar
Allan Poe, o Mago do Terror de Jeanette Rozsas (Melhoramentos). É um livro
agradável, muito ilustrado, com cronologia e bibliografia, e, até onde pude ver
(não li o livro todo), dramatiza de maneira não-invasiva os fatos conhecidos da
vida de Poe, um dos escritores mais biografados e mais estudados do mundo (até
eu já fiz um livro sobre ele). Poe se relacionou e se correspondeu com centenas
de pessoas que deixaram testemunhos escritos sobre sua convivência. É possível
reconstituir encontros que teve com A ou B, diálogos, reuniões, conferências
que proferiu, fatos da sua vida pessoal, etc.
O biógrafo-romancista tem em mãos duas ou três versões incompletas de
uma briga de Poe com Fulano, por exemplo; cabe a ele escrever a cena como se a
tivesse presenciado, tentando manter-se fiel aos documentos que são de
conhecimento público, e usando sua “licença para mentir”, mas mentir no bom
sentido – preencher com material “neutro” os trechos que ninguém sabe como
aconteceram.
Ruy Castro, um biógrafo experiente, já disse: “Quando
eu falo que no dia tal Fulano chegou à casa de Sicrano vestindo uma camisa
azul, é porque perguntei a Sicrano qual era a cor da camisa. Não invento nada”.
Ruy Castro não chama (pelo que eu saiba) seus livros de biografias romanceadas,
mas de biografias mesmo, afirmando que cada detalhe ali está documentado. É a
vantagem de quem escreve sobre pessoas e fatos relativamente recentes
(Garrincha, a Bossa Nova, Carmen Miranda, etc.). Mais difícil é escrever sobre
quem viveu há mais de 150 anos, pois não é mais possível entrevistar
testemunhas. Temos o que ficou registrado no papel, mas não podemos fazer
perguntas específicas.