terça-feira, 10 de dezembro de 2019

4531) O detetive e o mágico (10.12.2019)




Há um subgênero do romance (e do conto) policial voltado para os Crimes Impossíveis, aqueles crimes onde uma pessoa é encontrada morta num quarto trancado por dentro, ou apunhalada num campo coberto de neve onde só se veem suas próprias pegadas, ou entra num aposento vigiado pelo lado de fora, some... e não reaparece.

Para mim, os grandes mestres desse tipo de história são John Dickson Carr (que também se assinava “Carter Dickson”), Ellery Queen, S. S. Van Dine, Edward D. Hoch e outros.

São histórias tão intrincadas e cheias de detalhes insólitos que Jorge Luís Borges, numa conferência famosa (em Cinco Visões Pessoais, Editora da UnB, 1987, 2ª. ed., trad. Maria Rosinda Ramos da Silva), classifica esse tipo de história no interior da literatura fantástica.

"Fantástica" por que? De acordo com o meu critério pessoal, essas histórias não seriam fantásticas porque nelas tudo que acontece é fisicamente possível, nenhuma lei da física é violada, etc.  Mas são histórias fundamentadas em circunstâncias altamente improváveis. Criminosos engendram assassinatos utilizando mecanismos bizarros, contando com coincidências extraordinárias, recorrendo a métodos quase surrealistas para ocultar seus movimentos e suas motivações.

E o detetive deve ter a capacidade imaginativa de entender esses procedimentos, para chegar à solução. Não são histórias sobrenaturais. São histórias insólitas. A possibilidade de que pessoas se comportassem daquele jeito na “vida real” é praticamente zero, seja na execução do crime, na ocultação de pistas, na criação de um falso álibi.

É uma espécie de “literatura Rube Goldberg”, imitando a técnica do desenhista norte-americano, de engenhocas complicadíssimas para produzir efeitos banais:


(desenho de Rube Goldberg) 

A graça desse tipo de história é que se trata de um mistério colocado em termos de problema, que deve ser analisado, entendido e decifrado. Diz Borges:

Tudo isso já se encontra nesse primeiro conto policial escrito por [Edgar Allan] Poe – que não sabia estar dando início a um novo gênero – intitulado The Murders of the Rue Morgue. Poe não queria que o gênero policial fosse algo realista; queria que fosse um gênero intelectual, um gênero fantástico, se vocês preferirem, mas um gênero fantástico fruto da inteligência, não apenas da imaginação. De ambas, as coisas, naturalmente, mas, sobretudo, da inteligência. (p. 35-36)

É uma literatura da “Realidade vs. Ilusão” – a Realidade é o crime, o modo como foi praticado, o seu autor; a Ilusão são os detalhes complicadores com que o assassino busca disfarçar a própria identidade e o método que utilizou.

E dentro desse subgênero existe outro, mais fascinante ainda: os romances policiais envolvendo truques de magia-de-palco. Sim, porque existe uma imensa afinidade de espírito entre o ilusionismo de um mágico e o de um criminoso (um criminoso desse gênero em particular). Existe uma semelhança enorme de métodos entre um cara que serra uma mulher ao meio diante de uma audiência, e um sujeito que mata outro dentro de um quarto trancado por dentro (ou que dá a todos a impressão de que foi isto que aconteceu).

Um pioneiro notável desse subgênero foi Maxwell Grant (pseudônimo de Walter Gibson), o famoso autor de The Shadow. Grant foi durante muito tempo assistente de mágicos famosos dos EUA, como O Grande Blackstone, e transferiu essa experiência para os contos sobre Norgil o Mágico, que ele publicou na década de 1930 na revista Crime Busters. Cada história de Norgil envolvia um pequeno crime ou mistério que era produzido (ou solucionado) mediante o conhecimento de algum truque de mágica.



Clayton Rawson, um discípulo de J. D. Carr, era mais complexo em concepção e superior em execução. Seu “mágico-detetive” era O Grande Merlini, que apareceu em clássicos como Death From a Top Hat (1938), The Footprints in the Ceiling (1939), e outros. Seu conto “From Another World”, publicado no Ellery Queen’s Mystery Magazine (junho 1948) é de uma rara simplicidade e engenhosidade.



Li agora há pouco Black Aura (1974) de John Sladek (1937-2000). Este autor, que também produziu ficção científica de boa qualidade, escreveu também um volumoso tratado de desmascaramento de cultos de pseudo-ciência, The New Apocrypha – a Guide to Strange Science and Occult Beliefs (1978), onde ele mete o chanfalho em muitos casos de paranormalidade, mediunidade, curas “quânticas”, discos voadores, moto-perpétuo e outras coisas. Faz um bom par com o clássico de Martin Gardner, Mitos e Crendices em Nome da Ciência (1957).



O romance de Sladek tem como detetive um sujeito divertidamente excêntrico chamado Thackery Phin, um norte-americano vivendo em Londres, que se dedica a desmascarar um grupo de pessoas que cultuam uma médium famosa. Assassinatos e desaparecimentos impossíveis começam a acontecer, e ele acaba se envolvendo.

O mais interessante, do ponto de vista literário, é que o livro tem uma estrutura bem clássica, bem anos 1900 ou 1930, ajudado pela ambientação londrina; mas os personagens incluem figuras bem familiares ao leitor da década de 1970: um cantor pop assediado pelas fãs, indivíduos viciados em heroína, atores e técnicos de TV, e outros.

Thackery Phin não deixa de fazer citações, alusões e homenagens aos clássicos do gênero (Doyle, Chesterton, etc.) e deslinda com habilidade (e alguns lances de efeito teatral) o mistério. O livro vale pela escrita de Sladek, sempre interessante e perceptiva quanto a pequenos detalhes de ambientação e psicologia, não necessariamente (ao contrário de alguns autores desse gênero) os detalhes que terão importância na solução do caso.

É uma maneira de, tornando mais realista e mais verossímil o ambiente e as pessoas, tornar ainda mais fantástico o “crime impossível” quando acontece, e mais convincente a solução que no fim é apresentada.


(John T. Sladek)