terça-feira, 22 de dezembro de 2009

1445) A tecnologia dos corvos (31.10.2007)


A revista Science publicou uma pesquisa feita por cientistas da Universidade de Oxford na Nova Caledônia (Oceano Pacífico), investigando os hábitos alimentares de uma espécie de corvo. Segundo eles, os corvos são capazes de fabricar e guardar instrumentos rústicos que os auxiliam na busca de alimento. A pesquisa foi feita com o auxílio de uma câmara digital minúscula presa ao corpo da ave, que depois é solta na floresta e algum tempo depois capturada de novo. Isto dá aos pesquisadores acesso visual a atividades impossíveis de reproduzir em laboratório: um corvo buscando comida em seu habitat natural.

Descobriu-se que os corvos arrancam pequenos galhos, cortam fora as partes excedentes e depois os dobram para introduzi-los no ocos das árvores, conseguindo assim capturar lagartas e larvas de besouros. Também costumam procurar e curvar pequenos pedaços de arame com o mesmo fim. Quando uma dessas ferramentas se mostra útil, os corvos as guardam num lugar protegido e recorrem a elas sempre que precisam.

Eu já vi, em documentários da TV, aves pegando com o bico um graveto e introduzindo-o num oco de árvore para fisgar uma lagarta ou outra iguaria do cardápio ornitológico. Para mim, isto é uma fagulha civilizatória semelhante à cena de 2001, uma Odisséia no Espaço em que o macaco percebe que empunhando um osso pode rachar com mais facilidade o crânio de uma caça ou de um inimigo.

Mas isto envolve apenas o uso momentâneo de um “ready made”, de algo que já está ali, e que precisa apenas ter sua função deslocada. A fabricação de instrumentos é diferente, porque envolve uma capacidade de abstração de fases sucessivas do pensamento, coisa que os animais não têm. O ser humano olha para um “objeto selvagem” (fase 1) e percebe se se produzir nele tais ou tais modificações (fase 2) poderá transformá-lo em algo que servirá para alcançar um alimento de difícil acesso (fase 3).

É esta capacidade de ver o que não está diante de si e de concatenar fases sucessivas de um processo que distingue o homem dos animais. Se os corvos desbastam pequenos ramos para introduzi-los em orifícios, e se depois de usados eles os guardam para usar de novo noutro dia, isto indica uma possibilidade de lidar com dois tempos, o tempo do aqui-e-agora e o tempo em que esse aqui-e-agora, com seus possíveis problemas e suas possíveis soluções, irá se apresentar de novo. Fala-se muito da importância da mão do “Homo Faber”, o Homem Fabricador, da importância do “polegar oposto” como elemento civilizatório, porque permite empunhar objetos com firmeza. Mas para mim o mais importante é a refração da noção de tempo que ocorre no cérebro, quando o Homem (ou o Corvo) é capaz de concatenar espaços e tempos diferentes numa seqüência pragmática: “Isso que estou fazendo agora eu já fiz, já deu certo no passado, portanto preciso mantê-lo para usar de novo quando precisar”. Daí para a Bomba Atômica e a Internet é só uma questão de tempo.

1444) O ponto enigmático (30.10.2007)


Existem dois tipos de narrativas de mistério. O primeiro obedece ao que eu chamo de Protocolo da Resposta. Nestas histórias, um mistério é proposto no início, e esclarecido no final. O prazer estético resulta da comparação entre a complexidade do mistério e a engenhosidade da solução. O segundo tipo obedece ao Protocolo da Pergunta. Nele, o mistério é exposto mas não é resolvido no final; a narrativa se encerra com a pergunta ainda no ar. Nestas histórias, o prazer estético resulta da tensão não-resolvida e da possibilidade de inesgotáveis leituras posteriores. Um dos maiores equívocos dos leitores e dos críticos é julgar os méritos de uma obra que obedece ao protocolo A pelos critérios do protocolo B, e vice-versa.

Eu aprecio por igual os dois tipos. Me formei como cinéfilo numa época em que o Protocolo da Pergunta reinava soberano. A gente não ia ao cinema para buscar respostas, mas para compartilhar indagações. E, curiosamente, esses mistérios sem solução não nos deixavam nervosos, impacientes, irritados. Pelo contrário, eram fonte de fascinação intensa e faziam com que esses filmes virassem companheiros de viagem. De vez em quando voltávamos a eles, para ver se tinham algo novo a nos dizer, e sempre, tinham – mesmo que nunca fosse A Resposta.

Em A Aventura de Antonioni nunca ficamos sabendo se a moça desaparecida na ilha deserta morreu, fugiu, ou o quê. Em O Ano Passado em Marienbad de Resnais nunca ficamos sabendo se aquele casal realmente tinha tido um caso amoroso no ano anterior (como insistia em afirmar o homem) ou se os dois não se conheciam (como insistia a mulher). Em Blow Up de Antonioni nunca ficamos sabendo quem era o homem cujo cadáver o fotógrafo registrou sem querer num parque, quem o matou, por quê, e até mesmo se de fato houve crime. Em O Anjo Exterminador de Buñuel nunca sabemos que força fez aquele grupo de milionários ficarem impedidos de sair da sala onde acabaram de se reunir.

Isto tem a ver, claro, com a literatura da mesma época. Em Os Prêmios de Cortázar nunca sabemos por que motivo os passageiros do navio são proibidos de acessar certas áreas do mesmo. Nos livros de Kafka, nunca ficamos sabendo por que motivo Joseph K foi preso, por que motivo o Conde de West-West não recebe o agrimensor em seu Castelo.

Cada história destas tem no centro um Ponto Enigmático, um vazio que não pode ser preenchido por explicações. As explicações são criadas, ajustam-se provisoriamente a ele, mas não o anulam. A fascinação do mistério, a possibilidade de lidar com coisas incompreensíveis, é um dos impulsos que nos aproximam das obras de arte e das grandes narrativas. Daí, talvez, o sucesso de séries como Arquivo X (que acompanhei por muitos anos) e Lost (que infelizmente nunca assisti). Nunca temos acesso a uma visão geral do que está acontecendo, e essa tensão entre a necessidade e a impossibilidade de “saber tudo” gera nos espectadores algo que é parecido com o amor.

1443) As sete maravilhas de Campina (28.10.2007)




A cultura de massas é um efeito-cascata de modismos. Aconteceu este ano a escolha das “Sete Maravilhas do Mundo”, entre as quais ficou o nosso Cristo Redentor. Depois, o Rio de Janeiro promoveu a eleição das sete maravilhas do Estado. Agora, é Pernambuco que está escolhendo suas sete maravilhas, numa lista onde aparecem a praia de Porto de Galinhas, o Alto da Sé de Olinda, as pontes do Capibaribe, etc e tal. 

Antes que a coisa comece a degenerar em farsa e paródia, que tal fazermos um concurso para as Sete Maravilhas de Campina? Não apenas os nossos monumentos históricos, nossas belezas arquitetônicas, mas aqueles lugares que parecem encerrar em si a essência local. Sendo assim, aqui vão meus votos.

Para começar: o Açude Velho. Nada mais parecido com Campina, principalmente o Açude Velho ao anoitecer, refletindo as luzes dos prédios por entre o violeta sangüíneo do crepúsculo. Espelho maior das nossas histórias, e ainda por cima guardando a virtude mágica de enfeitiçar para sempre o estrangeiro desavisado que beber da sua água. 



Depois, o conjunto formado pela Praça da Bandeira e o prédio dos Correios, pelo seu valor arquitetônico e também por me recordar sempre os momentos emocionantes pré-Internet em que subi aqueles degraus para comprar livros vindos pelo Reembolso Postal, fossem aventuras de Sherlock Holmes em 1960 ou contos de Borges em espanhol em 1974. 



Em termos de arquitetura, tomo outra decisão salomônica: tombar por conta própria toda a Rua Maciel Pinheiro com seus sobrados e sacadas “art-déco”, aos quais nunca dei muito valor porque sempre achei que todos os prédios do mundo se pareciam aos nossos. Depois fiquei sabendo que somos raros e preciosos – vejam só o que é a vida.



Em quarto lugar permitam-me a inclusão do Estádio Presidente Vargas, por motivos históricos, poéticos e freudianos, porque ali tive as mais intensas alegrias e os mais abismais desesperos de minha ainda curta vida. 



Em quinto, o Seminário do Alto Branco. Não estranhem, mas passei 20 anos da minha vida vendo-o erguer-se à esquerda da paisagem divisada do terraço de minha casa paterna, e para mim ele sempre foi uma entidade misteriosa e medieval, guardadora de sabedoria e transcendência. 



Em sexto, eu destacaria o Colégio Estadual da Prata, o inesquecível “Gigantão” que me ensinou a vida dos 13 aos 19 anos, e cuja organização arquitetônica trago nítida e intacta na memória, sala por sala.



E para fechar eu elejo a Rodoviária velha, na Praça Lauritzen, hoje transformada em mercado popular. É um símbolo da vocação de Campina para o varejão, o mercadinho, o vuco-vuco; e foi durante décadas o lugar dos abraços, das despedidas e dos reencontros dos milhares de “paraíbas” que partiam para o Sul cheios de esperança ou dele voltavam cheios de experiência. 



Pois é. Nada de jardins suspensos, nada de obras faraônicas... Mas cada povo tem as maravilhas que lhe cabem, e eu me orgulho das minhas.