quarta-feira, 19 de novembro de 2008

0643) O jardim de infância do Rock (10.4.2005)



Vendo certa vez um documentário de TV sobre a história do rock, algumas cenas me comoveram tanto que deixei de prestar atenção à música e à narração para ficar olhando apenas aquelas imagens. Eram cenas de algum daqueles concertos de rock ao ar livre no fim dos anos 60, quando a “swinging London” estava a todo vapor. Já se viam algumas calças bocas-de-sino, algumas garotas com saias psicodélicas arrastando no chão, e cabeleiras que pareciam arbustos selvagens; mas era ainda no início do processo, e a maior parte do grupo era de rapazes de terno ou pulôver, e moças com os vestidos “tubinho” típicos da época, ou usando jeans, que eram o máximo da ousadia. Ao som de um rock qualquer, eles brincavam de roda no meio de um gramado. Alguns dos rapazes traziam pastas de documento na mão, e não as largavam: a pessoa seguinte na roda segurava com ele na alça, e assim iam dançando. Mocinhas de saia justa faziam o possível para acompanhar o ritmo cada vez mais rápido da roda que girava. Teriam todos eles entre 18 e 25 anos, e a expressão que havia em seus rostos era de êxtase, felicidade, deslumbramento e descoberta.

O rock foi muitas coisas e desempenhou muitas funções, mas uma delas, e não a menos importante, foi proporcionar a rapazes e moças da insuportavelmente repressora sociedade britânica um vislumbre do que é a infância em outras culturas. Qualquer criança de sete anos gosta de pular, virar cambalhotas, tomar banho de chuva, espadanar na lama. Qualquer criança gosta de berrar a plenos pulmões, bater em objetos que produzam barulho, desfilar por dentro de casa vestindo o roupão-de-banho da mãe e o chapéu e os óculos do pai. A imensa energia da explosão biológica que são os nossos primeiros dez anos de vida precisa dessas manifestações externas. Criança precisa produzir em volta de si mesma ecos que confirmem sua existência.

O sistema educacional inglês consistia nos prédios soturnos e asfixiantes dos colégios internos, nos terninhos militarmente impecáveis, no sistema sadomasoquista de castigos e espancamentos. Eu jamais trocaria a infância livre e solta que tive na Paraíba por uma dessas infâncias de Primeiro Mundo que reprimem, massacram, intimidam. Chamo o rock como testemunha. Assistam o The Wall do Pink Floyd, assistam Tommy do The Who para ver o seu lado negro. Já para ver o seu lado luminoso, utópico, tipo “a-infância-que-não-tivemos”, assistam Help com os Beatles. O rock serviu, para essas crianças de paletó educadas à base da vara-de-marmelo, como uma libertação provisória do sadismo de pais, monitores e professores. De repente era possível vestir roupas espalhafatosas, dançar no meio da rua, fazer barulho sem ficar de castigo. Mais do que a permissividade sexual, ou bem antes dela, o rock trouxe para aqueles jovens a percepção de que ter um corpo pode ser uma coisa agradável, e de que todo mundo tem o direito de ter sido criança em algum momento da vida.

0642) Os aventureiros e os exploradores (9.4.2005)


(O Flâneur)

Num prefácio a um romance de Arthur Machen, David Trotter vê a literatura policial inglesa do século 19, como outros a viram antes dele, como um produto da vida nas grandes cidades, da efervescência social urbana, que gera não apenas o crime, mas todo o entrecruzamento de ações, motivações e interesses ocultos que cabe a um detetive deslindar, para entender o Quem, o Como e o Por Quê de um crime. O detetive é alguém que percorre a cidade, mistura-se a todas as classes, entende como pensam e como agem, é capaz de interpretar todos os sinais da mecânica social que vê à sua volta.

Trotter faz uma comparação interessante entre o detetive e o “flâneur”, o caminhante despreocupado, tipo criado por Baudelaire para definir o homem urbano sofisticado, culto, dotado de sensibilidade poética e de curiosidade insaciável. Para Baudelaire, cabia ao poeta e ao “flâneur” a tarefa de “registrar o surgimento da modernidade nas ruas da metrópole”. Trotter vê no detetive alguém que vai um pouco mais longe: “O flâneur quer apenas observar e ser observado. Ele não se propõe a fazer o que quer que seja com as informações que reúne. Ele se detém no umbral do significado, constantemente instigado a pensar, mas não querendo, ou não podendo, transformar esse seu pensamento em ação”. O contrário disto é o detetive, conforme se auto-descreve um personagem de “The Dynamiter” de Robert L. Stevenson: “Aqui, todas as nossas qualidades importam. Nosso comportamento, nosso conhecimento do mundo, talento para a conversação, vastas quantidades de informações dispersas, tudo que somos e possuímos vem se somar para compor o caráter de um detetive. Esta é, para resumir, a única profissão indicada para um cavalheiro”.

Esta pequena, sutil e essencial distinção é equivalente à que li há pouco tempo numa entrevista do espeleólogo Bill Stone para a revista Wired. Stone é engenheiro, inventor, e sua ocupação principal é explorar cavernas subterrâneas, muitas delas cheias dágua. Nadar num lago a 1.500 metros de profundidade, na treva total, sem saber o que há do outro lado, faz parte do dia-a-dia dele. Stone já perdeu 16 colegas nestas expedições e em pelo menos sete casos teve que resgatar seus corpos pessoalmente.

Stone diz ao entrevistador que não se considera um aventureiro, e sim um Explorador. A diferença, diz, ele, reside numa única palavra: Informação. “Se você não volta da aventura trazendo dados, não fez nada”, diz ele. “É uma simples façanha. Uma simples história para contar. Mas você não realizou nada”. O Detetive nos nebulosos anos 1850 exprimia um novo tipo de relação entre o Homem e sua Cidade, mas o Explorador nestes anos 2000 mostra que esta é a antiqüíssima relação entre o Homem e seu Universo. O Explorador é aquele que arrisca a vida para descobrir um continente, descobrir a nascente de um rio, trazer uma pedra da Lua. E o que ele busca não é continente, rio ou pedra: busca o Conhecimento.

0641) O poder do dinheiro (8.4.2005)


A gente classifica as pessoas pelo que elas ganham ou pelo que gastam, mas não vejo na revista Forbes nenhuma lista de “Os 50 Indivíduos que Melhor Aplicam Seu Dinheiro”. Talvez porque, se pesquisassem mesmo, iriam descobrir que 40 dessas vagas seriam preenchidas por donas-de-casa de bairros operários, que fazem o milagre-dos-pães todo dia, antes do café da manhã.

Muita gente critica os livros de auto-ajuda que abarrotam nossas livrarias. Que tem muita besteira, tem. (Em qualquer estante ou balcão de livraria, metade é besteira. Não é questão de gênero.) Pois a auto-ajuda mais importante que eu vejo são esses livros do tipo “Aprenda a lidar com dinheiro”, “Como ganhar e como gastar”, “O segredo da inteligência financeira”... Estou inventando os títulos, porque na verdade nunca li nenhum livro desses. Se um livro ensina a lidar com muito dinheiro, não me interessa, nunca vou precisar mesmo. Se ensina a lidar com pouco, não preciso: sou PhD no assunto.

Passo cerca de um terço do meu tempo acordado pensando em dinheiro. Adoro dinheiro. Não tem melhor sensação na vida do que quando a gente passa no caixa e recebe um cheque pesado, daqueles que se a gente botar no bolso da camisa vai andar meio “penso” para um lado. E não tem sensação melhor para a auto-estima do que abrir o extrato do Banco e ver aquele saldo que parece um CEP. Dá uma sensação de super-poderes. Eu começo logo a me achar bonito.

Digo isto porque nós, os poetas, os artistas, os filósofos, temos fama de sermos indivíduos espiritualizados, que não dão atenção a essas mesquinharias da vida prática: deixamo-las para raças mais rudimentares, como os comerciantes e empresários. Pois em verdade vos digo, amigos, que nenhum comerciante acaricia um centavo recém-ganho com mais volúpia do que este modesto filósofo. Freud dizia que o dinheiro não traz felicidade porque não é um desejo de infância. Concordo que não traz a Felicidade, mas traz para mim algo mais importante do que a Felicidade: a possibilidade de comprar livros e CDs importados, a possibilidade de liquidar as malditas contas que jazem enfiadas entre a CPU e a impressora, a possibilidade de passar um ou dois meses escrevendo e lendo apenas o que me dá na telha.

Uma vez me perguntaram por que nunca fiz sucesso, e respondi de improviso que é porque estou satisfeito com a classe social a que pertenço. Todo mundo que persegue o sucesso quer ficar mais rico do que seus pais foram; eu nunca quis. Pense num “cába” com DNA de classe média! A ânsia de riqueza impele para o estrelato os sertanejos que vão para a cidade grande, os suburbanos cujo sonho é uma cobertura na Zona Sul, os filhos de operários que não sentem propriamente inveja do destino paterno. Todo esse pessoal corre atrás do dinheiro pensando em subir para o andar de cima. Eu, curiosamente, me acostumei com este lugar aqui onde meus pais me deixaram, só quero é poder curtir a janela e a paisagem.