Foi ele o primeiro poeta “erudito” que vi dominar com perfeição ritmos como o martelo agalopado, o galope beira-mar, o quadrão, o mourão, a embolada. Marcus Accioly, falecido neste sábado, dia 21, aos 74 anos, foi um dos grandes poetas brasileiros de uma geração acima da minha, poeta que comecei a ler aos 20 anos e não parei mais.
Pela sua dedicação pioneira aos esquemas de ritmos e de
rimas da Cantoria de Viola, devo-lhe mais do que a muitos outros poetas tão
grandes quanto ele, mas que escreviam noutro universo de formas. No universo
das formas fixas da cantoria, “eruditizadas”, foi pela mão dele que entrei.
Seu livro mais conhecido talvez seja o infantil e
premiado Guriatã: um cordel para menino
(1980). Mas o livro fundador, o que o projetou como o principal poeta do
Movimento Armorial de Ariano Suassuna, foi Nordestinados
(1971), saído simultaneamente com o Romance
da Pedra do Reino (1971) de Ariano. Foi nesse que encontrei pela primeira
vez, no papel nobre do volume em brochura, os gêneros e estilos da poesia dos violeiros.
Meu livro de cabeceira por muitos e muitos anos.
Logo depois veio Sísifo
(1975), um poema épico em dez cantos, com formas variadas. Neste, Marcus fez um
épico que era armorial por um lado e modernista por outro. Martelos agalopados
celebrando Jack Kerouac ou Elvis Presley, numa afirmação ousada de repertório
pessoal. Por mais que afirmasse a importância do movimento criado por Ariano, e
se sentisse vinculado a ele, Marcus Accioly sempre escolheu seus próprios
temas, que eram temas da sua geração de rapazes com a mesma idade dos Beatles, de
Bob Dylan.
Sísifo
introduziu também o peculiar uso dos parênteses dentro da estrofe metrificada, o
qual que se tornou um dos traços estilísticos do poeta a partir de então.
Linhas de martelo (ou de decassílabo genérico) metrificadas de forma impecável,
mas incrustadas de trechos entre parênteses, criando assim duas vias
simultâneas de fluxo poético.
Não tenho o Sísifo
aqui comigo, mas ilustro com uma estrofe de Latinomérica
(2001), seu último e gigantesco poema épico, com mais de 500 páginas:
cantei teu sol (América) na
pele
do índio nu (chagacesa ou
tatuagem)
esperando que o canto (em si)
revele
o seu fogo despido de folhagem
(ou seu corpo movido pela
hélice
dos músculos sem outra
camuflagem
que a luz) cantei a carne em
carne-viva
(o sangue em chama) a brasa
sem a cinza
Latinomérica,
onde ele insere a voz de um Homero na celebração épica do continente, é um
poema-livro em 20 partes, cobrindo a história e a mitologia da América até os
dias de hoje. Uma mistura (lá vou eu com minhas comparações esdrúxulas) do Canto Geral (1950) de Pablo Neruda com As Veias Abertas da América Latina (1971)
de Eduardo Galeano e as Folhas de Relva
(1855) de Whitman.
Mas sempre de acordo com as escolhas temáticas do autor:
a Parte IX do poema, “O Ringue”, fala das guerras, guerrilhas e ditaduras
latino-americanas sob a forma de uma luta de boxe. Há trechos na Parte XII, que
o autor intitula “shadow boxing”, dedicados a autores norte-americanos como
Edgar Allan Poe, Hemingway, Allen Ginsberg, Walt Whitman.
Os metros são variados, mas Latinomérica usa na maior parte do tempo o formato da oitava
camoniana em decassílabos, com rimas toantes, como nesta estrofe do trecho dedicado
ao poeta beat Lawrence Ferlinghetti:
(saímos a um café e nos
servimos
no self-service) “ponha pouco açúcar
e (se adoçante) basta pôr dois
pingos
feito colírio” (ergue um
brinde à música
das colheres e eu fiz um
brinde aos sinos
das xícaras) foi só (com sua
túnica
vermelha e a minha azul como
um contraste
tiramos uma foto aquela tarde)
Quando o conheci pessoalmente eu já não era mais apenas seu
leitor, já era também um autor publicado, e nos encontrávamos nos eventos
literários, hospedados no mesmo hotel, recitando no mesmo palco. Marcus era
aquele tipo de rosto longo, muito corado, cabelos brancos curtos, barba branca
sempre bem aparada, visual aristocrático, conversa descontraída e risonha. Um
poeta beatnik com sotaque dos engenhos
pernambucanos.
E eu não deixei de ser o garoto de vinte anos que o descobriu
numa república de estudantes em Belo Horizonte, para onde meu pai me mandou um
jornal do Recife com um artigo sobre um tal de movimento cultural que Ariano Suassuna
estava inventando em Pernambuco, e um poema de Marcus Accioly intitulado “Os
bichos (galope beira-mar)”, uma das viradas-de-esquina decisivas no meu modo de
ver a literatura.
Poema que ajudou a me levar de volta à Paraíba e aos “Retalhos
do Sertão”, e do qual ainda hoje, 46 anos depois, recito de cor esta estrofe
inicial (são oito ao todo), nas minhas oficinas de poesia, para não esquecer
como esse capítulo da minha história começou:
Rumor entre folhas, os sóis abrasados,
os pássaros mudos, confins do sertão;
garganta, vereda, covil, chapadão,
coivaras, lajedos, clareiras, cerrados;
a marca profunda dos rastros pesados
o andar sorrateiro com jeito de dança
a boca feroz sob a pele tão mansa
o salto e o rugido suspensos no espaço
os dentes de pedra e as garras de aço
pupilas de sangue nos olhos da onça.
(“Os bichos”, em Nordestinados)