Num dos livros de Alice, Lewis Carroll faz uma inversão de um provérbio inglês, que diz: “Take care of the pence, and the pounds will take care of themselves”. Refere-se à moeda inglesa (pence/pounds) e poderia entre nós ser adaptado como: “Cuide bem dos centavos, e os reais cuidarão de si mesmos”.
Em Alice, Carroll faz um curioso paralelo entre dinheiro e
linguagem, quando a Duquesa diz à menina: “Take care of the sense, and the
sounds will take care of themselves”. Ou seja: “Cuide bem do sentido, e os sons
cuidarão de si mesmos”.
Existem
palavras sem sentido: gurchizuma, rampitíolo, frugamba, esbutonar... É a coisa
mais fácil do mundo; posso inventar uma de dez em dez segundos até o fim da
vida. (Já cultivo isso no meu “Dicionário Aldebarã”, que não deve ter passado
despercebido a todos.) Mas não existe
palavra sem som.
Não me parece um conselho útil, mesmo sendo eu um fã do
criador do Jabberwock. Minha visão da literatura é o contrário: cuide bem dos
sons das palavras, porque o sentido delas cuidará de si mesmo. Muitos escritores
(famosos, inclusive) escrevem sem música nas frases, sem sonoridade nas
palavras, preocupados apenas com o “conteúdo”.
É como se quisessem transmitir uma
mensagem, e não ligassem se o papel é sujo, a caneta falhada, a caligrafia um ó
e a ortografia pior ainda.
Sempre é possível encontrar um meio-termo conciliando som
e sentido, até porque os dois têm a mesma importância. Escritores que vêm da
área científica passaram a vida sendo treinados a ligar apenas para o sentido,
a exprimir da maneira mais exata possível o que estão pensando; a desenvolver
raciocínios verbais, argumentações, exemplos, generalizações, etc.
Querem contar suas histórias com uma “prosa
invisível” como dizia Isaac Asimov (ao qual eu responderia que prosa invisível
é página em branco). Daí, os autores de origem acadêmica muitas vezes escrevem
mal. Não porque sejam burros, mas porque ninguém lhes ensinou a se preocupar
com o som das palavras ou o ritmo das frases.
O que define a experiência estética literária é o uso da
palavra em sua totalidade, inclusive seu som, a melodia que faz um texto
ressoar em nós mil vezes mais do que outro texto que – em tese – está dizendo a
mesma coisa.
Todas as palavras que conhecemos e usamos têm som, inclusive
as aldebarânicas. Literatura, por definição (pois é o que a diferencia dos
outros usos da linguagem) é uma arte onde a palavra é considerada em sua
dimensão material, sonora, pois no tumulto de impressões, sensações e emoções
em-estado-bruto que fervilha em nossa mente há bilhões de impulsos que são
sentido puro, mas só se tornam palavras quando adquirem som.
[Nota: este artigo foi postado aqui no blog fora de ordem, por motivo de viagem, pressa, etc. No "Jornal da Paraíba", ele saiu no dia 12 de agosto, e "Romance policial", artigo 3891, no dia 13 de agosto.]
[Nota: este artigo foi postado aqui no blog fora de ordem, por motivo de viagem, pressa, etc. No "Jornal da Paraíba", ele saiu no dia 12 de agosto, e "Romance policial", artigo 3891, no dia 13 de agosto.]