quarta-feira, 21 de julho de 2010
2295) Dona Militana (16.7.2010)
Faleceu no mês passado, no Rio Grande do Norte, uma mulher de 85 anos considerada por muita gente a maior romanceira do Brasil. “O que diabo é romanceira?”, pergunta o Brasil, este país que vive a perguntar e responder a si próprio. E responde: Romanceira é uma mulher que recita de cor romances em versos com séculos de idade, romances cujo autor ninguém sabe nem precisa saber (um conceito bastante pós-moderno de literatura), romances que ela aprendeu na infância ao ouvi-los recitados por uma outra romanceira de 80-e-tantos anos cujo nome, infelizmente, não ficou registrado. E talvez não fosse preciso.
A cultura oral brasileira é feita assim, por pessoas sem rosto e sem nome, mas que passam adiante uma tradição. Comparada à imensa maioria das nossas romanceiras, Dona Militana Salustiano é uma Madonna. Gravou um CD triplo acompanhada por artistas variados (de Gereba a Antonio Nóbrega), recitou em teatros pelo Brasil afora (vi-a ao vivo uma única vez, em São Paulo, no SESC Pompéia), foi louvada na imprensa. Que bom. Através dela foi exibida e louvada uma multidão indistinta de velhinhas com dicção precária e memória inquieta, capazes de recitar sem pausa um romance de centenas de versos, salmodiados numa cantiga monocórdia igualmente sem autor conhecido.
Essas velhas romanceiras são personagens de uma história de ficção científica brasileira, versão oblíqua do romance Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, filmado por François Truffaut. Nesse livro-filme, uma sociedade futura, totalitária, proíbe os livros e obriga todo mundo a assistir TV interativa. A população emburrece; os dissidentes são rastreados pelos bombeiros (uma espécie de polícia secreta) que incineram os livros guardados clandestinamente. Os dissidentes encontram um recurso: passam a guardá-los na memória. Cada pessoa decora um livro, e antes de morrer recita-o em voz alta para alguém jovem que se encarregará de manter viva a obra desse autor (Tolstoi, Jane, Austen, Balzac, etc.).
Dona Militana viveu numa sociedade em que o romance tradicional não era proibido, mas era menoscabado. A censura que sofreu não foi a da perseguição, mas a do desdém. Os romances que sabia de cor não eram considerados subversivos, eram considerados “coisa de gente velha, de gente pobre”. Velha e pobre como realmente foi, ela se sabia depositária de um tesouro, que protegia não por seu valor teórico, mas pelo valor afetivo que lhe atribuiu, de tão ligado que estava às suas memórias mais remotas de menina.
O CD Cantares, produzido pela Fundação Hélio Galvão, de Natal, teve uma tiragem de mil exemplares (já esgotada). Tem 52 faixas, o que parece muito até para um disco de Madonna, mas talvez seja pouco diante dos 800 romances que Dona Militana, ao que se diz, sabia de cor. Que imenso acervo se perdeu, pensamos. Ou talvez não. Sendo o Brasil o que é, quem nos garante que não existam mais dez, mais cem Donas Militanas nas filas do SUS de nossas cidades?
2294) O ser humano segundo Heinlein (15.7.2010)
Foi um dos momentos mais constrangedores da minha biografia. Eu era um dos palestrantes numa mesa redonda, num teatro repleto de gente. Estava sentado na primeira fila, e os palestrantes eram chamados de um em um para subirem ao palco. Quando chegou minha vez, o apresentador, que era meu amigo e meu fã, disse algo como:
“E agora temos o prazer de chamar ao palco este indivíduo talentoso que orgulha a Paraíba: o escritor, poeta, jornalista, pesquisador, folclorista, ator, cantor, músico, compositor, roteirista e teatrólogo Braulio Tavares!”
Tive que subir embaixo de uma gargalhada geral e estrondosa, porque o público captou de imediato o absurdo da coisa.
Desde esse dia, sempre que participo de algo peço para ser identificado como ”escritor e compositor”, e fim de papo. Se tem uma coisa que eu aprendi na vida é que fazer muitas coisas diferentes não produz uma impressão de competência, e sim de desorientação. O “homem dos 7 instrumentos” geralmente não toca bem nenhum deles.
Portanto, quando me cabe apresentar alguém, ao vivo ou por escrito, e me dão um papelucho dizendo que o sujeito é “escritor, romancista, poeta, jornalista e ensaísta”, deixo “escritor” e risco o resto, porque para mim já está tudo contido no primeiro termo.
E que sentido tem dizer que Fulano de Tal é “compositor, músico, instrumentista e arranjador”? Basta chamá-lo de músico. Se ele vai dar uma palestra sobre a arte do arranjo, aí sim, podemos dizer: “músico e arranjador”. E assim por diante.
Sempre existe uma categoria geral que engloba as outras e salva o indivíduo (o indivíduo sensato) de passar por um vexame.
As atividades artístico-culturais me parecem todas muito próximas. Não vejo um mérito especial no fato de Fulano ser ator, dramaturgo e diretor teatral. Ninguém é obrigado a saber fazer tudo, mas se alguém o faz, isto é normal. O ser humano deveria ser múltiplo, mas num sentido muito mais amplo.
Se existe algum problema na literatura brasileira é o fato de que a esmagadora maioria dos nossos escritores consta de funcionários públicos, jornalistas, professores e outras profissões de gabinete. Nelson Rodrigues se queixava de que em nossa literatura não há um único personagem que saiba bater um escanteio, e eu completaria: nem um escritor.
Por isso, a definição ideal de um ser humano é a que foi fornecida por Robert Heinlein:
“Um ser humano deveria ser alguém capaz de trocar uma fralda, planejar uma invasão, esquartejar um porco, pilotar uma nave, projetar um prédio, escrever um soneto, fazer um balanço contábil, erguer um muro, consertar um osso fraturado, consolar um moribundo, obedecer ordens, dar ordens, cooperar, agir sozinho, resolver uma equação, analisar um problema novo, espalhar estrume num terreno, programar um computador, cozinhar uma boa refeição, brigar com eficiência, morrer com elegância. Especialização é para os insetos.”
Precisa dizer mais?
2293) Auto-ajuda e otimismo (14.7.2010)
Alguém consegue imaginar uma prateleira cheia de livros de auto-ajuda escritos por autores russos? Eu não consigo. O espírito russo, para mim, é algo próximo da tragédia, da crise existencial, do pessimismo cósmico. Filósofos pessimistas parecem algo essencial à alma eslava, talvez pela proximidade da Sibéria, talvez pelo fato de viverem num inverno eterno, o que é meio caminho andado para o inferno, por mera assonância. Quando pensamos em Rússia, pensamos em vastas tragédias coletivas como Guerra e Paz ou em intensas tragédias pessoais como Os Irmãos Karamazov. Não haverá nenhum escritor, nenhum poeta russo que celebre a alegria de viver? Talvez Maiakóvski, com sua camisa amarela, sua poética expansiva, a plenos pulmões. Mas, não... Maiakóvski suicidou-se.
O livro de auto-ajuda é algo próximo, isso sim, da mentalidade norte-americana. O americano tem uma crença inabalável na alegria de viver. Foi a civilização americana que inventou o otimismo. Antes dela, as coisas boas só aconteciam por exclusão, quando as coisas ruins davam chabu. O americano médio pode até ser ateu, pode até não acreditar em Cristo ou num Deus qualquer; mas ele acredita no trabalho, na esperança, acredita que tudo vai dar certo a curto, a médio ou a longo prazo. Fernando Sabino teve um momento totalmente californiano quando disse sua famosa frase: “No fim tudo dá certo. Se ainda não tá dando certo, é porque ainda não chegou no fim”.
O livro de auto-ajuda, que tanto sucesso faz, é uma invenção tão norte-americana quando a gilete ou o hot-dog. O norte-americano crê, com uma intensidade admirável, que haverá um retorno positivo para os seus esforços. Caso você lhe diga que Deus não existe, ele sorri, dá-lhe um tapinha nas costas e diz que acredita na liberdade de crença. Mas se você disser que é pessimista e que o esforço humano no planeta Terra está condenado ao fracasso, ele foge às carreiras, apavorado, como se você estivesse fervilhante de vírus contagiosos e mortais. Se brincar ele pula pela janela mais próxima, mesmo que esteja num décimo andar (ele acredita que vai cair num toldo, como os personagens dos filmes).
Todo este arrazoado é para dizer que a maior contribuição da cultura norte-americana para a civilização não foram a gilete, o hot-dog nem o cinema, foi o Otimismo. Até o final do século 19, que foi quando os EUA começaram a se aprumar como nação, o mundo era uma paisagem de El Greco descrita por Kierkegaard. As coisas aconteciam, havia alegria e festas, mas essas coisas eram consideradas pausas entre cataclismos. A civilização norte-americana, com sua mentalidade prática, pés-no-chão, voltada para resultados positivos e imediatos, trouxe para o ser humano uma nova razão para viver. Os livros de auto-ajuda cumprem essa função importantíssima. Não, não estou sendo irônico. Livro de auto-ajuda não tem nada a ver com literatura. Deveríamos guardá-los na mesma prateleira dos analgésicos e dos antibióticos.
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