sexta-feira, 29 de abril de 2011
2543) O fim do forró (29.4.2011)
O ayapaneco, língua falada no México há muitos séculos, está ameaçada de sumir. Só restam dois índios que a falam com fluência. Um tem 75 anos, o outro tem 69, mas os dois são “intrigados”. Não se falam há muito tempo, e com isso o ayapaneco está em vias de extinção. Algo parecido está ocorrendo com o forró nordestino. Já foi a música mais tocada no país, no tempo de “Asa Branca”. Agora, está sendo suplantada por outros tipos de música que espertamente lhe tomaram o nome, invadiram seu território, colonizaram seu público. Se os falantes do forró não começarem a conversar e a tomar providências juntos, essa idioma musical deixará de existir. Ou melhor, haverá no Brasil inteiro uma coisa chamada “forró” atraindo dezenas de milhares de jovens para as festas. Mas – nomes à parte – aquele tipo de música não existirá mais.
O forró está sendo esmagado pelo chamado “forró de plástico”, que é uma musiquinha alegre, sacudida, boa de dançar, com letras bobas ou ruins com-força. É uma variedade da lambada; recorre ao palavrão e a dançarinas seminuas, o que em princípio não é pecado, a não ser quando se torna (como é o caso) uma receita obrigatória e a principal atração. É duro assistir um show de uma hora onde a melhor coisa do show são as pernas das dançarinas, e as frases que fazem vibrar a platéia são apenas as que dizem palavrões (em geral insultando parte da platéia). Uma ou duas músicas assim... Vá lá que seja. O show inteiro? Quem ouve isso, e gosta, merece o que está escutando.
Além disso, o forró de plástico recorre a práticas que corroem há tempos nosso mercado musical. A primeira é o jabá (suborno de radialistas e de diretores de rádios), que tem dois tipos: o “jabá pra tocar minha música” e o “jabá pra não tocar de jeito nenhum a música de Fulano e Sicrano”. Ganhar concessões de rádios e usá-las para divulgar as próprias músicas é uma versão legalizada desse processo, mas é legal somente porque os critérios para concessões de rádios e TV no Brasil são uma calamidade. A grande imprensa combate, como se fosse o fim do mundo, a cópia não-autorizada de CDs ou o download gratuito de músicas. Por que não fala nos critérios de concessão de rádios e TVs, que são uma catástrofe ainda pior para o país?
O forró de plástico está criando a monocultura da produção de uma coisa única, repetida, uniforme. Monocultura é o contrário de cultura. Cultura é o reino da diversidade, das manifestações livres dos indivíduos e dos pequenos grupos. A monocultura é uma imposição de-cima-para-baixo, feita por um grupo que fabrica e vende uma música igual até que o povo não suporte mais a música igual mas não saiba mais como fazer a música diferente, e com isso as duas morrerão juntas. O forró de plástico destrói o forró e destruirá a si mesmo no futuro. Sua repetitividade e mau gosto esgotam em seu próprio público o prazer e o significado de ouvir música.
quinta-feira, 28 de abril de 2011
2542) O que é cinematográfico (28.4.2011)
Essa palavra vive sendo usada a torto e a direito. Seu uso mais remoto que me recordo é o que fazíamos na infância. Havia uma exclamação recorrente para comentar qualquer coisa extraordinária. Dizíamos: “É negócio pra cinema!”. Ou seja, era uma coisa digna de aparecer num filme, uma coisa equivalente às coisas extraordinárias que víamos nos filmes. Um carro, uma mulher, uma roupa, uma paisagem, uma engenhoca tecnológica...
Outro uso frequente era no jogo de pelada, quando um goleiro fazia uma “ponte” ou dava um salto acrobático para defender um chute. Todo mundo dizia: “Você está fazendo muito cinema!” ou “Para de fazer cinema!”. Este uso tinha função crítica. Subentendia-se que o goleiro estava mais preocupado em fazer posições acrobáticas (posando para câmaras inexistentes) do que em defender a bola. “Para de fazer cinema!” significava, portanto: “Para de fazer enfeites desnecessários, faz o feijão com arroz!”.
Hoje o que se usa mais é o adjetivo “cinematográfico”, e é interessante a frequência com que o termo é utilizado para descrever cenas de ação ou de violência. “Foi um assalto cinematográfico”, “os carros saíram a toda velocidade, numa perseguição cinematográfica”, “um tiroteio cinematográfico”. Nesta última acepção, foi usada por uma testemunha para descrever o massacre das crianças na escola Tasso da Silveira, em Realengo. As pessoas chamam de cinematográfico tudo que envolve uma ação violenta, coordenada, fora do comum.
Isto mostra como aos poucos vai sendo inculcado um conjunto de memes na cabeça do público. Por exemplo: vemos o tempo inteiro as pessoas usarem o adjetivo “poético” para qualificar de modo quase automático, obrigatório, coisa que só têm ligação com a poesia de um modo muito distante. Dizem que um por-do-sol é poético, ou que uma pessoa de alma poética é necessariamente uma pessoa que se emociona com facilidade. A poesia é algo muito mais amplo do que isto; mas o clichê, a imagem “kitsch” do que é ou deveria ser a poesia consagra esse uso banalizado do adjetivo. (Quem chamaria de “poético” um retirante fugindo da seca, antes de João Cabral?)
O mesmo está se dando com “cinematográfico”, que está tendo sua aplicação dirigida para uma faixa muito estreita de experiências. É possível pensar em centenas de imagens ou de cenas típicas que poderiam, em tese, ser identificadas com a essência mesma do cinema. Por exemplo: um indivíduo de costas para a câmara, afastando-se ao longo de uma estrada que se perde no horizonte. Existe clichê mais cinematográfico do que este? E no entanto se fizerem uma enquete entre 10 mil espectadores, pedindo-lhes para descrever uma cena que julgassem “cinematográfica”, duvido que alguém nos desse um exemplo desse tipo. Na mente do espectador comum, “cinematográfico” é sinônimo de luta corporal coreografada e intensa, tiroteio com sangue jorrando em câmara lenta, perseguição vertiginosa a toda velocidade, carros explodindo.
quarta-feira, 27 de abril de 2011
2541) “Grande Sertão: The Game” (27.4.2011)
(xilogravura: Arlindo Daibert)
Recebi há cinco dias a versão beta de Grande Sertão: The Game, o novo lançamento da Tutamídia para este ano de 2034.
É um videogame clássico, no sentido de ser um universo imersivo, riquíssimo em ambientes e em personagens, no qual o jogador pode viver diferentes aventuras e experimentar uma grande variedade de situações.
O game segue escrupulosamente a geografia do livro de Guimarães Rosa. Todos os combates e perseguições dos soldados contra os jagunços, p. ex., se dão, também, do lado direito do Rio São Francisco. Há uma cronologia fixa entre os combates, que só podem ser travados na mesma ordem em que acontecem no livro, até o combate final, no Paredão. (Há também um inesperado combate “bônus” para os que zerarem o jogo, mas não quero estragar essa surpresa.)
Geografia, aliás, é um dos fortes do game, que, numa decisão polêmica, tem sido pré-adotado em escolas públicas. Rios, veredas, morros, povoados, tudo que é citado no livro é reconstituído com precisão antropológica e pode ser comparado com a atualização em tempo real pelo GoogleEarth.
O mesmo cuidado vai para a parte ficcional: cada jagunço citado nominalmente no livro tem direito a avatar, biografia, subtexto e potencial interativo. (Testes preliminares mostram que apenas 63,7% dos usuários escolhem Riobaldo como avatar.)
Uma decisão polêmica dos designers foi permitir a opção de considerar Diadorim homem ou mulher desde o início, mas, conforme eles declararam, “o leitor que quiser ser fiel ao livro tem essa opção”.
A sequência do pacto com o Diabo nas “Veredas Mortas” é um “tour de force” de gótico sertanejo. O complexo jogo sociológico envolvido no julgamento de Zé Bebelo pelos jagunços talvez só seja bem saboreado pelo leitor mais culto, mas o adepto dos jogos de ação propriamente ditos já tem a seu dispor um variado cardápio de combates de faca, de revólver ou de rifle.
Outro ponto de destaque é a travessia do Liso do Sussuarão, em que as complicadas técnicas de sobrevivência no deserto evocam desde Duna até Lawrence da Arábia. Pequenas histórias encapsuladas no romance recebem um tratamento que as transforma em verdadeiros filmes de curta-metragem embutidos na narrativa principal, como é o caso da história de Maria Mutema e a do pacto entre Davidão e Faustino.
Os usuários mais idosos encontrarão ecos do exército dos “orcs” de Tolkien na concepção visual do bando dos Hermógenes, e os de cultura musical se impressionarão com a quantidade (e autenticidade) das toadas cantadas pelos jagunços. (Em algumas cenas é possível sugerir temas e motes para serem improvisados pelos jagunços-violeiros (Delfim, Siruiz).
Em suma: um jogo de imersão para quem quiser mergulhar na História e Geografia mineira, e um jogo de guerra e cavalgadas equivalente a qualquer Peckinpah ou Kurosawa disponível no mercado. Extremo bom-gosto visual, trilha sonora perfeita baseada no folclore mineiro, muita ação e aventura.
Cotação: cinco estrelas.
terça-feira, 26 de abril de 2011
2540) Valorizar o que é nosso (26.4.2011)
Esta discussão retorna ciclicamente na música popular, no cinema, na televisão, no escambau. Num mercado onde a disputa por espaço é na base do tapão-e-pontapé, um dia alguém percebe que uma porção de sujeitos de fora está invadindo um mercadozinho que antes era somente nosso. E pior, estão fazendo o maior sucesso, porque trazem algo diferente e parece que o nosso povo está gostando! Não interessa por que gosta. Pode ser porque os forasteiros tenham maior poder econômico. Pode ser porque tenham algum tipo de poder político e consigam acesso a canais (imprensa, verbas, espaços públicos, etc.) que os artistas locais não alcançam. Pode ser apenas porque são diferentes, e o povo gosta de novidades. Pode ser (hipótese terrível!) porque são melhores do que nós. Não importa a razão, a verdade é que quando essa ocupação começa a acontecer brota dos 256 pontos cardeais o brado: “Vamos valorizar o que é nosso!”.
Aqui estou eu, portanto, para trazer meus centavos de opinião. Vamos, sim, valorizar o que é nosso. Que não seja simplesmente porque é nosso, pois não vejo lucro em ficar com uma idiotice feita aqui e descartar uma coisa boa vinda de fora. Mas se os valores são iguais – besteira por besteira, ou coisa boa por coisa boa – até compreendo que a gente dê um crédito de confiança e uma injeção de incentivo à prata-de-casa.
Já vi esse filme nas velhas lutas cineclubistas dos anos 1970, quando queríamos forçar a exibição de filmes brasileiros num mercado dominado pelos norte-americanos (não mudou muita coisa em 40 anos). Vejo ainda hoje, nas festas de São João nordestinas, na briga do forró pé-de-serra contra o falso-forró avestruz-com-leite. Vi um filme parecido na época pré-globalização, quando havia reserva do mercado de informática para os computadores feitos no Brasil (lembram do COBRA?), e éramos impedidos de importar computadores e softwares estrangeiros. Vamos valorizar o que é nosso! Que frase importante. E problemática.
Algumas hipóteses em que vale a pena, sim, valorizar o que é nosso: 1) Quando o que é nosso, mesmo tosco, mesmo amadorístico, nos revela e nos retrata de uma maneira que nenhum gênio de fora conseguiria; 2) Quando o que é nosso surge numa rede de atividades que tende a nos transformar numa comunidade interligada de produtores culturais, e não de meros consumidores endinheirados do Produto Externo Bruto; 3) Quando o que é nosso serve, lá fora, de parâmetro para que seja julgado o nosso talento, os nossos valores, a nossa capacidade de sentir, de entender e de criar; 4) Quando os valores culturais retrocedem para um segundo plano e nos vemos naquela fase em que tudo não passa de uma briga de foice pelo domínio de um território, pela posse dos corações-e-mentes de um povo (que por acaso é o nosso!), e, na dúvida, melhor ocupar primeiro o território nosso com o produto nosso... e dar nesse produto nosso uma surra de “crítica construtiva” depois.
domingo, 24 de abril de 2011
2539) Capitalismo, uma história de amor (24.4.2011)
Este documentário de 2009, dirigido pelo mesmo Michael Moore de Tiros em Columbine e Fahrenheit 9/11, é um prolongamento de tudo que foi visto nos filmes anteriores do cineasta, e que umas pessoas gostam e outras detestam. (Eu estou entre os que gostam.) Moore não faz cinema, no sentido “artístico” do termo. Faz o que se chama de agit-prop, agitação e propaganda: o registro parcial, subjetivo e militante de uma situação política. Não se espere dele aqueles enquadramentos amorosamente estudados, nem aquelas imagens que fazem um fotógrafo marejar os olhos de felicidade e inveja. A câmara é uma câmara de telejornal e morreu aí. O roteiro também inexiste; Moore deve trabalhar apenas com uma lista das pessoas a serem entrevistadas e seus endereços. E seu objetivo é muito claro: provar que os EUA estão sendo destruídos por um capitalismo selvagem, predador, sem ética, sem fiscalização e sem freios.
As partes mais criativas ocorrem na montagem, quando ele, com mais tempo para pensar e ter idéias, solta os cachorros do bom e do mau humor. Porque, ao contrário da grande maioria dos diretores de filmes agit-prop, Moore é um cara bem humorado, frequentemente engraçado na frente e atrás das câmaras. Sua arma contra os defeitos do seu país é a “ira santa” mas também a galhofa e o ridículo. Neste filme, é impagável a sequência inicial, em que um texto lamenta a decadência e queda de um grande império, e as imagens se alternam entre a Roma dos Césares (canastronamente recriada por Hollywood) e os EUA de hoje.
O filme dá uma boa sacudida na política norte-americana, porque acompanha a crise econômica de 2008-9 e termina com a eleição de Barack Obama para presidente (mas não de um modo tão otimista quanto isto pode levar a crer). E revela coisas estarrecedoras. Eu não sabia que é uma prática de grandes empresas norte-americanas fazer seguro de vida para seus funcionários, e faturar com a morte deles. Moore mostra duas famílias que perderam pessoas, encheram-se de dívidas contraídas com hospital, médicos, etc., enquanto por baixo do pano a WalMart faturava centenas de milhares de dólares com o seguro de vida do funcionário. É uma prática habitual: Moore mostra que as empresas chamam isso de “Dead Peasants”, “camponeses mortos” (procurem esse termo no Google).
Este filme recuperou uma imagem rara (que mesmo nos EUA ninguém tinha visto): F. D. Roosevelt, meses antes de morrer, propondo uma nova Lei para estabelecer que todo norte-americano teria direito a emprego, moradia, escola, etc. Estes poucos minutos de filme estavam perdidos desde os anos 1940 e Moore os encontrou. (Não adiantou muito: a lei não foi promulgada.) Há um momento de humor cruel quando ele pede aos especialistas de Wall Street para explicar o que são “derivativos”, um dos papéis mais lucrativos no cassino financeiro. Todos gaguejam, todos se atrapalham, nenhum consegue. Sugiro essa pauta aos coleguinhas da área econômica.
2538) Idéias de virar a cabeça (23.4.2011)
(ilustração: Artem Ogurtsov)
Imagine o leitor um mundo muito diferente do nosso, um mundo sem Natureza, sem ar livre, sem espaços abertos. Um mundo onde todo mundo vive trancado em apartamentos que são como caixas de onde nunca se pode sair. Um mundo irreal, claro (nenhum mundo realista se sustentaria dessa forma – de onde vem a comida, por exemplo?). Mas um mundo que, para efeitos de ficção pode ser imaginado por um autor e visualizado por um leitor. Só que neste caso há uma diferença essencial. Imagine que uma família de tamanho equivalente ao nosso vive ali, num espaço cúbico muito parecido com um palco de teatro. Nesse espaço cúbico eles comem, dormem, etc. O espaço tem paredes, chão, teto, tudo normal, com duas exceções.
A primeira exceção é que a parede dos fundos é dividida em cem pequenos cubículos, dispostos em dez fileiras horizontais e dez colunas verticais. Cada um desses cubículos é um espaço idêntico (só que em tamanho muitíssimo menor) ao espaço onde vive a família. E em cada um deles vive uma familiazinha diferente. São familiazinhas minúsculas, liliputianas, que estão ali tocando seu dia a dia, enquanto que na sala grande a “nossa” família, proporcionalmente gigantesca em relação a elas, acompanha na parede dos fundos de seu espaço esses 100 pequeninos palcos onde acontecem cem historiazinhas diferentes.
E a segunda exceção diz respeito à parede oposta. Porque quando nossa família, de tamanho normal, se vira para o lado oposto à parede dos fundos, quando ela se vira para o que seria em termos teatrais a “quarta parede”, a parede invisível que separa palco e platéia, ela vê um gigantesco espaço cúbico onde mora uma família de gigantes, num espaço parecidíssimo com o dela própria. E, se conseguisse espiar de lado, essa família de tamanho normal veria que sua casa não passa de um entre cem cubículos de tamanho normal, lado a lado, formando a parede dos fundos da casa do gigante! (O qual por sua vez, etc. etc.)
Esse universo foi imaginado por Marc Laidlaw, que já teve pelo menos um livro (com outra temática) traduzido no Brasil (A Usina Nuclear de Papai). A idéia de Laidlaw tem a mesma ousadia dos universos de paradoxos espaciais construídos por M. C. Escher em suas gravuras cheia de jogos geométricos e de perspectiva. A ficção científica usa idéias assim, capazes de virar a nossa cabeça no esforço de entendê-las.
Acha difícil visualizar esse mundo que descrevi? Eu também achei quando, sem aviso nenhum, comecei a ler um desses contos e tive de deduzir por conta própria o formato do mundo surrealista em que aquele pessoal vivia. (O conto se chamava “Middleman’s Rent”, na revista Fantasy & Science Fiction). A vantagem é que depois que a nossa mente assimila conceitos desse tipo, nunca mais fica pequena de novo. A ficção científica é uma literatura de aventuras, sim, mas de aventuras mentais, onde a nossa mente se arrisca em espaços e conceitos nunca antes imaginados.
sexta-feira, 22 de abril de 2011
2537) Traduzir poesia (22.4.2011)
(Dr. Samuel Johnson)
Uma das tarefas mais educativas para ensinar a alguém as funções de linguagem (as possibilidades-de-dizer-algo contidas na linguagem) é mandar que traduzam um poema.
Isso requer que a pessoa tenha um domínio razoável dos dois idiomas, e que tenha sensibilidade para a linguagem poética. Só com isso, creio, eliminamos 90% da humanidade, mas a escassez de amostras não invalida o experimento.
São experiências espirituais que só uma minoria pode conhecer, mas, paciência, de experiências majoritárias o mundo está cheio – caso alguém as prefira.
A poesia se baseia em grande parte nas refrações do dizer. Ficou meio pomposa esta frase, mas posso explicar. Na prosa pedestre, esta que estou escrevendo agora, o sentido passa pelas palavras como a luz por uma vidraça. O que A tenta dizer é (quase) igual ao que B julga ter compreendido. Na linguagem poética, o sentido se subdivide e se irradia através daquela palavra, subdividindo-se em outros sentidos, como a luz passando através de um prisma.
Cada palavra funde suas luzes às luzes das palavras vizinhas, produzindo misturas luminosas inesperadas. Cada vez que a gente relê a frase ela parece estar querendo dizer uma coisa diferente.
Se entender isso na língua da gente já coloca um problema, o que dizer então de passar isso para outro idioma? Como ter certeza (não se pode ter; nunca) de que a leitura daqueles versos de Cecília Meireles ou de Carlos Pena Filho, em italiano ou búlgaro, vai produzir o mesmo efeito que eles tinham em português?
O sentido central de cada palavra é contaminado por contextos culturais, contextos de época, sentidos secundários ou subliminares que nos dão essa sensação de que o sujeito diz uma coisa mas pode estar dizendo outra. Dependendo de uma porção de ênfases de leitura que estão na mente do leitor, e somente ali.
O Dr. Samuel Johnson, o grande lexicógrafo inglês, disse:
“A poesia não pode ser traduzida. E portanto são os poetas que preservam os idiomas. Porque nós não nos daríamos ao trabalho de aprender outra língua se pudéssemos ter, em tradução, tudo que foi escrito nela. Mas as belezas da poesia não podem ser preservadas em nenhuma língua a não ser naquela em que foram originalmente escritas; e portanto, temos que aprender essa língua”.
Não vou tão longe quanto o doutor. Isso que ele diz é válido, mas somente para os 10% da humanidade referidos no primeiro parágrafo. Sempre penso que nunca li de verdade dois dos meus poetas preferidos. Como não sei alemão nem russo, nunca li Brecht ou Maiakóvski no original. Uma grande parte, uma parte importante da experiência estética dessa poesia continua inacessível para mim, e deve continuar, porque não tenho planos de vir a estudar essas línguas.
Não tenho a pertinácia de Ezra Pound, que se dispôs a aprender o português somente para ler Os Lusíadas, mas saber deste detalhe biográfico aumentou muito meu respeito pelas suas opiniões poéticas.
quinta-feira, 21 de abril de 2011
2536) Um vampiro, um troll e um marciano (21.4.2011)
Um vampiro, um troll e um marciano entram num bar e sentam no balcão. O vampiro pede um Bloody Mary, o troll pede cachaça com pólvora e o marciano pede um Martini. O barman serve os três e pergunta: “Vocês estão vindo de onde? De um baile de carnaval?” Um deles responde: “Não, estamos chegando da Inglaterra. Fomos participar de uma conferência acadêmica sobre horror, fantasia e ficção científica, na Universidade de Liverpool, centrado no tema Pesquisas Atuais em Ficção Especulativa’. O barman coça a cabeça, sem entender: “Sim, mas por que vocês três?” Outro deles responde: “Porque, para diluir um pouco a seriedade acadêmica do evento, a Universidade decidiu usar como título da conferência justamente a frase Um Vampiro, Um Troll e Um Marciano Entram Num Bar’. O barman dá de ombros: “Se é assim, não posso me queixar. Aqui tem entrado gente muito mais esquisita do que vocês”.
O barman sou eu, mas não estou inventando nada: vi o título dessa conferência, anunciada para junho, no boletim periódico da Science Fiction Research Association, seguido da descrição: “Uma conferência de pós-graduação com o objetivo de promover a pesquisa das literaturas especulativas incluindo, mas sem se limitar a, ficção científica, fantasia e horror. Nossa meta é destacar alguns desenvolvimentos recentes na dinâmica deste campo, proporcionando uma plataforma para a apresentação de pesquisas de pós-graduados”.
Ou seja, é uma coisa séria, por mais brincalhão que seja o título. Isto é uma tônica do mundo acadêmico que pesquisa hoje a literatura fantástica. Uma certa descontração, uma criatividade que se mantém dentro dos limites da seriedade científica mas, digamos, sem muito terno-e-gravata. Na mesma página é anunciada outra para julho, em Albuquerque (Novo México, EUA), com o título Mythcon 42 – Monstros, Maravilhas e Menestréis: a Ascensão do Moderno Medievalismo, o que já diz o bastante.
Eu diria que um ponto-de-mutação decisivo na história da FC norte-americana e européia foi o surgimento de uma geração (que é mais ou menos a da minha faixa etária) de pessoas que leram esses gêneros desde a infância e, chegando à Universidade, resolveram dedicar a eles as suas pesquisas. Eles o fazem de todas as direções possíveis. Não são apenas professores de Literatura, são professores de História, de Antropologia, de Sociologia, de Psicologia, das Ciências Exatas em geral. A literatura fantástica lhes serve de plataforma para a produção de modelos teóricos, projeção de hipóteses, etc.
É um movimento que começa a acontecer no Brasil de uns dez anos para cá. Não se passa um mês sem que chegue ao meu conhecimento mais uma tese de mestrado ou doutorado, numa universidade brasileira, sobre a ficção científica e os gêneros vizinhos. Um vampiro, um troll e um marciano entram na lanchonete da faculdade e dizem: “Queremos três canudos”. O barman: “De refrigerante?”. Eles: “Não. Três diplomas”.
quarta-feira, 20 de abril de 2011
2535) Nós, os esquizofrênicos (20.4.2011)
No espaço de menos de 24 horas li, em diferentes livros, textos que pareciam interligados pela mesma idéia.
Siete Conversaciones com Adolfo Bioy Casares (Buenos Aires, El Ateneo, 2001) transcreve os diálogos de Fernando Sorrentino com o autor de A Invenção de Morel, que a certa altura, lembrando os namoros da adolescência, conta que era muito tímido mas ao mesmo tempo gostava de abordar moças (mais velhas que ele) na rua. Certa vez ele marcou encontro por telefone com uma corista de um teatro de variedades, a qual ficou um tanto decepcionada ao encontrá-lo pessoalmente e ver que ele tinha apenas treze anos. Diz Bioy:
“Eu agia como se fosse esquizofrênico, ou pelo menos, como se me desdobrasse em dois. Dizia a mim mesmo: Esse sujeito nervoso e tímido que sou não vai conseguir absolutamente nada se eu não o obrigar a fazê-lo”.
Li isso ontem à noite, e hoje de manhã, folheando Anéis de Fumaça (Lisboa, Assírio e Alvim, 1997), uma coletânea de poemas e de letras de músicas de Laurie Anderson, vejo a autora dizer na introdução:
“Em criança, sempre tive a sensação de haver uma impostora exatamente igual a mim em casa dos meus pais que fazia coisas civilizadas como ir à escola, estudar e ser um membro decente da família enquanto eu tinha a liberdade de meter o dedo no nariz, saltar para a bicicleta, vadiar e ver as coisas reais. Ainda hoje sinto o mesmo. Provavelmente, sou apenas uma vulgar esquizofrênica”.
Agora no fim da tarde, traduzindo uma carta escrita por Robert Louis Stevenson em 1887, vejo-o descrever assim uma alucinação que teve num acesso de febre:
“Eu estava convencido de que minha dor estava relacionada a um toróide, ou um rolo de cordas. Em que consistia ela? Do que se tratava, precisamente? Eu não procurava saber: pensava apenas que se as duas extremidades desse toróide se juntassem, minha dor cessaria. Durante todo esse tempo, com uma outra parte do meu espírito, algo que eu me arriscaria a definir como ‘eu mesmo’, eu estava plenamente consciente do absurdo desta idéia, sabia que ela era indício de uma sanidade mental em perigo, e travava com ‘meu outro eu’ uma luta furiosa”.
Stevenson não usa, como os outros usaram, o termo “esquizofrênico” (que só foi criado em 1908), mas em todos esses depoimentos vemos como a cisão de personalidades, que no tempo dele só era admitida na hipótese de uma doença, tornou-se algo tão comum que pessoas normais, falando de experiências rotineiras, usam o nome de uma doença grave para descrevê-las.
Isso mostra:
1) o quanto o linguajar médico foi assimilado e diluído pela linguagem comum (“paranóia”, “trauma”, “psicose” são usadas a qualquer pretexto);
2) o quanto as experiências de dupla consciência ou dupla personalidade são hoje aceitas como parte da identidade.
Como Fernando Pessoa previu, o século 20 foi a época em que caiu o Mito da Personalidade Única, a ilusão de que cada mente tem apenas um conjunto de características a que ela pode acoplar o sentido do “Eu”.
terça-feira, 19 de abril de 2011
2534) O prelo de cordel de Leandro (19.4.2011)
The History Channel, canal da TV a cabo (canal 82 da Net, aqui no Rio) tem um simpático programa chamado Detetives da História, em que um casal de apresentadores viaja pelo Brasil tentando elucidar a possível autenticidade histórica de objetos, documentos, etc. Dias atrás foi exibido o programa “Prelo de cordel / Lincoln K”, em que eles investigavam um automóvel Lincoln que teria servido ao presidente Getúlio Vargas, e uma velha impressora de cordel que teria pertencido a Leandro Gomes de Barros, e que se encontra hoje na Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), em Santa Teresa (Rio).
O programa começa com o presidente da ABLC, Gonçalo Ferreira da Silva, e depois entrevista a pesquisadora Sylvia Nemer, da Casa de Rui Barbosa. Não vou detalhar aqui todo o percurso de idas e vindas feito pelo apresentador André Guerreiro, mas ele ainda entrevista o cordelista Arievaldo Viana (Fortaleza), o gráfico Vicente Nascimento (Crato-CE) e o xilógrafo José Lourenço (Juazeiro-CE). É uma viagem pela história da poesia popular nordestina, e tenho esperança de que num futuro próximo o programa possa ser visto online no YouTube ou mesmo no saite de origem (http://seuhistory.com).
Para Arievaldo Viana, o prelo, se pertenceu a Leandro Gomes de Barros (1865-1918), passou de suas mãos para as de Francisco das Chagas Batista (1882-1930), o grande cordelista paraibano que manteve durante anos a “Livraria Popular Editora”, em João Pessoa. Das mãos de Chagas o prelo teria ido para seu sobrinho Pedro Batista, de Guaratiba (PE), e deste para Manoel Camilo dos Santos (1905-1987), dono da tradicional “Estrella da Poesia”, em Campina Grande. O general Umberto Peregrino, dono da “Casa de Cultura São Saruê”, teria sido o responsável pela vinda do prelo para o Rio de Janeiro; e dele o prelo passou para Gonçalo Ferreira, quando a ABLC encampou o material da Casa São Saruê.
Já o gravador José Lourenço, da “Lira Nordestina”, a maior gráfica de cordel ainda existente, acha que o trajeto foi outro. Após a morte de Leandro em 1918, o prelo teria passado em 1921 (como passou o resto do seu acervo) para João Martins de Athayde (1880-1959), e deste teria ido em 1945 para as mãos do grande editor José Bernardo da Silva (1901-1972), criador da Tipografia São Francisco, que futuramente daria origem à atual “Lira Nordestina”. E teria sido justamente de José Bernardo que o General Umberto Peregrino, grande pesquisador e entusiasta da poesia popular, teria adquirido o prelo que levou para o Rio.
Vejam só. É um programa com menos de uma hora, mas tem material suficiente para que um pesquisador que ame e conheça a poesia popular produza um livro contando (sem a pretensão de esgotar um inesgotável assunto) quem foram essas pessoas, e como esse prelo passou ou não passou de uma para outra, levando consigo um século de poesia popular brasileira. Eu não tenho tempo para um projeto assim, de longo alcance. Alguém se habilita?
domingo, 17 de abril de 2011
2533) O enterrado vivo (17.4.2011)
Não tinham filhos e moravam no fim da rua, numa casinha antiga que não se encaixava com as casas novas, ficando como um dente-do-siso torto, afastada das demais. Seu Manuel era aposentado, passava o dia na frente da TV ou sentado no terracinho, vendo a rua. Dona Santa visitava às vezes as vizinhas, que gostavam dela e atendiam seus pedidos simples. Viviam um para o outro e pareciam não sentir falta de nada nem de ninguém.
Na rua todos lembravam o que acontecera alguns anos antes. Uma tarde, Seu Manuel caiu de bruços na sala, morto. Dona Santa correu às vizinhas, deu o alarme. Começaram as providências: alguns homens se cotizaram para comprar o caixão modesto, as mulheres ajudaram Dona Santa a preparar o morto, acender os incensos. Em pleno velório, à noite, o defunto ergueu um braço, depois ergueu o corpo e olhou em redor. Houve um Deus-nos-acuda que ainda hoje é contado e recontado na vizinhança. A verdade é que ele estava vivo. Tivera apenas um ataque de catalepsia (a palavra foi fornecida pelo médico que o examinou pós-ressurreição). Durante um ou dois anos a história foi repetida na rua. Depois, passou-se.
Nunca passou para Seu Manoel, pois vieram pesadelos em que ele despertava dentro de um caixão escuro. Acordava gemendo, com falta de ar. Depois, obrigou Dona Santa a dormir de luz acesa. E dizia: “Santinha, não me deixe ficar daquele jeito de novo. Se eu não acordar, me belisque, enfie uma agulha! Não deixe que me enterrem vivo!”. Ela enxugava os olhos, abraçava-se com ele e prometia tudo que ele quisesse. Ela também não esquecia aquela noite terrível, a despedida para sempre, e depois o horror do retorno misturado à alegria do milagre.
Até que Seu Manoel sofreu o segundo ataque, igual ao primeiro. Ela estava doente, fraca. Arrumou-o na cama, sozinha, banhou-lhe o rosto com água de hortelã. Mesmo com remorsos, acabou enfiando a agulha, mas o braço fininho do marido não reagia. Colocou o espelho diante dos lábios dele, mas lembrou que da primeira vez o vidro também não tinha ficado embaçado. Fazia café e colocava a xícara diante do seu rosto, pensando que talvez aquele cheiro, que ele gostava tanto, o despertasse.
Alguém notou que o casal não aparecia no terraço há algum tempo. Uma vizinha comentou com outra, que comentou com outra. No sábado de manhã juntaram-se e foram até lá, para ver se os velhos precisavam de alguma coisa. As janelas estavam fechadas mas elas ouviram alguém falando lá dentro. Bateram, ninguém respondeu. Empurraram, a porta abriu. Elas entraram devagar na sala, depois no corredor que levava ao quarto, e ouviram a voz de Dona Santa: “Não se preocupe não, meu véio... Que eu não vou deixar que eles lhe enterrem, vou ficar aqui do seu lado até você ficar bom”. Entraram no quarto, tapando o nariz com a mão, e a viram sentada num tamborete junto da cama, murmurando com olhos insones, segurando aquela mão que se desmanchava.
sábado, 16 de abril de 2011
2532) O erudito sem biblioteca (16.4.2011)
Há muitas maneiras de fazer crítica literária, e seria insensato querer que só existisse uma. Eu procuro aquelas com que me identifico. Uma delas é esta: ler devagarinho, e não a-toque-de-caixa, como sempre lemos um livro pela primeira vez, naquele entusiasmo juvenil de saber o que acontece com aquelas pessoas.
A primeira leitura é sempre para saborear o açúcar do livro. A segunda é para mascar seu chiclete constitutivo, que não tem sabor mas estimula as glândulas salivares, exercita os dentes e desenferruja a mandíbula.
O clássico Mimesis de Erich Auerbach (Ed. Perspectiva) surgiu durante a II Guerra, quando o autor, um filólogo ilustre, teve que se refugiar em Istambul. Ali ele não dispunha de manuais técnicos, bibliotecas especializadas, etc. Esta carência não o desanimou. Seu livro são quase 500 páginas de análises minuciosas de textos clássicos: Shakespeare, a Bíblia, Virginia Woolf, Homero, Abade Prévost, Stendhal, Rabelais, Cervantes...
Diante dessas obras, Auerbach esqueceu a bibliografia crítica, arregaçou as mangas e encarou os livros de-testa. Lendo, e interpretando apenas com o que já trazia no juízo.
Seu método é o mesmo de James Wood, e seu objetivo está posto no título completo do livro: Mimesis – A representação da realidade na literatura ocidental.
Auerbach passa um pente fino nos textos, e analisa o uso de verbos, o uso da primeira ou da terceira pessoa, a capacidade de visualização do autor, o modo como ele revela (ou não) o que se passa na mente do personagem. Compara um autor com seus contemporâneos e mostra por que ele era diferente. (A gente pode até ler Cervantes ou Rabelais, mas quem de nós leu a literatura que se fazia no tempo deles?)
No fim do livro, diz Auerbach:
“Também é resultado da escassez de literatura especializada e de periódicos o fato deste livro não conter notas; afora os textos, cito relativamente pouca coisa, e este pouco deixou-se introduzir facilmente no texto. Aliás, é bem possível que este livro deva agradecer a sua existência precisamente à falta de uma grande biblioteca especializada; se tivesse podido tentar informar-me a respeito de tudo o que foi feito acerca de tantos temas, talvez nunca teria chegado a escrever”.
Todo intelectual é vítima do Complexo de Penélope (desmanchar de noite o que produziu durante o dia) e do Paradoxo de Zenão (nunca finalizar uma tarefa porque está sempre inventando tarefas intermediárias, todas imprescindíveis e intermináveis).
Eu, que às vezes critico aqui os acadêmicos, afirmo: acadêmico de verdade é o que é capaz de encarar um livro frente a frente, contando somente com o que já sabe. Se não, é porque o que já sabe não lhe vale de muita coisa.
sexta-feira, 15 de abril de 2011
2531) Sensação de cinema antigo (15.4.2011)
Os cartazes pendurados nas paredes de fora, para que a gente parasse na calçada e ficasse saboreando aquelas imagens cobertas por nomes de pessoas em inglês.
E os cartazes que eram pregados em árvores ou postes pelo centro da cidade, onde se colavam os “posters” dos filmes propriamente ditos, tendo nas bordas de papelão ocre as informações artisticamente manuscritas com pincel: “Breve”, “Hoje”, “De 6a. a domingo”, “Cens. Livre”, “Cens. 18 anos”.
A bilheteria era geralmente uma abertura semicircular na parede, ao nível dos nossos olhos ou um pouco mais alto, e muitas vezes pegávamos no ingresso e no troco ainda sem enxergá-los.
Ao lado do porteiro, sempre de paletó (menos nas matinais de domingo, quando estava às vezes em mangas de camisa), uma urna onde ele colocava os ingressos rasgados.
O saguão tinha em geral um pequeno balcão atrás do qual uma moça vendia chocolates; mas o mais importante eram as vitrines, trechos das paredes meio escavados para dentro, emoldurados em madeira, e com uma folha de vidro cobrindo aquele espaço onde estavam pregadas as fotos dos próximos filmes, que examinávamos até saber de cor.
As cadeiras eram de madeira, daquele tipo que fica erguido verticalmente e precisamos abaixá-las para sentar, deixando o assento em ângulo reto com o encosto.
Por serem de madeira, faziam um barulho danado quando eram batidas para baixo com força (quando o filme demorava a começar, p. ex., ou quando a fita quebrava). Foi certamente por isso que acabaram sendo trocadas por poltronas estofadas (e não para dar conforto aos usuários).
Havia o rapaz que vendia drops, chicletes e confeitos (é assim que chamamos “balas” na Paraíba), numa caixa de madeira leve, geralmente em forma de semicírculo, apoiada diante do corpo dele e com as extremidades presas a um cordão grosso que lhe passava por trás da nuca.
Muitos anos depois reencontrei essa imagem nas gravuras do século 18 mostrando um vendedor de “littérature de colportage” francesa ou um “chapman” inglês vendendo folhetos de cordel nas ruas de Londres.
Para além do cenário e dos objetos, no entanto, havia ali uma atmosfera indefinível que me vem à memória quando vejo algumas fotos de cinemas antigos (não qualquer foto; e não sei por que aquelas, e não outras).
Lá dentro, havia a sensação física de um lugar enorme e cheio de gente (o cinema era o maior espaço fechado que eu conhecia, com exceção das igrejas).
Havia o cheiro típico da madeira utilizada ali, o de uma certa umidade de um recinto que ficava fechado a maior parte do dia (ar condicionado não existia), o cheiro concentrado da multidão, os suores, os perfumes femininos.
E havia, quando vou mais longe ainda, e recupero os primeiros cinemas em que entrei, a expectativa difusa por algo miraculoso, maior que a vida real, e com o poder de fazer a vida real parar durante duas horas, para que as cortinas se abrissem e uma coisa impossível começasse a acontecer.
quinta-feira, 14 de abril de 2011
2530) Telefone sem filósofo (14.4.2011)
Eu vinha andando por uma calçada da Conde de Bonfim, quando passei pela frente de uma loja da TeleRio e vi, entre aquelas placas de cartolina com propaganda em letras enormes, o letreiro: “Telefone sem filósofo: 69,90”. Dei mais dois passos, a ficha caiu e eu retrocedi. Entrei na loja com a testa franzida e um ponto de interrogação com meio metro de altura flutuando sobre minha cabeça. O vendedor que me atendeu era baixinho, com três canetas no bolso da camisa, voz telegráfica. “Tem telefone sem filósofo?”, perguntei. Ele: “Claro. A partir de 69,90, com alguns modelos em outra faixa de preço, dependendo dos acessórios, e tudo em seis vezes no cartão”. Pedi para ver um e ele me levou até uma estante de onde puxou uma caixa, abriu, mostrou. Parecia um telefone comum.
“Que história é essa de sem filósofo?”, perguntei. “Tem telefone-com?” “Claro,” disse ele, “existem várias marcas no mercado, mas algumas pessoas não gostam, então o modelo-sem está tendo uma aceitação muito grande. Além de tudo, existem várias faixas de preço bastante convidativas, e o senhor pode fazer tudo em seis vezes no cartão”. “Tá legal, “falei, “mas eu sou de fora, acho que estou meio desinformado. Nunca vi um telefone com filósofo. Como é que funciona?”
Ele era meio prolixo, portanto vou parafrasear. Me explicou que era um software novo, desenvolvido na Europa, que transportava para as chamadas telefônicas algumas funções de hipertexto. Às vezes a conversa telefônica deixava o usuário sem entender direito, e era possível pedir uma opinião a um software filosófico que a interpretava. No modelo econômico, tínhamos acesso a opiniões de Platão, Aristóteles, Kant, Marx e Freud. Modelos mais caros ampliavam esse leque, incluindo nomes que iam de Wittgenstein a Derrida. Fiz cara de incredulidade e ele pegou outro aparelho, plugou na parede e mostrou um botãozinho. (Que aliás tem no meu telefone; nunca usei porque não sabia pra que era.)
Liguei para meu editor, que me perguntou: “Querendo adiantamento, de novo?” Eu: “Não, estou na Tijuca, fazendo umas compras. Mas já que falou nisso... Dá pra me adiantar uma grana?” E ele: “Ih, agora fiquei indeciso”. Então, atendendo aos gestos do vendedor, apertei o botãozinho. Veio uma mensagem gravada me pedindo para apertar de novo quando ouvisse o nome do filósofo que desejava consultar. Depois de meia-dúzia ouvi “Jean-Paul Sartre”, e apertei. Pois não é que uma voz sexagenária, com leve sotaque francês, comentou: “A indecisão que precede a ação é apanágio do homem livre. Hesitar é quase sinônimo de escolher, e escolher pressupõe ser dono do próprio destino. Quem decide sem hesitação está possivelmente sendo levado a fazê-lo por forças alheias a sua vontade. O homem que hesita é um homem disponível para a ação.”
A verdade é que, quando a ficha caiu, eu dei dois passos atrás e li direito a placa, onde estava escrito: “Telefone sem fio só 69,90”.
quarta-feira, 13 de abril de 2011
2529) Drummond: Nota social (13.4.2011)
Alguns dos poemas mais interessantes do primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, Alguma Poesia (1930) são aqueles em que ele passa um detergente por cima da imagem do poeta, limpando-a do acúmulo de fuligem romântica depositada há séculos. O Modernismo, que se pretendia irônico e desmistificador com tudo e com todos (não o foi totalmente; tinha também seus ídolos, suas ilusões, suas fantasias tão ingênuas quanto as dos Parnasianos e Simbolistas) tirou o poeta do pedestal e o enfiou no bonde, entalado por entre operários, donas de casa e meninos com o nariz escorrendo. O poeta foi abduzido do Olimpo e trazido à Rua da Quitanda.
“Nota Social” é um desses poemas desmistificadores, e curiosamente não o faz utilizando o humor, e sim a melancolia. Ele dá logo o tom nas primeiras frases, empregando a mecânica árida e reiterativa do famoso poema da pedra: “O poeta chega na estação. / O poeta desembarca. / O poeta toma um auto. / O poeta vai para o hotel.”
Quem é esse poeta? Talvez Drummond veja aí um pouco das honrarias com que os poetas jovens de Belo Horizonte receberam Mário de Andrade e sua célebre comitiva (com Blaise Cendrars, Oswald e Tarsila) que visitou Minas em 1924: “E enquanto ele faz isso / como qualquer homem da terra, / uma ovação o persegue / feito vaia. / Bandeirolas / abrem alas. / Bandas de música. Foguetes. / Discursos. Povo de chapéu de palha. / Máquinas fotográficas assestadas. / Automóveis imóveis. / Bravos... / O poeta está melancólico.”
Certamente a visita não foi tão badalada assim, mas Drummond traduz em imagens o estado de espírito daquela provável dúzia de rapazes tímidos que foi ao hotel paparicar os visitantes ilustres. As bandeirolas e os foguetões estavam todos nos olhos dos poetas mineiros. Sabe-se que começou ali a amizade pessoal e os longos anos de correspondência entre Mário e Drummond (que nessa época tinham, respectivamente, 31 e 22 anos). E pode ser que Drummond visse em Mário não somente o modernista famoso mas um sujeito como ele, tímido, meio introvertido mas cheio de afetividade, retraído mas generoso... Aliás, o único adjetivo que o poeta recebe no poema é “melancólico”.
Longe da badalação, ele enxerga outra coisa: “Numa árvore do passeio público / (melhoramento da atual administração) / árvore gorda, prisioneira / de anúncios coloridos, / árvore banal, árvore que ninguém vê / canta uma cigarra. / Canta uma cigarra que ninguém ouve / um hino que ninguém aplaude. / Canta, no sol danado. / O poeta entra no elevador / o poeta sobe / o poeta fecha-se no quarto. / O poeta está melancólico.” Drummond, já escolado, já funcionário público, já conhecedor das badalações literárias, vê o poeta recebendo rapapés sem perder a melancolia; e vê uma cigarra cantando, anônima e invisível. Pode estar pensando que aquele primeiro encontro no Grande Hotel de BH não foi o encontro entre dois poetas, mas entre duas cigarras.
terça-feira, 12 de abril de 2011
2528) O Morto Agradecido (12.4.2011)
Era uma vez um rapaz que, numa época de guerra e de fome, foi embora de casa para procurar trabalho. Passou por perigos e aventuras. Um dia, quando se aproximava de um povoado, viu um corpo caído na beira da estrada. Era um homem, vítima dos assaltantes, que parecia ter morrido há várias horas e continuava ali. Como pertinho havia uma fonte, o rapaz parou para beber água e descansar. Demorou mais de uma hora, e durante aquele tempo passaram dezenas de pessoas que paravam, iam olhar o cadáver, e seguiam caminho.
O rapaz começou a propor a algumas delas que enterrassem o morto, mas todas diziam: “Pra quê? Já está morto mesmo...” Quando se decidiu a seguir caminho, o rapaz pegou um pedaço de madeira, cavou um buraco, colocou o morto lá dentro e cobriu com terra, fazendo depois uma cruz rústica com dois galhos de árvore.
Algum tempo depois, o rapaz se envolveu em um conflito, foi preso e ficou a ponto de ser enforcado. Quando parecia estar sem saída, apareceu um homem que magicamente conseguiu tirá-lo daquele aperto e levá-lo embora. Quando o rapaz agradeceu a intervenção, e perguntou ao salvador quem era ele, o homem disse: “Sou aquele que ninguém quis ajudar depois de morto, e só você se importou”. E desaparece.
A figura do Morto Agradecido está presente em muitos folclores; gerou, entre outros efeitos colaterais, o nome da banda californiana Grateful Dead. (Ao que consta, Jerry Garcia escolheu o nome aleatoriamente, como era hábito na Contracultura, abrindo um livro ao acaso.)
Stith Thompson (The Folktale, 1977) observa que no Livro de Tobias, no Velho Testamento, este tema reaparece, sendo que o Morto Agradecido é substituído por um anjo. A história tem uma variante em que o Morto pede, em troca de sua ajuda, metade de tudo que o rapaz ganhar; quando ele se casa, o Morto sugere que a noiva seja serrada em duas (o que não chega a ser feito). Outras variantes (um duelo para ganhar a noiva, etc.) foram se juntando com o correr dos séculos.
Deixando de lado as variantes colaterais, o núcleo da história (o morto, o sepultamento, a aparição misteriosa) se mantém intacto em centenas de histórias na Ásia, na Europa e na América.
Por um lado, a ação do rapaz serve como um termômetro de humanidade. O mundo pode estar devastado pela peste ou pela guerra, mas enquanto houver alguém capaz de sepultar os mortos existe a esperança de um retorno à normalidade, à convivência humana.
Por outro lado, sepultar um morto que está abandonado por todos é praticar uma boa ação sem esperança de retorno ou pagamento. Quando ajudamos um vivo, há sempre a expectativa, mesmo inconsciente, de que um dia aquele indivíduo irá se lembrar de nossa ajuda e retribuí-la.
Ajudar um morto, contudo, é uma ajuda “a fundo perdido”, pois o sujeito sequer sabe que está sendo ajudado. O aparecimento sobrenatural do Morto Agradecido é uma compensação simbólica por esse gesto de altruísmo.
domingo, 10 de abril de 2011
2527) A anedota de Rui Barbosa (10.4.2011)
Deve ser uma das peças mais famosas da literatura oral brasileira. Às vezes é atribuída a Rui Barbosa, outras vezes a um intelectual qualquer. É sempre um diálogo entre um erudito de fala pomposa e um sujeito rústico que não entende o que ele está dizendo.
Em alguns casos, o intelectual está querendo atravessar de balsa um rio; em outros, está querendo evitar o furto de um objeto ou animal; em outros ainda, está pedindo para carregar uma carroça com caixas e outros volumes.
Vou contar a versão mais antiga que conheço. Contarei de memória, reinventando os trechos de que não me lembro, como é de praxe na Literatura Oral.
Ora pois, lá vinha Rui Barbosa andando pela zona rural quando a estrada chegou à beira de um rio. Havia uma balsa amarrada a um tronco, e nela um negão forte, que era o remador. Rui, cansado de andar, apoiando-se numa bengala, dirigiu-se a ele:
“Ó, nobre etíope de estatura avantajada! Quanto queres de remuneração pecuniária para trasladar meu indelével corpo deste polo àquele hemisfério? Peço-te que uses de magnanimidade ao fazer o cômputo da remuneração monetária a que tens direito, porque apesar da sisudez de minha indumentária estou longe de ser um nababo ou potentado, e não disponho de lastro fiduciário para fazer frente a um débito de maiores proporções”.
O barqueiro ficou perplexo e disse algo como:
“Eita doutor, o senhor tá falando inglês?!”
Rui tornou de imediato:
“Ah, aborígine de mentalidade incúria! Se o dizes por mera ignorância intrínseca ao teu ser, e por falta de luzes civilizatórias auferidas na mais tenra infância, então transijo. Mas se pretendes menoscabar a minha alta prosopopéia, pespegar-te-ei um golpe, com meu poderoso báculo, que irá fender tua caixa craniana e espalhar pela paisagem a massa encefálica de que não fazes uso, produzindo um ribombo tão ensurdecedor que fará estremecer o entroncamento das sequóias e afugentará para sempre as aves migratórias deste meridiano!”.
Tipo isso. O mais interessante de episódios assim é que – como ocorre com os Mitos estudados pelos antropólogos, como ocorre com as versões do Romanceiro Popular Nordestino, como ocorre com as nossas prosaicas anedotas de mesa de bar – não há duas versões iguais.
Mesmo que um pesquisador grave mil pessoas contando a mesma historieta, todas contarão versões substancialmente diversas umas das outras, e não estou me referindo a uma mera troca de sinônimos ou mudança na ordem das frases. As circunstâncias mudam, o vocabulário muda, as ações descritas mudam – mas a história é essencialmente a mesma.
A Literatura Oral existe numa zona cinzenta entre a fixidez da Literatura Escrita e a improvisação do teatro popular (tipo Commedia dell’Arte) em que não se trabalha com um texto fixo e sim com um roteiro de ações e de frases guardados de memória, o qual, no momento da execução, fica sempre ao sabor da memória e da agilidade mental do contador. Contar é reinventar, sempre.
sábado, 9 de abril de 2011
2526) Explodindo o clichê (9.4.2011)
O clichê é a cristalização de uma expressão. Um dia, ela foi usada pela primeira vez e funcionou. Todo mundo prestou atenção e passou a usá-la. Virou uma expressão corrente, depois uma expressão obrigatória. Passou a fazer parte da linguagem, sendo usada automaticamente, invisivelmente. As pessoas não usam o clichê para chamar a atenção ou para comunicar algo de novo. Usam porque serve de atalho. Todo leitor já viu aquilo mil vezes e vai entender na hora, e isso libera sua cabeça para dar atenção a outras coisas. O clichê é um elemento simplificador porque sua ausência de novidade faz com que seja compreendido sem ser percebido.
O que vale para o clichê da linguagem vale para o clichê narrativo, e cada gênero tem os seus. Um gênero literário é em grande parte uma coleção de clichês típicos, que se transformam em verdadeiras figuras de linguagem. Pequenos artifícios já prontos que basta estender a mão, pegar e introduzir na obra que estamos compondo. Certeza total de entendimento, sem o desgaste de tentar encontrar uma maneira nova de dizer aquilo.
Esteticamente, o clichê se justifica? Acho que somente quando existe no livro (filme, etc.) alguma coisa que vai muito além do clichê, e o clichê serve como atalho, passagem, porta de acesso mais rápido. Usar o clichê como meio para alcançar algo que seja muito bom. O romance policial tornou-se, pelo excesso de uso, um verdadeiro museu de clichês. Os aficionados do gênero (como eu e muitos) não se incomodam. O clichê nos dá o prazer do reencontro, de ver uma nova variação de um lugar-comum antigo. A gente aprecia o clichê como aprecia um chinelo velho ou a poltrona preferida.
Alguns autores, contudo, usam os clichês como meio para um fim literário diferente. Umberto Eco, em O Nome da Rosa, usa os clichês do romance detetivesco, sherlockiano, para facilitar nossa passagem através de uma história densa em que ele reflete sobre a Idade Média, a política italiana, a natureza da escrita e da memória, a importância filosófica do riso... Se não houvesse aquela série de crimes, quantos leitores iriam até o fim?
Paul Auster, na Trilogia de New York, mistura a rotina entediante dos detetives particulares do romance “noir” com elucubrações existenciais que lembram Albert Camus ou Samuel Beckett. Camus, aliás, dizia ter baseado O Estrangeiro nos romances “noir” de autores como David Goodis. O clichê e a alta literatura não são inimigos, mas é mais fácil (e mais frutífero) alguém da alta literatura saber usar bem um clichê do que o contrário. A alta literatura, aliás, fez sua fama em cima de algumas das mais respeitáveis fontes de clichês existentes, como a mitologia grega e a Bíblia. Por existirem há milhares de anos e terem praticamente formatado nossa cultura, são uma fonte inesgotável de personagens, situações, episódios, peripécias. Que pelo excesso de uso viraram clichês, mas estão sempre à disposição para que alguém lhes dê uma utilização nova.
sexta-feira, 8 de abril de 2011
2525) Os games e as artes (8.4.2011)
Roger Ebert é um crítico de cinema que leio com frequência e admiro, porque mesmo quando sua opinião sobre os filmes não coincide com a minha ele sempre tem coisas inteligentes a dizer. Para mim, isto justifica uma leitura muito mais do que a mera concordância de pontos de vista. De uns tempos para cá ele se envolveu numa polêmica porque pisou nos calos de uma das comunidades mais xiitas e mais combativas que tem por aí, a dos videogamers. Ebert afirmou, num contexto que não tive tempo de verificar, que videogames nunca poderiam produzir grandes obras de Arte. Caiu-lhe na cabeça um terabyte de emails discordantes, desde os mais grosseiros e agressivos até os bem-humorados que o questionavam em seus próprios termos. Arrependendo-se de ter mexido nessa casa de marimbondos, Ebert escreveu:
“Estou preparado para crer que videogames podem ser elegantes, sutis, sofisticados, desafiadores, visualmente maravilhosos. Mas eu creio que a natureza dessa mídia a impede de passar do estado de artesanato para arte. Que eu saiba, ninguém dessa área ou de fora dela já foi capaz de citar um game merecedor de comparação com os grandes dramaturgos, poetas, cineastas, romancistas e compositores. Que um videogame possa aspirar a ter importância artística, eu aceito. Mas para a maioria dos jogadores eles representam uma perda de horas valiosas de que dispomos para nos tornar mais cultos, mais civilizados, e ter mais empatia com nossos semelhantes”.
Os argumentos de Ebert (que colhi neste ótimo artigo-resposta de Brian Moriarty, em: http://www.gamesetwatch.com/2011/03/opinion_brian_moriartys_apolog.php) são familiares. Quando uma nova e incipiente forma de expressão aparece, a gente sempre duvida de que dali possa brotar algo igual às grandes obras de arte anteriores. E tem razão. Quando apareceu o cinema, as pessoas que gostavam de teatro diziam que o cinema jamais produziria um Ésquilo ou um Shakespeare. Tinham razão, porque o que o cinema produziu de bom (Fellini, Orson Welles, Buñuel – ou Spielberg, Kubrick, Scorsese – ou Ozu, Rohmer, Tarkovsky – coloque os seus nomes preferidos!) não tem nada a ver com o que foi feito pelos grandes nomes do teatro.
Eu digo às vezes que ainda não surgiu “o Griffith, ou o Chaplin, ou o Fritz Lang dos videogames”. Mas sei que quando surgir não será alguém que vai fazer nos games algo parecido com a obra desses caras. Ele vai dar aos games uma nova possibilidade de expressão profunda da mente humana e do sentimento coletivo humano, uma expressão que o cinema, o teatro e a literatura não podem dar, porque ela será específica do videogame. O que vai ser? Não sei, nem posso saber. Será uma arte nova, porque as novas artes surgem da conquista de novas técnicas de produção/reprodução de representações sensíveis (imagens, sons, palavras, etc.). Nem toda técnica resulta numa arte, mas toda arte é consequência de uma técnica que alguém soube usar com grandeza criativa.
quinta-feira, 7 de abril de 2011
2524) A estética do Como Pude Acreditar? (7.4.2011)
Por que motivo os personagens dos folhetins e telenovelas são tão crédulos?
Uma resposta cínica nos diz que se não o fossem não haveria história a ser contada, porque histórias dessa natureza requerem que certas mentiras sejam acreditadas durante cem capítulos, para serem desmascaradas no derradeiro.
A credulidade, no entanto, nem sempre é sinônimo de ingenuidade. Nem todo personagem acredita por ser ingênuo, embora qualquer folhetim que se preze necessite de um bom contingente de pessoas ingênuas, pessoas de coração puro e mente passiva, daquelas que adoram cair numa conversa bonita.
Acontece que um vilão de folhetim não é apenas um sujeito mau e sem escrúpulos. Vilão bom é aquele em quem pressentimos uma inteligência superior. Um vilão meramente truculento e maldoso é uma peça desconfortável do enredo, é um caroço indigesto que precisa ser extirpado pelo herói.
Muitos vilões da pulp fiction são assim. Mas gostamos quando percebemos que o vilão, além de canalha e sem escrúpulos, é também inteligente, perceptivo, tem conhecimento sutil das fraquezas humanas, tem jogo de cintura, tem senso de humor. São qualidades que de certo modo temos esperança de possuir; e o vilão deixa de ser apenas um obstáculo para ser também, provocantemente, um modelo. Ao invés de incômodo, é sedutor.
Se nós, leitores, somos vulneráveis aos encantos e aos argumentos de um tal vilão, qual não será a sorte de um pobre personagem? Acreditam, sim, deixam-se embair pelo papo-de-derrubar-avião do nosso Fantomas ou Fu-Man-Chu. Às vezes esses personagens intermediários chegam de arma em punho ao reduto do Senhor do Crime, prontos a livrar a humanidade daquela presença pestilencial; mas basta que o Anjo da Treva erga a mão e peça dois minutos de atenção para que tudo esteja perdido.
O vingador acreditará nele, e isto é mais pungente ainda quando nós, leitores, percorremos aqueles parágrafos e pensamos cá conosco: “Ih, rapaz... pois não é que, de certa forma, sob um certo ponto de vista, ele tem mesmo razão?!”
Os personagens acreditam, e num piscar de olhos estão desarmados, manietados e jogados num calabouço. Ou, melhor ainda, estão livres e de volta ao mundo, só que com o ponto-de-vista reformatado. Olham o Herói com uma desconfiança sombria, porque agora estão sabendo das suas intenções turvas, dos seus propósitos inconfessáveis.
Tudo que pensavam antes foi modificado por aquela meia hora de conversa. De agora em diante, perseguirão o Herói, sabotarão suas iniciativas, trabalharão dia e noite para derrotá-lo ou pelo menos para estorvar seus passos. Cheios de intenções nobres, farão o possível para ajustar sua conduta àquelas poucas mas terríveis "verdades" que o vilão, com ar compungido e falando quase que a contragosto, lhes revelou.
Até que, no desfecho, quando o Herói derrotar o vilão e, enfim, toda a terrível verdade for mesmo revelada, exclamarão, com um sobressalto de horror: “Como pude acreditar?!”.
quarta-feira, 6 de abril de 2011
2523) “A Estrada” (6.4.2011)
Terminei de ler The Road (2006), já traduzido e publicado no Brasil pela Alfaguara. Mais conhecido do que o livro talvez seja o filme, dirigido em 2009 por John Hillcoat, com Viggo Mortensen. Não vi o filme; o livro, que terminei de ler ontem, é daqueles que me deram vontade de, chegando à última página, voltar à primeira. Não porque quis esclarecer dúvidas ou quis reinterpretar o começo da história à luz do que foi esclarecido no final, mas pelo impulso instintivo de fazer com que aquela história continuasse acontecendo. Não sinto isto com qualquer livro, e é curioso que o tenha sentido com este que já foi considerado “o livro mais depressivo de todos os tempos”.
Houve um cataclismo qualquer que destruiu a civilização, e na Terra devastada um homem foge com seu filho de 7 ou 8 anos. As florestas foram arrasadas pelo fogo, não existem mais pássaros nem animais, os rios e o mar estão contaminados e não têm mais peixes. A vida nesse mundo permanentemente nublado e chuvoso consiste em procurar comida e armazenar água. Não existem mais cidades, nem eletricidade, água potável, comunicações, vida organizada. Os sobreviventes se organizam em milícias armadas que praticam o canibalismo e percorrem os continentes, saqueando tudo que encontram.
É um cenário pós-apocalíptico parecido com o de vários romances de Stephen King, mas Cormac McCarthy tem todas as qualidades de King sem nenhum dos seus defeitos. O livro acompanha, com uma secura verbal impressionante, a jornada de pai e filho rumo ao litoral (‘não sobreviveremos a outro inverno se ficarmos aqui”, diz o pai), empurrando estrada afora um carrinho de supermercado onde amontoam tudo que pode ser útil: lençóis, roupas, latas de comida em conserva, garrafas de água, todo o combustível que conseguem encontrar. Não conseguem achar sapatos: seus pés estão envoltos em panos e plástico, e amarrados com fios. Ao ouvir qualquer barulho empurram o carrinho para o mato e se escondem. Há cenas violentas e chocantes, mas estas, num livro de 280 páginas, não totalizam nem cinco.
O que nos prende no livro são os personagens. McCarthy raramente nos diz o que eles estão pensando ou sentindo. O livro é quase todo narrado “de fora”, apenas mostrando o que eles dizem ou fazem. Os personagens ganham, assim, o que chamo de “interioridade pressentida”, um conjunto complexo de qualidades mentais e emocionais que somos forçados a deduzir para justificar suas palavras ou ações. Pai e filho repetem pequenos rituais de sobrevivência e de reafirmação, frases que lhes servem como “bordão” para manter a sanidade mental e a convicção de que, por algum motivo, eles são “as pessoas boas” e são eles que estão “conduzindo a chama”. Um livro depressivo? Jamais. Um livro que, explorando uma situação limite, usa com plenitude recursos literários tão frugais quanto os que vão garantindo, dia a dia, a sobrevivência dos seus personagens.
terça-feira, 5 de abril de 2011
2522) Triscaidecofilia (5.4.2011)
Na verdade, existem dois termos, antônimos e simétricos. Os dicionários registram apenas “triscaidecofobia”, que é “horror ao número 13”. A lógica me diz que existe também o seu inverso, o amor por esse número: triscaidecofilia. Essa crença tem origens culturais que às vezes vale a pena pesquisar. Os norte-americanos, por exemplo, padecem de ambas as condições. A História dos EUA registra que foram 13 as colônias que se rebelaram contra a Inglaterra; daí que este número apareça de forma discreta (só vê quem tem a paciência de ficar contando) nos símbolos nacionais: são 13 faixas na bandeira e 13 flechas nas garras da águia, símbolo nacional. Por outro lado, nos EUA são muitos os edifícios que não usam 13o. andar, por acharem que não é propício. Passa-se direto do 12 para o 14. O que coloca um interessante problema prático: é o nome “décimo-terceiro” que dá azar, ou é a posição?
Dizem que na cultura hindu o 13 é um número benéfico. Eles creem que quando uma pessoa morre sua alma leva doze dias para alcançar o mundo dos ancestrais, e no décimo-terceiro dia após a morte a família pode voltar a cuidar de sua vida, sossegada, porque o morto a essa altura já terá alcançado o seu destino. Já na Inglaterra, conta-se que antigamente havia uma penalidade para comerciantes que burlassem os consumidores, e como havia o hábito de se comprar os pães por dúzia, os padeiros começaram a introduzir às vezes um pão a mais, para o caso de terem errado a conta. Daí eles começaram a espalhar a lenda de que 13 dava azar, e com isto os fregueses devolviam o décimo-terceiro pão quando o encontravam. Este costume teria dado origem ao termo inglês “baker’s dozen” (dúzia de padeiro) para designar o treze.
Algumas superstições estão ligadas a fatos históricos. Assim como na Última Ceia havia treze pessoas (e uma delas, Cristo, morreu logo a seguir), diz-se que a origem da má fama da sexta-feira 13 é o fato de que foi numa data assim que os cavaleiros Templários foram presos e massacrados na França, em 13 de outubro de 1307 (o ano também deve ter pesado). Também se diz que essa má fama foi criada e alimentada em parte pela Igreja Católica para combater as religiões pagãs, pelo fato de que um ano solar contém treze meses lunares, e era pelo ciclo lunar que os pagãos se orientavam, o que fazia do 13 um número básico de sua cultura.
A verdade é que o 13 é um desequilíbrio no 12. O número 12 é considerado um número simetricamente complexo. Ele é divisível por 2, por 3, por 4 e por 6. Um número flexível, cooptável, que se ajusta a qualquer contagem. Temos os 12 meses, os 12 signos do Zodíaco, e assim por diante. Basta, porém, somar mais uma unidade e surge o 13, um número primo, que só é redutível a si mesmo e à unidade, um número orgulhoso, indivisível – um indivíduo. A admiração pelo 13 é em grande medida a nossa admiração pelos seres de personalidade única e inimitável, que não abrem nem prum trem.
domingo, 3 de abril de 2011
2521) Fotos de viagem (3.4.2011)
Voltar de uma viagem por lugares agradáveis é também o momento de dar um balanço nas fotos de viagem. Antigamente (advérbio cada vez mais frequente nas minhas comparações) marcava-se uma noite em casa para que os amigos viessem. Servia-se vinho ou cerveja, apagava-se a luz e projetavam-se slides na parede, para os “oooh” e “rá rá rá” da platéia. Isso para os mais abastados, que tinham projetor de slides em casa. Os medianos imprimiam as fotos em papel mesmo, e os montinhos de fotos (ou os álbuns onde elas eram cuidadosamente montadas) eram passados de mão em mão. Hoje as opções são várias, mostrar na tela do notebook, na telinha do celular em momentos mais rápidos e informais, ou então plugar o notebook na TV da sala e exibir ali.
Tudo bem, mas para que? Eu nunca tive máquina fotográfica e sou até hoje um fotógrafo incompetente, fico prestando atenção no enquadramento e acabo clicando na hora em que todo mundo está com a boca torta e o olho arregalado. Mas é por falta de prática. Quase nunca levei máquina nas minhas viagens, e quando levei não foi para tirar fotos de mim mesmo, foi para clicar as coisas curiosas que via.
Mas uma vez alguém me jogou na cara um argumento irrespondível. “Como você pode provar que esteve em Paris, se não tem nenhuma foto sua diante de uma coisa que todo mundo sabe que fica em Paris?”, disse minha amiga. O argumento é antigo, do tempo em que ainda não tínhamos o PhotoShop para nos levar não só a Paris, como ao fundo do mar ou a Aldebarã; mas define a razão para que a gente compre uma câmara digital e a leve na mochila. Tiramos fotos para provar aos incrédulos que foi mesmo em Paris que passamos aquelas férias, e não escondidos no quarto dos fundos da casa do irmão da gente no Jardim Paulistano.
Mas tem outra, mais sutil do que esta. Quando vemos por fim as fotos da viagem já não precisamos mais sentir a insegurança, a precaução, o temor, o alerta que precisa ficar ligado o tempo inteiro quando estamos na viagem. Naqueles flashes tão sorridentes estávamos na verdade pensando: Será que vão bater minha carteira? Será que vou perder meu passaporte? Encontrarei um câmbio favorável quando for trocar dinheiro? Pagarei excesso de bagagem, somente porque estou trazendo 200 livros? Durante as fotos é este o subtexto psicológico de cada momento, em que a cabeça organizatória precisa tomar a frente a colocar em segundo plano a cabeça curtidora, a cabeça “carpe diem”.
Numa viagem, somos um “fama” cortazariano, computando e atualizando o tempo inteiro os gastos com o frigobar, imaginando roteiros que economizem táxi. Quando voltamos para casa e olhamos as fotos, essa insegurança se desmanchou no ar. Agora sim, somos um mero cronópio feliz da vida, revivendo um momento bom. Ou talvez vivendo-o pela primeira vez em sua plenitude, porque somente agora temos 100% de certeza de que o momento foi bom mesmo e nenhum pivete estrangeiro nos arrebatou a sacola da livraria.
sábado, 2 de abril de 2011
2520) “O Homem com a Câmara” (2.4.2011)
Este filme de Dziga Vertov, exibido recentemente na TV a cabo (e que pode ser visto no YouTube, dividido em segmentos) talvez tenha inaugurado o gênero “documentário poético”, onde se juntam duas coisas aparentemente incompatíveis, o registro direto de imagens reais que ocorrem à revelia do diretor e a manipulação dessas imagens para produzir uma idéia ou emoção que vai muito além delas. O filme é basicamente um passeio pela Rússia dos anos 1920. Acho que surgiu como um subproduto ou efeito colateral do cinema de propaganda soviético, quando Lênin mandou os cineastas para a rua para documentar a construção do socialismo e mostrar como o novo regime e a industrialização acelerada estavam transformando o país para melhor. Propaganda estatal? Dirigismo da ditadura? Pode até ser, mas o fato é que todo o grande cinema russo desse tempo (Eisenstein, Pudovkin, Dovjenko, etc.) foi feito às custas do Estado e com intenções propagandísticas. Dziga Vertov (1896-1954), inventor do conceito de “câmera olho”, foi o principal documentarista desse período.
O filme é uma colagem de imagens do povo russo andando na rua, trabalhando nas fábricas, divertindo-se nos parques, etc. As imagens em si têm pouca coisa de excepcional, além do fato de serem plasticamente belas, bem enquadradas, de vez em quando explorando ângulos inusitados, etc. O filme resulta da justaposição dessas imagens, e na verdade foram os russos desse período que criaram as maiores façanhas de montagem cinematográfica. Ninguém como eles sabia encadear tão bem imagens que, filmadas em lugares e épocas diferentes, por cinegrafistas diferentes que improvisavam na rua sem roteiro, pareciam feitas uma para a outra.
Há duas imagens recorrentes que para mim sintetizam o filme. Uma delas é a que lhe dá o título: o homem com a câmara, filmando no meio da rua. Porque o diretor filmou os camera-men que estavam fazendo o filme, numa metalinguagem sem nada de pretensioso ou narcisista. Vemos um carro sem capota andando numa rua, cheio de gente sorridente que olha a paisagem urbana. Um segundo depois, de outro ângulo, vemos o mesmo carro, e ao lado dele outro carro que vai na mesma velocidade, tendo em cima um tripé com uma câmara e um homem rodando a manivela: é a câmara que filmou a imagem anterior. Basta isto para nos projetar numa cadeia infinita de possibilidades e pensar que por trás de cada câmara que filma há outra que filma esta, e assim por diante. (E lembrar o verso de Fernando Pessoa: “Deus é o Homem de outro Deus maior...”).
A outra cena é a da mulher (a esposa de Vertov) na mesa de montagem, manipulando pedaços de filmes com rostos de crianças, cortando-os, pendurando-os; e em seguida vemos esses mesmos pedacinhos se animando, entrando em movimento. Existe uma poesia nisso. Talvez a melhor definição de cinéfilo seja: “Pessoa capaz de se maravilhar com o fato de que o cinema dá a ilusão de movimento através de uma sucessão de imagens paradas”.
Assinar:
Postagens (Atom)