sexta-feira, 3 de abril de 2009
0948) Vitória de Pirro (31.3.2006)
Pode ser mero exagero político, ou pode ser uma dessas pegadinhas apócrifas tão comuns na Internet. Quem duvidar, clique até lá e confira. No saite de uma publicação chamada “The Moderate Independent” (em: http://www.moderateindependent.com/v1i4pyrrhic.htm) comenta-se que os responsáveis pelos dicionários da língua inglesa Webster’s, Random House e Oxford começaram a considerar a possibilidade de aposentar a expressão “vitória de Pirro” e usar em seu lugar “vitória de Bush”, para definir uma vitória tão desastrosa que mal se distingue de uma derrota.
A origem do termo vem de Pirro, Rei do Épiro, que viveu no século 3 a.C., e combateu Roma. Na batalha de Asculum ele derrotou os romanos, mas sofrendo tantas perdas que afirmou depois: “Mais uma vitória como esta e estarei acabado”. A expressão “vitória de Pirro” passou à história militar e à história política. No Brasil recente, tanto Governo quanto Oposição têm conquistado vitórias eleitorais ou jurídicas, mas a um custo moral tão grande, e com tamanho desgaste diante da opinião pública, que podem ser consideradas vitórias de Pirro.
Ou vitórias de Bush, como parecem preferir os dicionaristas. Steve Carlson, do Random House, teria dito: “Ficamos discutindo sobre o sucesso de Bush-pai quando armou Osama Bin Laden para expulsar os russos do Afeganistão. Depois, o seu sucesso em armar Saddam Hussein para derrotar os aiatolás do Irã na Guerra Irã-Iraque. E agora o sucesso que Bush-filho está obtendo em sua operação para libertar o Iraque. A expressão ‘vitória de Pirro’ foi usada tantas vezes em nossa conversa que talvez valesse a pena fazer uma substituição”. John Smytheton, do Oxford English, teria afirmado: “Pirro ficou famoso devido a uma vitória que lhe trouxe mais custos do que benefícios. Os dois Presidentes Bush acumularam tantas vitórias deste tipo que seria justo transferir para eles esta honra. Eles merecem o título de Reis da Vitória Detrimental”.
Numa guerra nunca existem vencedores, só derrotados. Triunfos militares são sempre ilusórios, principalmente quando não são seguidos por triunfos políticos capazes de evitar humilhações aos vencidos, caos econômico e social nos países derrotados, partilhas injustas de territórios, etc. Grande parte do que acontece hoje entre Israel e Palestina é fruto de políticas apressadas e negligentes logo após a II Guerra Mundial. Uma vitória militar é sempre a conclusão de uma derrota política. Depois que um exército derrotado depõe as armas, cabe aos políticos uma nova interveção, um novo recomeço, para que o povo derrotado não se transforme num inimigo eterno.
Às vezes é possível. EUA e Japão lutaram ferozmente na II Guerra, uma luta que terminou com um holocausto atômico sem precedentes na História. Mas seus políticos conseguiram fazer a paz, e ao que me consta não ficou nenhuma seqüela militar entre os dois. O que está sendo feito no Iraque, no entanto, merece mesmo o epíteto de “vitória de Bush”.
0947) Rosa e as pistas falsas (30.3.2006)
Um dos segredos mais públicos da história de Literatura é a identidade de Diadorim, o jagunço por quem outro jagunço, Riobaldo, vive apaixonado em silêncio, em Grande Sertão: Veredas. Esta paixão impossível não é o tema central do romance, mas tornou-se tão famosa que hoje em dia alguém só começará a ler o livro sem saber que Diadorim na verdade é mulher se for um leitor muito desligado da vida literária.
Este elemento é um dos mistérios principais do livro, e, como bom escritor de histórias de mistério, Guimarães Rosa faz um jogo de gato-e-rato com o leitor, cheio de despistes e de falsas sugestões.
A certa altura do livro, Riobaldo conhece Otacília, filha de fazendeiros, moça linda por quem ele julga também se apaixonar. Àquela altura ele já admitira a si próprio que amava Diadorim, e muitos críticos vêem na figura de Otacília uma tentativa de “retorno à normalidade”, de “fuga ao proibido”.
E Riobaldo não deixa de perceber que Otacília e Diadorim “não se cruzam” desde o primeiro momento. O poeta Alexei Bueno citou numa palestra recente o trecho em que Riobaldo se refere a este encontro, e que acontece nas páginas 181-182 da 2a. edição, a que possuo:
“Ela não gostava de Diadorim – e ele tão bonito moço, tão esmerado e prezável. Aquilo, para mim, semelhava um milagre. Não gostava? Nos olhos dela o que vi foi asco, antipatias, quando em olhar eles dois não se encontraram. E Diadorim? Me fez medo. Ele estava com meia raiva. O que é dose de ódio – que vai buscar outros ódios. Diadorim era mais do ódio do que do amor? Me lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. Como foi que não tive um pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida? Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram”.
Rosa, com a habilidade de uma Agatha Christie ou de um Ellery Queen, passa a verdade diante do nosso nariz, mas só sentimos o cheiro da mentira. Na situação que ele nos coloca, o que vemos é o confronto mudo entre Diadorim, o jagunço feroz, matador, e a suave Otacília.
E quando Rosa se refere ao corpo de uma moça “morto à mão”, etc., o que nos induz a supor é o medo de Riobaldo de que Diadorim viesse a matar Otacília, pelo ódio instintivo que sente por ela.
A finura psicológica desse momento é ainda maior porque ele, Rosa, nos deixa entrever na narração de Riobaldo a esperança de que Diadorim quisesse mesmo matar Otacília por ciúmes, o que seria uma prova de que Diadorim também o amava.
É só no fim do romance que percebemos que a moça esfaqueada que ele nos descreve não é Otacília, mas o próprio Diadorim, morto no derradeiro combate, e só então tendo seu segredo revelado.
0946) Os homens elefantes (29.3.2006)
O leitor deve conhecer, pelo menos de ouvir falar, o filme de David Lynch O Homem Elefante (1980), inspirado na vida de John Merrick, um inglês que ganhou este apelido por causa de uma grave doença deformadora. Merrick voltou a ser lembrado na imprensa dias atrás, por causa do estranho resultado de uma experiência de laboratório na Inglaterra.
Um grupo de oito voluntários se inscreveu como cobaias nos testes de uma nova droga produzida pela Parexel, empresa farmacêutica sediada em Boston (EUA). A droga, provisoriamente designada como TGN-1412, é um tipo de anticorpo desenvolvido pela alemã TeGenero, para tratar leucemia e problemas imunológicos, e provocou em alguns voluntários uma reação violenta. Dois foram internados em estado crítico, quatro foram seriamente afetados; dois voluntários que tomaram um placebo (substância neutra, para ver se ocorrem efeitos meramente psicológicos) nada sentiram.
Segundo um destes dois, minutos depois de tomarem a droga os outros seis pacientes entraram em choque. Um deles gritava: “Doutor, minha cabeça dói, minhas costas doem, não posso respirar, socorro!”. Todos vomitavam sem parar. A noiva de um deles declarou: “Ele está muito mal, o sistema imunológico dele simplesmente desapareceu”. E um deles foi chamado de “Homem Elefante”, porque sua cabeça e seu pescoço incharam até ficar três vezes maiores do que o tamanho normal.
A empresa declarou: “Reações tão fortes são extremamente raras neste tipo de teste. Usamos todos os procedimentos padrão que se empregam para testar uma droga em seres humanos pela primeira vez. Há todo um protocolo de precauções, preparado pela empresa e aprovado por comitês de ética e entidades reguladoras”. O fabricante afirmou: “Estes resultados são totalmente inesperados e não refletem os resultados que obtivemos nos testes iniciais de laboratório, os quais nos permitiram experimentar a substância em seres humanos”. Cada voluntário recebeu cerca de duas mil libras, ou 3.500 dólares, para participar do teste.
Há muitos livros e filmes sobre efeitos imprevistos neste tipo de experiência. No Scanners de David Cronenberg, os sujeitos acabam conseguindo explodir a cabeça uns dos outros com um simples esforço mental. Em Jacob’s Ladder de Adrian Lyne, Tim Robbins perde o contato com a realidade e se vê transportado para um mundo de pesadelos e criaturas ameaçadoras. Quando a gente fala sobre “o flagelo das drogas”, geralmente está se referindo às drogas ilegais do prazer (maconha, cocaína, ecstasy, etc.), mas esta é apenas uma face do problema. Existem as drogas legalizadas do prazer (cerveja, uísque, cigarro, etc.); e as drogas terapêuticas legalizadas. Cada uma delas é um abismo de perigos, e uma fonte de alívios. Fomos nós que as inventamos, permitimos que (legais ou ilegais) se tornassem mercados de bilhões de dólares, e, num certo sentido, hoje é sua indústria e comércio que vai na frente, e nós a reboque.
0945) ETA Pau-Pereira! (28.3.2006)
Perdoem o trocadilho infame; não resisti. Uma das maiores descobertas de Freud (em O Trocadilho (Chiste) e Suas Relações Com o Inconsciente) é de que muitos dos nossos atos-falhos inconscientes são associações de idéias através da sonoridade das palavras, e nenhum poeta que se preze pode ignorar um processo tão crucial quanto este. Dias atrás, o ETA, grupo armado do País Basco na Espanha, anunciou um “cessar-fogo permanente” em sua luta pela independência. Meses atrás, o IRA (Exército Republicano Irlandês) fez algo parecido. São, portanto, dois movimentos separatistas europeus que renunciaram (pelo menos por enquanto) à luta armada e decidiram perseguir seus objetivos através do diálogo político. Para quem vive se desesperando com a selvageria reinante no mundo, é um alento.
Todo separatismo se parece, por isto minha alusão acima à heróica “República de Princesa” de nossa velha Paraíba. Todo separatismo é um grito de revolta, de impaciência, de “chega, não agüento mais”. Às vezes é uma solução, às vezes é um gesto suicida. Emocionalmente, o separatismo político não é diferente da atitude de um filho que, vivendo às turras com os pais, resolve fugir de casa, ou de uma mulher que, maltratada pelo marido, volta para o lar paterno. Separatismo envolve duas atitudes: 1) a decisão de não mais reconhecer uma autoridade que até então era aceita; 2) a decisão de não mais viver naquela companhia.
O caso do IRA irlandês e do ETA basco é trágico porque sua luta não é uma decisão de uma população inteira. A população pode estar insatisfeita com a situação política em que vive, mas nem sempre concorda com o método adotado por estes grupos: o terrorismo, o assassinato político, que era a estratégia dos outros grupos de esquerda urbana dos anos 1970: Baader-Meinhof, Brigadas Vermelhas, Tupamaros, etc. Uma pesquisa feita em 2004 pela Universidade do País Basco mostrou que 87% dos habitantes da região achava que era possível conseguir os objetivos do grupo (independência, federalismo, autonomia, etc.) sem recorrer a violência. Sabiamente, o grupo aceitou a voz da maioria e encerrou a sua década-de-1970 particular (o ruim é pedir desculpas aos 800 mortos e milhares de feridos que deixou para trás).
Na política, como nas brigas de bar, recorre-se à violência quando se percebe que os argumentos não adiantam, seja porque são inconsistentes, seja porque os interlocutores estão transtornados. O problema da violência é que ela deixa seqüelas difíceis de extinguir. Veja-se o caso dos judeus e palestinos, por exemplo. Uns sentem-se no direito de viver em paz em seus domínios, sem bombas terroristas. Os outros sentem-se no direito de ter seu estado e seu território, sem serem tratados como marginais, e sem serem invadidos pela polícia do país vizinho. Abstratamente, ambos têm razão, mas lá (mais do que na Irlanda e na Espanha) vai ser difícil apagar o rastro de fogo e sangue que essa guerra inútil já deixou.
0944) Canções de rapariga (26.3.2006)
Perdoe o leitor a franqueza do título; justifico-o alegando que há termos ainda mais grosseiros. Visitem o Aurélio ou o Houaiss, e vejam a verdadeira hiléia verbal que floresce sobre a mais antiga das profissões. E na música popular, então, a coisa é ainda mais séria. Mulheres-da-vida têm sido um tema predileto dos compositores. Por que será? Maldo eu que pela instintiva percepção do quanto as duas profissões se parecem.
Chico Buarque desceu fundo a esses abismos, começando pela injustamente esquecida “Umas e Outras”, onde compara as vidas de uma freira e de uma rameira: “O acaso faz com que estas duas / que a sorte sempre separou / se cruzem pela mesma rua / olhando-se com a mesma dor”. Em “Ana de Amsterdam” (com Ruy Guerra), a mulher-da-vida conta na primeira pessoa: “Sou Ana de vinte minutos / sou Ana da brasa dos brutos na coxa que apaga charutos / sou Ana dos dentes rangendo / e dos olhos enxutos”. Em “Geni e o Zepelim” ele recria magistralmente uma canção de Bertolt Brecht (ver “Histórias contadas muitas vezes”, 30.7.2003).
Alguém precisa tomar vergonha e escrever um estudo sobre as canções de MPB e a mitologia masculina envolvendo a meretriz e o freguês apaixonado. “Corrientes 348” seria um bom título para esse livro, que não poderia esquecer a obra monumental de Adelino Moreira: “Meu vício é você” (“Eu quero este corpo que a plebe deseja / embora ele seja prenúncio do mal”), “A flor do meu bairro” (“Ela fingindo desejo a boca me ofereceu / e eu paguei por um beijo que no passado foi meu”), “Mariposa” (“Segue o teu caminho, mariposa, já que esta luz te embriaga”) e dezenas de outras.
Há uma canção cujo autor não sei, porque tem um título (“Flor do Lodo”) usado por muitos compositores. A que lembro começa dizendo: “Nesta madrugada calma e fria, venho, ó mulher, me despedir...” e termina: “Não posso mais viver ao teu lado, mulher, flor do lodo, adeus”. Talvez os intérpretes sejam a dupla Bolinha e Biá, que já nos deu a primorosa “Boneca Cobiçada”: “Boneca cobiçada das noites de sereno / teu corpo não tem dono, teus lábios têm veneno...” E tem a “Boneca de Pano” de Assis Valente: “Em vez de boneca de louça / hoje é boneca de pano / em um sombrio cabaré”. E tem o clássico samba-de-zona gravado por Abdias: “E eu / pra não morrer de tristeza / me sento na mesma mesa / mesmo sabendo quem és”.
Pretendo dedicar um dia um artigo inteiro à obra-prima “Dolores Sierra” de Wilson Batista e Jorge de Castro, se não o fizer antes celebrando a eterna “Conceição” celebrizada por Cauby Peixoto. Meninas pobres que vão na conversa dos rapazes ricos, como a “Rita de Zé Pinheiro” do poema do saudoso Ramalho Filho. Mulheres que na adolescência foram iludidas por homens adultos; depois de maduras e “escoladas”, vingam-se, pintando-os-canecos com os bestas que caem nas suas garras, e no fim das contas a gente não sabe de quem sentir mais pena. Garçom! Apague a luz e traga a saideira.
0943) O conto narrativo (25.3.2006)
O que é o conto narrativo? É o que conta uma história com começo, meio e fim.
Parece uma obviedade, mas não é. A grande maioria dos contos que leio hoje em dia não contam nada. São registros de emoções, de impressões, de lembranças, entremeados com pequenos episódios. Servem ao autor para exemplificar uma idéia, mas a rigor não constituem uma narrativa.
Simplificando bastante, eu diria que o conto narrativo é aquela história tradicional do século 19, mas que o conto do século 20, o conto moderno e contemporâneo, vem abrindo mão da narrativa com o mesmo espírito com que a Poesia abriu mão da métrica e da rima, e a Pintura abriu mão do figurativismo.
Algum problema com isso? Por mim, nenhum. Todos os estilos são interessantes, todos podem dar origem a contos de boa qualidade.
O problema é quando essa cronologia começa a virar um juízo de valor, como se as formas mais recentes viessem necessariamente para substituir e extinguir as formas que as precederam. “Que coisa mais velha, pintura figurativa! O negócio é abstracionismo”. “Ah, ninguém faz mais poesia rimada e metrificada, isso é coisa de antigamente”. E assim por diante.
Vai daí que hoje em dia há uma enorme expansão do conto que não tem nenhuma história para contar. É o conto-crônica, o conto-poema, o conto-desabafo, o conto-auto-análise.
Nada contra esse tipo de conto, é claro. Há pessoas que o transformam em obras-primas, como é o caso de Clarice Lispector. Mas a maestria de Clarice deixa nos seus jovens leitores a impressão de que qualquer pessoa pode (e deve) escrever como ela, assim como a maestria de Machado de Assis (cujos enredos, em geral, são limitadíssimos) nos dá a impressão de que qualquer sucessão de fatos banais do cotidiano resulta automaticamente num bom conto.
O que salva e justifica os textos de Clarice e Machado não são as histórias que contam, são a tensão elegante do estilo, onde cada frase parece uma corda retesada e pronta para desferir uma seta; e a sua capacidade de, a cada parágrafo, fazer emergir mais uma camada até então insuspeitada da psicologia de seus personagens (ou da voz anônima que nos fala).
Grande contista narrativo é outra coisa. Ele tem histórias originais a contar, histórias em que vemos uma imaginação em movimento, e não um simples observador do cotidiano (contra os quais, repito, nada tenho; mas não são a única opção estética possível).
Edgar Allan Poe, Dalton Trevisan, Jorge Luís Borges, Rubem Fonseca, Ruth Rendell, Conan Doyle, Julio Cortázar... bem, não vou encher isto aqui com uma lista. Estes escritores imaginam pessoas, ambiente, uma situação invulgar, o desdobramento dessa situação, e tudo que sucede ao longo deste processo.
No conto narrativo há sempre um senso de urgência, de tensão, uma concentração dramática nos fatos narrados que lhes dão um poder hipnótico e deixam em nós um eco inesquecível.
0942) A verdade do corpo (24.2.2006)
(a cabana de Thoreau)
Quando menino li um texto sobre a vida de Sir Walter Scott, o autor de Ivanhoé (que até os 40 anos de idade eu pronunciei como se escreve, até que uma inglesa me sugeriu dizer “áivan-rú”). No fim da vida, Scott estava muito doente, e endividado pela falência de sua editora. Sua única saída para pagar milhares de libras era escrever livros e mais livros, porque todo livro seu vendia bem. Ele escrevia deitado na cama, sem forças para se levantar, gritando devido às dores horríveis. Um secretário ficava sentado ao lado, com pena e papel. Quando as dores cessavam, Scott parava de gritar e retomava a história do ponto em que havia parado, até que novo acesso de dores viesse. E assim viveu seus últimos anos (a dívida foi quitada por direitos autorais, alguns anos depois de sua morte).
Isto sempre me pareceu (e ainda me parece) um belo exemplo do domínio do espírito sobre a matéria, da força de vontade sobrepondo-se às limitações do corpo, etc. Mas podemos muito facilmente encontrar exemplos contrários, ou seja, casos em que a mente vai de encontro às necessidades do corpo. Drogas, bebida, dissipação; excesso de sedentarismo ou excesso de trabalho; falta de cuidados com a saúde. Nesses casos, não posso deixar de comparar a mente ao Governo e o corpo ao Povo. O Governo é, em tese, um subproduto do Povo, eleito para administrar seus interesses, mas bem depressinha começa a cultivar interesses próprios e egoístas – e o Povo que se dane. Com a Mente acontece a mesma coisa. Ela é um software de instruções que se destina a proteger e bem administrar o corpo, mas quantas vezes fazemos com ela justamente o contrário! Inviabilizamos nossos tímpanos ouvindo rock no walkman. Entupimo-nos de batatas Pringles e de Coca-Cola, por preguiça de comer uma refeição de verdade. Estragamos nossa vista passando o dia em frente da TV ou do computador. Et cetera.
Tem horas em que o corpo começa a dar sinais de exaustão. “Pára, pelo amor de Deus, dá um tempo, são 4 da madrugada, não tô agüentando mais”, e a Mente, como uma elite arrogante e orgulhosa, queixa-se em altos brados: “Ora que saco! Eu aqui precisando ler as últimas 100 páginas de um livro importante, e você aí atrapalhando meus estudos!” Intelectual tem esse problema. Força os limites físicos até não poder mais. Quando começam a pipocar as dores, o cansaço, o mau funcionamento, a Mente põe logo a culpa no Corpo, que é egoísta, não a deixa funcionar em paz.
Thoreau, o naturalista e escritor americano, dizia: “Se você quer ficar animado, com a mente cheia de energia, faça uma longa caminhada sob um temporal, ou através de uma floresta coberta de neve. Entre em contato com a natureza bruta. Sinta frio. Sinta fome. Sinta cansaço”. Masoquismo? Não, camaradinhas. É uma maneira de “cansar o corpo pro coração repousar”, de fazer com que a mente (que, dizem, consome 60% da nossa energia física) ajude o corpo a ficar mais forte, e vice-versa.
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