Já comentei aqui no blog um ou outro livro de minha irmã Clotilde Tavares, “a Doutora”, se bem que para comentar os escritos dela eu fico na dúbia posição de não poder elogiar, porque alguém vai falar de panelinhas e de nepotismo cultural, e não poder criticar, senão ela me mata.
Não é bem assim, claro. Estou fazendo graçola porque o
problema é de outra natureza – o fato de que temos um background literário muitíssimo semelhante, passamos a vida lendo e
escutando as mesmas coisas, de modo que tudo que ela escreve me parece tão bem
feito quanto uma toalha de renda e tão natural quanto água de moringa.
De Repente a Vida
Acaba (Natal: M3, 2019) é o que ela chama de “primeiro romance”, embora eu
também considere romances suas outras narrativas de ficção como A Botija (São Paulo: 34, 2003) e O Monstro de Sete Bocas (Natal: Jovens
Escribas, 2015); mas isto são picuinhas de nomenclatura. Eu entendo: é porque
os anteriores são fininhos, e este livro novo é do tipo que se você botar em pé
numa mesa, ele fica.
Ver aqui:
Este livro de agora é a história em-paralelo de duas
mulheres, duas amigas meio próximas, meio afastadas. A primeira narradora,
Maria Eulina, é uma senhora com seus 60-e-bote-força, meio aposentada, que vive
sozinha, e curte a dor-de-cotovelo de querer ser escritora e não saber como,
apesar de ser uma mulher culta, lida, preparada. E de repente (em circunstâncias folhetinescas
que não revelarei aqui) chega-lhe às mãos um livro escrito por essa amiga, que
gosta de se apresentar pelo cognome de Lady Midnight, uma figura mais jovem,
doidona, biriteira, rapazeira, solta-na-buraqueira...
E a narrativa vai em paralelo acompanhando essas duas
figuras, uma dando nota na vida da outra. É como se fosse a Perpétua (Joana Fomm)
da novela Tieta lendo a autobiografia
de Rita Lee e de parágrafo em parágrafo fazendo: “Humpf!...”
Existe uma longa discussão mundo-afora sobre essa coisa
do ângulo feminino, o olhar feminino, a escrita feminina, etc., mas não sou
doido de me meter nela. No livro, tem dois olhares femininos esgrimindo um com
o outro o tempo todo, e a primeira impressão que tenho é o de ninguém ali estar
se preocupando em ser feminina ou em feminizar coisa nenhuma.
Talvez por conhecer a autora eu ache isso muito natural:
mas não vejo ali nenhuma preocupação em “contar uma narrativa feminina”, como
não vejo em “contar uma narrativa urbano-nordestina”, e aliás o livro é as duas
coisas o tempo todo. Quem conheceu Natal dos velhos tempos me desminta. (Me
refiro à capital do Rio Grande do Norte, onde vive há décadas a renomada
beletrista.)
Pra mim o mais bem realizado é a linguagem ou as
linguagens, porque há duas narradoras. Lá na nossa casa – e agora dou um salto
de pelo menos 50 anos no passado – lia-se e conversava-se sobre livros. Eu e a Doutora,
que somos os mais velhos dos quatro irmãos, acabamos assimilando uma quantidade
muito grande de leitura precoce, porque lemos Conan Doyle e Maurice Leblanc e Monteiro
Lobato e Michel Zevaco e Shell Scott e Machado de Assis e Agatha Christie e
Coelho Neto e Raquel de Queiroz...
Vai daí que a gente assimilou, precocemente, uma certa
prosa antiquada, vitoriana (bote aí Doyle e Coelho Neto) misturada a uma prosa
mais solta e “acanalhada” (bote aí Lobato e Shell Scott), sem atribuir valor transcendental
nem a uma nem a outra.
Me lembro uma vez em que peguei uma carta de minha irmã
para mostrar a alguém, alguma informação tipo endereço ou telefone a ser
copiado. A pessoa observou que no fim ela se despedia dizendo: “Outrossim,
saúde e fraternidade”, e disse: “Sua irmã é uma pessoa muito formal, hein?!...” Não sabia que é uma piada-interna nossa,
tirada do Tratado Geral dos Chatos de
Guilherme de Figueiredo.
Esse uso tongue-in-cheek
de qualquer voz narrativa ao alcance da mão é uma coisa que a pessoa faz
instintivamente mas às vezes bate na trave de quem lê – e não entra. Paciência.
Eu gosto quando vejo Lady Midnight narrando suas aventuras etílicas e notívagas,
e sua via-crucis maternal, numa prosa tipo:
Despenco no sofá, atiro longe os sapatos, pés em chama, tudo em brasa,
faz calor e esse jeans está tinindo de apertado, engordei. As crianças chegam
da escola e me contam as novidades, domingo é dia do papai, a gente faz o
cartão pra quem, pra o pai da gente mesmo ou pro Carlos? Quem é o pai de vocês,
é o Carlos ou é o outro? É o outro. Então mandem o cartão para o outro e não me
falem mais do Carlos, que eu não quero nunca mais ouvir falar no nome desse
homem. Mas mamãe, e ele não é seu namorado? Era, era, de hoje em diante não é
mais, entenderam, mamãe acabou o namoro, vão tomar banho, dê cá um beijo,
vistam um short limpo e vão andar de bicicleta. (p. 110-111)
É prosa falada, mas um falado telegráfico, sob tensão,
onde tudo é coloquial, mas não cede à tentação, poderosíssima em nossa pátria, de
descambar para a oratória, a peroração, o bem-escrito; nããã, tem que ser assim,
cortes telegráficos, o essencial vai sendo dito, e quem não entender uma coisa
assim tenha paciência, desista de ser leitor e vá andar de bicicleta.
Ou então Maria Eulina, muito doutoralmente acadêmica,
comentando com sobrancelha arqueada o livro da “amiga”:
Esse texto de Aline me traz de volta aquele tempo em que a gente se
encontrava tanto, trabalhando juntas e trocando aqui e acolá uma idéia, um
segredo, mas eu nunca consegui acompanhar o ritmo daquela doida. A vida era uma
festa e o mundo era muito mais animado do que hoje, com essas festas sem graça,
sem noção, tudo junto e misturado, ninguém sabe mais quem é homem ou mulher, e
se a festa for de gente mais velha é uma pieguice sem tamanho, ainda dá para
aguentar Abba, os Carpenters, ou Djavan, ou o Chico dos velhos tempos mas pelo
amor de Deus, Emilio Santiago e Guilherme Arantes são demais para mim, (...)
Parece que estou com ela de novo. Faz tanto tempo. Lembro dela de microssaia
jeans, botinhas, uma camiseta linda, amarela, com a foto da Marilyn, o cigarro
sempre aceso, o batom vermelho, o furor. Aline escreve como quem fala, escreve
um texto vivo mas escreve mal. Muito advérbio, muito adjetivo, se cada um fosse
um tijolo dava para calçar uma cidade inteira de principalmentes, exatamentes,
completamentes... (p. 58-59)
Falei em Perpétua de Tieta
mas foi mera maldade com a personagem. Maria Eulina, na verdade, ao ler as
confissões sexuais da outra, parece mais é com a Rainha Elizabeth II tomando o
chá das cinco com Madonna e pensando: “Vejam só, uma moça tão inteligente, tão
cheia de energia, desperdiçando a vida dessa forma...”
As duas são parecidas e diferentes, e a curiosa relação
entre elas, na narrativa, não é a de uma troca, um confronto, um conflito: é
uma espécie de voyeurismo em mão única, porque Aline a Doida em momento nenhum
de seus escritos se refere à existência de Maria Eulina a Séria, que podemos
supor uma coadjuvante, com poucas falas, em sua vida de Rê Bordosa. O livro é
contado do ponto de vista da "séria", é através desta e de seus comentários que
acessamos, em mão única, a vida da outra – que está só vivendo, e
cagando-e-andando (como ela diria) para quem esteja dando nota em sua vida.
Existem escritores homens capazes de “psicografar”
personagens femininos (Machado de Assis, o contista, era um deles), mulheres
idem com os masculinos (Ursula LeGuin é um bom exemplo), mas me parece que o
segredo é não forçar a barra da caracterização, porque aí se cai no clichê. Pensar
numa pessoa, e não num cabide de convenções. Às vezes o cara quer escrever uma
cena sobre uma mulher – e bota ela bordando – ou amamentando – e não entende dessas
mecânicas. Custava nada botar a moça dirigindo num trânsito ruim, consertando
uma prateleira, chegando numa festa sem conhecer ninguém, escolhendo um
presente? Mulher também faz isso.
O livro é da Editora M3 (Natal, RN) e maiores informações
podem ser obtidas com a preclara escritora: clotilde.sc.tavares@gmail.com