São aberturas-de-canção tão parecidas que mesmo vindo de lugares tão distantes e vozes tão diferentes não tinha como não perceber a reiteração de um motif, de uma daquelas maneiras-de-dizer ou “gestos verbais” cristalizados por milênios de uso.
Bob
Dylan cantava, em “Girl From the North Country”:
If you’re traveling to
the North country fair
Where the wind hits
heavy on the border line;
Remember me to one who
lives there.
She once was a true
love of mine.
Dylan com Johnny Cash (1969):
Eu ouvia essa canção do álbum Nashville Skyline (1969), onde a voz de Dylan fazia dueto com o
barítono imponente de John Cash, mas Dylan já a havia gravado num álbum
anterior, The Freewheelin’ Bob Dylan (1963).
Dylan solo (1963?):
Eu sempre traduzia essa primeira linha assim: “Se você
está viajando para a feira do país do Norte...”. Depois me ocorreu que também
pode ser: “Se você está viajando para o belo país do Norte...”, com “fair”
sendo usado como em My Fair Lady, e
posposto ao substantivo, ao estilo clássico.
Minha leitura estava contaminada, certamente, pela canção
Scarborough Fair, balada tradicional
adaptada por Simon e Garfunkel em 1966, e grande sucesso da época:
Are you going to
Scarborough Fair
(parsley, sage, rosemary
and thyme)?
Remember me to one who
lives there;
She once was a true
love of mine.
(Digressão: Essa repetição literal nos versos 3 e 4 não é
plágio É o resíduo íntegro de linhas que passam intactas de geração em geração
de poetas, tal como ocorre em nosso Romanceiro Ibérico, onde às vezes é
possível rastrear um único verso (uma descrição, comparação, declaração de
amor) que pula de romance em romance, de poema em poema, ao longo dos séculos e
dos países.)
O ponto intressante aí é que na canção de Simon &
Garfunkel existe, sim, a menção clara de que o poeta se dirige a alguém que
está indo para uma feira, e lhe faz um pedido:
Você está Indo para a Feira de Scarborough
(salsa, salva, alecrim e tomilho)?
Dê lembranças minhas a alguém que mora ali;
ela já foi um grande amor meu .
Essa segunda linha indica justamente as ervas e temperos
que se espera comprar nessa feira; é como se por aqui a gente dissesse: “coentro,
cebolinha, pimenta-do-reino e cominho”.
Pode me chamar de abestado, mas eu marejei os olhos
quando em 1976 me bateu nas mãos o álbum Nas
barrancas do Rio Gavião, primeiro disco de Elomar, e eu me deparei pela
primeira vez com este clássico, “O Pedido”:
Já que tu vai lá pra feira,
traga de lá para mim
água da fulô que cheira
um novelo e um carrim...
São milênios de vida rural em que a feira é o grande
atrator dos produtos, dos projetos, das esperanças, das curiosidades de milhões
de pessoas que vivem no semi-isolamento dos pequenos sítios e pequenos
povoados. A gente tem a mania de dizer: “Nordestino não pode ouvir alguém falar
que vai pra uma cidade grande, faz logo uma encomenda.” Não somos somente nós;
aposto que no Cambodja, na Armênia, em Honduras
e na Calábria não é muito diferente.
E pouco me importa se a Elomar não é muito simpática a
música popular dos Estados Unidos. As coisas que Bob Dylan e Elomar cantam já
estavam sendo cantadas antes mesmo de Colombo descobrir a América.
A “ida para a feira” é uma mini-migração recorrente na
memória das sociedades rurais; a feira ocorre sempre num lugarejo maior do que
o lugar de origem dos feirantes. É lá que acontecem as coisas:
Se não chover, amanhã vou passear;
comprar farinha lá na feira do Pilar...
Na canção de Armando Nunes e J. Portella, “Moça de Feira”
(1957), Luiz Gonzaga conta a história de uma velha sabida lá do Pilar, que bota
a filha, bem bonitinha, pra vender farinha aos feirantes A moça é tão bonita
que a mãe engana com facilidade os matutos, hipnotizados por ela:
Os olhos dela tem veneno da serpente
e é mais quente do que o sol de Quixadá...
Farinha crua, tá azeda, tá mofada,
mas os caba não vê nada; nem o troco quer contar.
O orgulho pela feira imbatível, onde “não falta nada”,
bateu no teto com o clássico de Onildo Almeida, outra gravação de Luiz Gonzaga,
“Feira de Caruaru” (1957):
Na feira de Caruaru tem tudo pra gente ver;
de tudo que há no mundo nela tem pra vender...
Inspiração fundamental para outros clássicos, outras
“batidas no teto” como a “Feira de Mangaio” (1977) de Sivuca e Glorinha
Gadelha:
Fumo de rolo, arreio de
cangalha
eu tenho pra vender, quem quer
comprar?
Bolo de milho, broa e cocada
eu tenho pra vender, quem quer
comprar?
A ida para a feira é o grande momento na vida dessas
populações. A poesia de cordel e a cantoria de viola não existiriam sem essas
idas e vindas, esses fluxos constantes que convergem para a feira carregados de
produtos e regressam, horas ou dias depois, carregados de aquisições.
Johan Huizinga, em Homo
Ludens (1938), lembra o papel das feiras como espaço de mistura de
comunidades, tribos, clãs, que se enfrentam poeticamente, cada um louvando sua
região, seus produtos, a beleza de suas mulheres, a coragem dos seus
guerreiros, a esperteza dos seus mentirosos. Torneios poéticos que já eram
antigos na Ásia e na África antes de começarem a ressurgir na América.
E para quem quiser ter uma idéia do ambiente humano
desses mercados, nada melhor do que Dedé Monteiro recitando seu clássico
“Depois que a Feira Termina”: