quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

1433) “Borges” de Bioy Casares (17.10.2007)



Acabo de adquirir o que tornou-se talvez o livro mais grosso de minha biblioteca, onde predominam volumes que têm a silhueta de Gisele Bündchen ou Naomi Campbell. O imenso pacote chegou todo amarfanhado, envolto pelo Correio num plástico protetor. Desembrulhei-o e me deparei com a obra encomendada algumas semanas atrás na Abebooks, e que me custou, incluindo preço e frete, cerca de 64 reais. Borges, de Adolfo Bioy Casares (Buenos Aires: Ediciones Destino, 2006) é um volume quase cúbico, com 1.680 páginas, contendo excertos do diário que Bioy Casares, grande amigo de Borges e seu principal parceiro literário, manteve ao longo de várias décadas de convivência com o autor de O Aleph.

O livro é dividido em capítulos cronológicos, que vão de “1931-1946” até “1989”. De cara me decepcionei, porque esse primeiro capítulo, curtíssimo, resume justamente os anos mais importantes da obra de Borges: os livros de ensaios em que forjou sua concepção de literatura (Otras Inquisiciones, Discusión, Historia de la Eternidad) e os volumes de contos (Ficciones, El Aleph) que mexeram no software da literatura ocidental. Não importa. Cada página aberta ao acaso tem episódios enriquecedores e úteis. Borges não foi apenas um escritor de gênio, foi um Google literário, do qual era possível extrair a cada instante uma comparação inesperada, uma informação obscura, um paradoxo desconcertante.

A imensa maioria das entradas do diário, sempre no presente do indicativo, começa assim: “Come en casa Borges” (algo como “Borges janta aqui em casa”). O jantar ou almoço na casa de Bioy, algumas vezes por semana, era o pretexto para várias horas de conversas literárias que o anfitrião resumia em seus cadernos após a partida do visitante. Faz lembrar as copiosas anotações com que Simone de Beauvoir documentou seu casamento mental com Sartre. As primeiras 150 páginas cobrem os anos até 1955. Borges visita Bioy quase todas as noites: os dois lêem e selecionam textos para suas antologias, trabalham em contos da série “Bustos Domecq” e comentam o cotidiano da vida social e literária de Buenos Aires. Falam dos colegas escritores usando uma rudeza inesperada em dois “gentlemen”, e com um sarcasmo devastador. Narram episódios em que as madames e moçoilas da sociedade portenha ostentam um prodigioso esnobismo, associado a uma ignorância e desinformação que muito diverte a ambos.

A cegueira progressiva de Borges, que se submete a cirurgias periódicas, é uma lenta tragédia que os submerge pouco a pouco. Borges e Bioy se divertem inventando frases mal escritas (com barbarismos gramaticais ou absurdos estilísticos) ou comparando versos abomináveis escritos pelos seus contemporâneos. O encarte de fotos traz pelo menos duas raridades: Borges de óculos, Borges de calção. Fragmentado, episódico, superficial, redigido às pressas, é um livro mais revelador sobre o escritor argentino do que as biografias que já li.

1432) “Paris te amo” (16.10.2007)


Está em cartaz este filme-antologia em que vários diretores contribuem cada qual com um filme de curta-metragem. A principal vantagem deste formato é que aproveitamos cada história quando ela nos interessa, e quando não é o caso basta esperar que passe logo e venha a próxima. Em Paris, te amo a idéia original era de dedicar um episódio a cada um dos vinte “arrondissements” da cidade. O perigo, neste caso, é que o filme seja feito em torno dos “cartões postais”: um casal que marca encontro no Arco do Triunfo, um suicida que vai pular da Torre Eiffel, um grupo de turistas fotografando os quadros do Louvre...

Não é o que ocorre, felizmente, e a rigor o único local famoso que aparece com certo destaque é o Cemitério do “Père Lachaise”, onde Wes Craven faz uma pequena homenagem a Oscar Wilde, e que reaparece nos passeios de uma desajeitada turista americana em “14ème Arrondissement” (Alexander Payne). O metrô surge no episódio “Tulherias”, onde os irmãos Coen colocam Steve Buscemi em mais uma roubada, e os inferninhos do “Pigalle” (Richard La Gravenese) servem de cenário para o “rendez-vous” de um casal maduro em busca de sensações novas. No mais, os episódios se prendem aos personagens, e a cidade surge como cenário e testemunha, e não pretexto.

Algumas histórias são meio absurdistas, como “Tour Eiffel” de Sylvain Chomet, onde um garoto conta como se conheceram seus pais, um casal de mímicos; e “Porte de Choisy” de Christopher Doyle, onde um vendedor vai parar num estranho salão de beleza oriental. Encontros e desencontros sentimentais aparecem em “Bastille” de Isabel Coixet, em que um homem desiste de se separar da esposa ao descobrir que ela tem leucemia; “Le Marais” de Gus van Sant, em que um rapaz faz uma declaração a outro que não sabe falar francês; “Quais de Seine” de Gurinder Chadha, onde um jovem francês descobre que o mundo não vai se acabar se ele paquerar uma moça árabe; “Montmartre” de Bruno Podalydès em que um desmaio na rua acaba aproximando um casal; “Place des Fêtes” de Oliver Schmitz em que ocorre o doloroso reencontro de dois jovens africanos; “Faubourg Saint Denis” de Tom Tykwer, sobre o namoro entre um cego e uma atriz; “Quartier Latin” de Frédéric Auburtin, em que um casal norte-americano troca farpas e confissões ao tratar do divórcio; “Quartier des Enfants Rouges” em que uma atriz paquera com o traficante que lhe vende haxixe.

O episódio de Alfonso Cuarón, “Parc Monceau”, em que Nick Nolte conversa com a filha, é feito num único plano, com a câmara em movimento seguindo os personagens. Uma história de vampiros com final feliz é o tema de “Quartier de la Madeleine” de Vincenzo Natali, e em “Place des Victoires” um cowboy fantasmagórico ajuda uma mulher a ter um breve reencontro com o filho morto. E os brasileiros Walter Salles e Daniella Thomas contam, em “Loin du 16ème”, a história de uma babá que cuida do filho alheio como se fosse o seu.

1431) Filmes sobre futebol (14.10.2007)




Um especial recente no Canal Sportv discutia a dificuldade de se fazer no Brasil um filme de ficção convincente sobre futebol. 

Os nossos melhores filmes futebolísticos são documentários à base de entrevistas, gols de arquivo, etc. Mas os filmes de ficção, com atores, por mais bem intencionados que sejam acabam sempre batendo fofo. Por que será? Tenho três hipóteses.

A primeira é que jogo de futebol encenado sai sempre falso. 

Ninguém é bobo, ninguém se ilude com aquelas jogadas coreografadas na prancheta e regidas a megafone. Todo mundo percebe que aquilo é uma porção de atores fingindo que driblam e fingindo que foram driblados, o goleiro saltando de mentirinha para que o gol aconteça, e assim por diante. 

É uma encenação sem os trancos-e-barrancos de um jogo verdadeiro. Isso vale para todos os filmes, desde aquele filme de John Huston com um elenco improvável que reunia desde Pelé a Sylvester Stallone, até o recente O Casamento de Romeu e Julieta de Bruno Barreto, com uns jogos Palmeiras x Corinthians bem esforçados, mas que não enganavam ninguém. 

A única solução possível seria vestir dois times com os uniformes desejados e prometer um “bicho” substancial pela vitória, para que eles jogassem pra valer, e fosse possível editar algumas jogadas e gols convincentes.

A segunda razão é uma ampliação da primeira. O público de futebol, por mais ingênuo que seja em alguns aspectos, é muito bem informado sobre o mundo do futebol. Ouve resenha, lê jornal, acompanha noticiário, absorve futebol por todos os poros. Conhece as manhas e as mutretas do mundo esportivo. Nesse sentido, é muito mais malandro e crítico do que o público de música popular, que se liga apenas nas canções e no “glamour” das estrelas, e pouco ou nada sabe dos esgotos da indústria fonográfica ou dos sórdidos porões do showbiz. 

O pessoal de futebol sabe tudo que rola entre cartolas, federações, empresários, etc. Sabe das politicagens, das máfias, das conspirações. E em geral sabe muitíssimo mais sobre isto do que os autores do filme. Quando vê o filme, as ingenuidades saltam aos olhos.

A terceira razão é que o torcedor de futebol, em geral, não é um esportista que gosta do jogo pelo que ele tem de beleza estética ou de simbolismo metafísico. Ele gosta é da disputa, da batalha, da competição, da hora do vamo-ver. 

Gosta da expectativa que cerca mesmo os jogos mais insignificantes, mas nos quais, como dizia Nelson Rodrigues, ao apito do juiz abre-se uma janela para o infinito. No futebol de verdade, tudo pode acontecer, e tudo acontece em tempo real, como numa Cantoria de Viola. 

Quando um torcedor acostumado a isto vai ver um filme sobre futebol, não tem nem de longe a adrenalina que lhe é produzida pelo verdadeiro espetáculo, porque sabe que ali é tudo mentirinha, tudo encenação. Para emocionar um torcedor assim, seria preciso um gênio dramatúrgico que até hoje, ao que eu saiba, não apareceu.







1430) O Ministério da Poesia (13.10.2007)


(M. C.Escher, Gallery)

Suponhamos que o Brasil evolua, cresça, enriqueça, se desenvolva, a tal ponto que um dia tenhamos cerca de 100 ou 200 ministérios para administrar uma sociedade tão rica e complexa. Talvez o Governo julgue de bom alvitre criar o Ministério da Poesia, a quem caberá definir e executar as políticas públicas de fomento à atividade poética no país. Uma das primeiras coisas que o Ministério fará será regulamentar a profissão, com a exigência de diploma universitário. Um poeta terá que ser formado nesses cursos, que não brotarão do nada: serão cursos de graduação desmembrados a partir dos cursos já existentes.

Se esse fato se desse hoje, provavelmente os cursos de Bacharelado e Licenciatura Poética brotariam das nossas faculdades de Letras. Mas como isto não deverá ocorrer nem hoje nem num futuro imediato, não é impossível que venham a surgir no seio dos cursos de Comunicação e Marketing, direção em que a poesia atual vem se encaminhando de forma consistente nas últimas décadas.

Um convênio com o Ministério do Trabalho deverá regulamentar o exercício da profissão, estabelecendo a famosa “tabela de remuneração mínima”, como existe hoje para os músicos, que têm um piso de cachê para show ao vivo e para hora de estúdio. Digamos que a preço de hoje o poeta tenha garantido o pagamento de um real por linha, no ato da aceitação do poema pela revista ou pela editora. Nada mau. Uma mera revista de ficção científica, como a Asimov’s, paga aos poetas de FC um dólar por linha, mas estabelece um máximo de 40 linhas (se não, o cara mandava um troço do tamanho dos “Lusíadas” e ficava rico).

Aí vai começar uma questão delicada. Grupos de trabalho interministeriais, ou comissões mistas, reunir-se-ão em torno de imensas mesas de mogno, abastecidos por suprimentos incessantes de cafezinho, adoçante e água gelada, para definir o que é poesia. A tarefa parece titânica e inalcançável, mas não subestimemos, amigos, os poderes de uma Comissão Federal. Comissões federais bem podem repetir o famoso verso de Torquato Neto: “Eu posso, eu quero, eu quis, eu fiz”. Se a existência de Deus ou o tamanho do Universo não estão comprovados até hoje, foi porque não ocorreu a ninguém a criação de uma comissão mista para fazê-lo.

Problemas surgirão; é a lei da vida. Os não-poetas se sentirão compreensivelmente marginalizados ao ser-lhes proibido o exercício não-regulamentado dessa atividade. Surgirá talvez um movimento reivindicando cotas, e aí em cada livro de poesias 10% das páginas serão reservadas para a inclusão de poemas redigidos por operários, campônios, médicos, engenheiros ou (mais provavelmente) concunhados e primos em terceiro grau dos membros da comissão ministerial, “para que a vivência e os benefícios morais da atividade poética sejam democraticamente estendidos a todos os setores representativos da nossa diversidade étnica e social”.