sábado, 8 de março de 2008

0120) As águas do tempo (9.8.2003)



Quando as águas do tempo vão passando, vêm trazendo mil ciscos na corrente.

São as pequenas sujeiras desta vida, as palavras amargas que se escutam, os gestos brutos, as incompreensões por desdém ou por insensibilidade, as descortesias dos desconhecidos.

Vêm as sujeiras maiores também, que são as ruindades que nos fazem, as sacanagens planejadas à nossa revelia, o escárnio gratuito de quem não ousaria agir assim na nossa frente, as provocações dos vizinhos, as armações dos antagonistas no trabalho, dos falsos amigos.

Não tem força no mundo que consiga nos livrar dos esgotos da maldade. Tudo é despejado através de nós: vasculho, cisco, gravetos, bagaços de laranja, massa amorfa de plásticos e papéis, restos de comida, tufos de mato, lama do chão.

O ser humano despeja esses resíduos metafóricos à sua volta, voluntariamente ou não, pelo simples fato de existir, de entrar em atrito com os outros, de ter que atravessar todos os dias esta selva sem lei onde no primeiro contato com alguém nunca dá para se saber direito quem é fera ou quem está ferido.

Essa enxurrada passa através de nossa alma como se passasse por uma peneira. Nossa alma é uma peneira com aquela treliça metálica cheia de quadradinhos, através da qual a enxurrada escoa, e onde os detritos maiores são retidos. Aqui vai ficando um cisco, ali fica um caco de vidro, mais adiante um fósforo, uma tampa de garrafa, uns fios soltos de piaçava, uma meia furada, lata de cerveja amassada, embalagem vazia...

A água passa e essas coisas maiores vão ficando presas na treliça, vão se instalando ali, e a lama que continua a passar acaba servindo como uma espécie de argamassa que recobre esses resíduos, fixando-os, deixando-os presos ali com uma firmeza de quem se prepara para esperar que até as pirâmides se desmanchem em pó.

E o quê que uma pessoa faz, quando se vê assim, com a alma feito um filtro de sujeiras, todo contaminado pela poluição da vida? Bem, os outros eu não sei. Mas quando começa a doer, quando começa a incomodar muito (quando meu time perde, por exemplo), eu costumo deitar assim de noite e deixar que o silêncio e a escuridão passem através de mim, como se fosse uma água lenta mas forte, uma água que tudo arrasta.

E aí eu abro (como? não sei, só sei que é assim) os espaços da treliça, que em vez de estreitinhos como papel milimetrado vão se alargando, ficam como grades de palavras-cruzadas, depois ficam como tabuleiro de xadrez... E quanto mais eles se alargam mais água vai passando, e no passar elas desalojam a sujeira acumulada, que vai se desprendendo, se esfarelando, vai sendo lavada, vai sendo levada embora.

Eu fecho os olhos e deixo essas águas rolarem. São as mesmas águas do tempo que trouxeram aquilo para dentro de mim, mas como não param de passar, basta alargar os quadrados da peneira, e tudo que veio vai embora, vai embora, vai embora, e me deixa enxaguado pelas águas sem fim da noite e do silêncio.




(Este texto foi publicado no livro A Arte de Olhar Diferente, Editora Hedra, São Paulo, 2012)





0119) Otacílio Batista (1923-2003) (8.8.2003)




Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac tinha a forma do nome em verso alexandrino. Otacílio Batista Patriota era um verso em martelo agalopado. Era o mais novo dos três irmãos Batista, de São José do Egito. Pertenceu à primeira geração de Cantadores que recebeu o reconhecimento das elites e dos meios de comunicação, não apenas no Nordeste, mas também nas metrópoles do Sudeste, nos centros do poder político e econômico. Os grandes poetas repentistas do século 19 vivem apenas na lenda e no mito, perpetuados pelos folhetos e versos das antologias. A geração de Lourival, Dimas e Otacílio Batista, no entanto, conseguiu se beneficiar do rádio, da imprensa, dos festivais.

Há um excelente livro-documento para ser escrito sobre os primeiros festivais de cantadores, organizados por Ariano Suassuna (Recife, em 1946) e Rogaciano Leite (Fortaleza em 1947, e Recife em 1948). Existem testemunhos, versos recolhidos em livros, fotos, arquivos de imprensa. Em 1949, os irmãos Batista excursionaram pelo Rio e São Paulo, acompanhados do seu mentor, o grande Pinto do Monteiro, o qual era cerca de vinte anos mais velho que Lourival, o mais velho dos irmãos. Cantaram para o presidente Dutra, para jornalistas e intelectuais. No curto espaço de alguns anos, o grupo de cantadores a que pertenciam tornou-se a vanguarda da poesia violeira, em termos de reconhecimento no universo das elites urbanas do Sul do país. Exerceram um papel semelhante ao que, no âmbito da música popular brasileira, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira estavam desempenhando naquele mesmo momento, com a criação e a consagração popular do Baião.

Otacílio, falecido dias atrás em João Pessoa, a poucas semanas de completar 80 anos, era um dos últimos remanescentes dessa geração. Sua verve lírica era tão destacada quanto a humorística. De raciocínio rápido e sempre alerta, sabia como ninguém mudar de caminho no meio de uma sextilha para incluir um detalhe que acabava de acontecer diante de todos. Cantava sertão, cantava saudade, cantava História e política, cantava temas jornalísticos e do momento, cantava versos maliciosos e irreverentes com a cara mais séria do mundo, como se estivesse cantando o Hino Nacional. Era também um publicador incansável de livros e folhetos, e quem ia a uma cantoria sua sempre se deparava com a “exposição” das obras mais recentes.

Era corpulento, e no seu torso de urso a viola parecia bem menor do que era. Cantava com voz pausada, cadenciando o baião de acordo com seu próprio ritmo, e não com o de parceiros mais jovens que às vezes tentavam disparar na frente. Cantou por cerca de sessenta anos. A voz foi sempre sonora, a dicção perfeita (ao contrário de Lourival). Em público era geralmente reservado, pensativo, mas tinha sempre um gracejo tranqüilo e uma atenção paternal para com certos jovens que gostavam de fazer perguntas sobre versos, motes e rimas. Adeus, até outro dia.

0118) O x do problema (7.8.2003)



Meu encontro com a Álgebra se deu por volta dos nove ou dez anos, quando eu estudava no Alfredo Dantas. 

Ela veio a mim pelas mãos e pela voz de Prof. Rubens Lima do Monte, que ainda enxergo como se fosse hoje. Era magro, andava sempre de terno branco e gravata, tinha uma cabeça triangular, com a testa larga, o cabelo escuro e liso penteado impecavelmente para trás, óculos, um bigodinho fino. 

Suas aulas eram temidas, porque ele levava a Matemática tão a sério quanto Pitágoras; nunca o vi sorrir. Em compensação, eram assistidas com total atenção, porque ele era um excelente explicador, e usava uma varinha para apontar o quadro-negro, o que lhe dava um ar de cientista nuclear de filme americano.

Naquele dia ele fêz a chamada, mandou um bode expiatório qualquer apagar o quadro, mas não iniciou a aula, como de costume, escrevendo algo e perguntando a nós o que era aquilo. Com o quadro pronto, ele começou a falar do homem pré-histórico, das culturas primitivas, e de como tinha surgido a idéia de número. 

Falou durante cinco, dez, quinze minutos. E nada de escrever no quadro, mas aposto que ninguém sentiu falta, todo mundo ali, hipnotizado. E ele a falar dos números, das frações, das operações básicas... 

Com meia hora de aula, foi no quadro e escreveu: “x”. Com um simples toque da varinha, ele nos autorizou a representar com aquele “x” qualquer coisa que a gente quisesse.

Eu já tinha lido Malba Tahan àquela altura da vida, mas as proezas do “homem que calculava” se misturavam a gênios da garrafa, tapetes mágicos e outros portentos. Álgebra nos livros era uma coisa, mas era outra coisa naquela manhã ensolarada, tendo às nossas costas as altas vidraças que davam para a rua Marquês do Herval e que enchiam de luz a sala, fazendo aquela letrinha branca brilhar no centro do quadro-negro. 

Acho que isto facilitou meu contato com a poesia quando, mais tarde, vi Drummond falando da pedra no meio do caminho, que eu tentei em vão decifrar, até concluir por conta própria que aquilo devia ser uma grandeza algébrica.

Essa álgebra de substituições se expande para além das letras e dos números, e entra no reino das imagens e das representações verbais. 

Uma serpente pode ser o Demônio, um triângulo pode ser Deus, uma rosa pode ser a Vida Eterna, um coração pode ser “Eu te amo”, uma foice-e-martelo pode ser uma Revolução. Um relógio mole pode ser a percepção de um Tempo que é o tempo da Mente. 

Uma mulher pintada de frente e de perfil ao mesmo tempo pode ser uma tentativa de colocar dois tempos num só espaço. 

Um mictório público pode ser uma Fonte, e então esta Fonte pode ser uma obra de arte. 

Uma nota de dinheiro falso pode valer como dinheiro verdadeiro, se as duas partes da negociação assim combinarem. 

Uma obra de arte é como um cheque: depende de quem a assina e de quanto lastro dispõe. Pontinhos perfurados numa página, lidos com as pontas dos dedos, podem estar dizendo: “Isto aqui pode ser qualquer coisa.”






0117) O trambiqueiro (6.8.2003)



Há muitos tipos de trambiqueiro. O menos interessante deles é o sujeito que dá trambiques porque quer ficar rico. Tem coisa mais sem graça do que querer ser rico? Existe, por outro lado, o sujeito para quem o trambique é uma forma de arte, uma filosofia de vida. Aquilo é o seu estilo de ser, é o seu modo de se relacionar com o mundo, de ser criativo, de ser aventureiro. Para um sujeito assim, resignar-se à honestidade seria tão catastrófico quanto internar-se numa clínica e pedir para sofrer uma lobotomia.

Li uma vez a história de um cara que vivia de quebrar empresas. Ele preparava uma bateria completa de documentos falsos (identidade, CPF, título, currículo escolar e profissional, tudo falso), ia morar em (digamos) Cuiabá, e ali fundava uma empresa de fertilizantes agrícolas. Pegava empréstimo em Banco, verba de tudo quanto era lugar, dava um cano generalizado no comércio, e sumia para sempre. Ia direto para, digamos, Florianópolis, já com nova bateria de documentos, novo nome, novo tudo. Morava um ou dois anos, fazendo amigos, fundava um escritório de advocacia, e começava tudo de novo. Passou uns 15 anos nisso, e quando foi preso, declarou: “Mas eu não sei fazer outra coisa!”

Esse é o trambiqueiro profissional, o que encara o trambique com a mesma “visão macro” com que Stanley Kubrick encarava o cinema. Um dos maiores deles foi Victor Lustig, o espertalhão que por duas vezes, fingindo-se de funcionário do governo francês, vendeu a Torre Eiffel a empresários europeus que negociavam com ferro-velho. Mizner comentou certa vez que não conseguia resistir quando via um sujeito que era ao mesmo tempo desonesto e ingênuo. E a verdade é que, no mundo dos grandes trambiques internacionais, é muito raro existir uma vítima honesta. É tudo tubarãozão engolindo tubarãozinho. Mesmo num “conto do pacote” passado na esquina do Banco, o espertalhão convence a vítima deixando-a entrever, assim como quem não quer nada, a possibilidade de ganhar sem fazer força um dinheiro que não é seu.

Conheci um cara que estava passeando de moto em Ipanema, e encontrou um conhecido. Ofereceu a moto para vender. O outro pediu para dar uma volta. Ele entregou a moto. O outro pegou a moto, passou em casa, pegou umas roupas, foi de moto para Porto Seguro e só voltou seis meses depois. Foi um plano maquiavélico? Não: foi um repente, um improviso. O verdadeiro artista tem que estar sempre pronto; ele não sabe quando o Destino vai submetê-lo a uma prova de fogo, mas sabe que precisa reagir à altura.

O trambiqueiro assim, artístico, desinteressado, filho do vento e da aventura, merece nossa admiração, mesmo que não mereça o nosso aval. O que é chato é o espertalhão miúdo, o que rasura contratos, desvia depósitos, superfatura serviços rotineiros, camufla prestações de contas... Esse, o que neuroticamente se auto-proclama “esperto”, é um mero cumpridor de Karma, deve ter sido o maior Otário na encarnação anterior.




0116) O livro de Zé Alves (5.8.2003)


(xilogravura: Eduardo Macedo, matrizne.blogspot.com)


Chegou às minhas mãos, por gentileza de Hélder Pinheiro, o livro recém-lançado pelo poeta José Alves Sobrinho, Cantadores, Repentistas e Poetas Populares (Ed. Bagagem). Para os que não têm muita familiaridade com o assunto, basta dizer que é como se fosse um livro assinado por Cartola e com o título Sambistas e Compositores do Morro da Mangueira. Cartola não escreveu um livro assim, mas Zé Alves escreveu, e não só este como vários, entre eles o precioso Dicionário Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, em parceria com o inesquecível Átila Almeida.

José Alves Sobrinho é um ex-cantador, que quando em atividade fêz cantorias com todos os grandes nomes de sua época. Por problemas de saúde acabou perdendo a voz. Isto o afastou da viola mas não da poesia, e desde então ele dedicou-se a escrever versos e a publicar textos sobre poesia popular. Zé Alves não é um pesquisador no sentido acadêmico do termo. Seus livros são produto de sua vivência, e resultado de suas anotações. Descrevem a Cantoria de dentro para fora, vista por alguém que a conheceu na prática e só depois tentou sistematizá-la em glossários, descrições, cronologias, etc.

O livro tem dados biográficos de centenas de cantadores e poetas, complementados por versos enumerativos. Este capítulo é, por assim dizer, um folheto com notas explicativas. Inclui descrições dos principais gêneros de cantoria, e também uma classificação dos folhetos de cordel. A parte final inclui versos notáveis dos poetas populares, e a transcrição de vários folhetos raros. O livro tem algo de dicionário e algo de antologia, e neste sentido é uma complementação e atualização dos dados do “Dicionário” lançado por Zé Alves e Átila há cerca de 25 anos.

Outros livros de Zé Alves encontram-se inéditos, como Memórias de um Cantador e Cantadores com quem Cantei. Estes outros títulos deverão ser um complemento obrigatório à obra que Zé Alves vem produzindo ao longo destes anos. Acho, inclusive, que por mais inestimável que esteja sendo a contribuição do ex-cantador à sistematização das informações técnicas sobre a Cantoria de Viola, é no campo das memórias e do testemunho pessoal que sua contribuição pode alcançar uma altura e uma dimensão que nenhum de nós, meros estudiosos do assunto, pode ambicionar. Creio que existe, principalmente por parte da geração mais nova, uma imensa curiosidade em saber como era a cantoria de 40, 50 anos atrás. Como era o cotidiano do cantador, como eram feitos os contatos para as cantorias, as viagens, as hospedagens. Como se formavam as duplas, como se davam os desafios, ou cantorias entre rivais. Como eram os ambientes públicos: bares, feiras, festas... Em resumo, precisamos ter testemunhos que só pessoas como José Alves Sobrinho podem nos fornecer; histórias de vida, memórias, descrições, a única maneira que temos de reconstituir uma época que não existe mais.

0115) A melhor coisa da vida (3.8.2003)




(ilustração: Hundertwasser)

A melhor coisa da vida é o cheiro de café sendo passado. É melhor do que beber café. Diz a Ciência que nosso paladar é um sentido muito limitado, ao passo que o olfato é riquíssimo, cheio de nuances. Quando estamos resfriados, nariz entupido, incapazes de sentir o cheiro das coisas, qualquer comida fica sem graça. 

Talvez por isso o nosso primeiro contato olfativo com café novo seja o mais excitante, o mais inebriante. No momento em que a água borbulha no pó negro e o arranca do seu sono milenar, aquela fumaça que se eleva é (aos meus olhos, pelo menos) um gênio-da-lâmpada que está sendo libertado, com a única finalidade de penetrar pelas nossas narinas e conceder-nos o desejo que nem precisou ser expresso em palavras.

Depois disso, até mesmo a primeira xícara de café é um anti-clímax, se bem que estou sendo injusto com o combustível que manteve meu cérebro funcionando durante todas estas décadas. O prazer causado pelo gosto do café, mesmo o gosto do melhor “espresso”, está sempre um priquitilhonésimo abaixo do prazer provocado pelo cheiro. 

Isso me lembra uma frase de um escritor: “O momento mais excitante do sexo é quando a mulher está tirando a roupa, na penumbra. Tudo que se segue é maravilhoso, claro, mas a verdadeira epifania erótica é aquele momento inicial.” De fato, aquele instante, quando a gente sabe o que vai acontecer em seguida, mas ainda não sabe exatamente como e de que jeito vai acontecer, é um instante de encantamento que, para sujeitos de índole mais romântica, chega a dar um nó na garganta e um marejo nas pálpebras.

São momentos que lembram o zum-zum-zum num teatro antes da abertura das cortinas (eita como eu sou antiquado) para o início de uma peça ou de um show. Quando a gente sabe que o que vai ver é bom, existe uma adrenalina que já se vai gastando por conta, sabendo que não vai faltar. Está todo mundo eletrizado, muitas vezes até pelo fato de, quando é uma noite especial, como noite de estréia, ser também uma noite de reencontros, de pessoas que pouco se vêem mas que convergiram para ali naquela noite. 

Jogo de futebol também tem isso; em geral era aquele intervalozinho entre o fim da preliminar e a entrada dos times em campo.

São momentos elétricos da vida, talvez melhores ainda do que os momentos após um grande show ou um grande jogo, porque o momento posterior, mesmo que se siga a um show-pra-ficar-na-História ou a uma vitória longamente sonhada, tem sempre aquele gosto de “passou, acabou, agora nunca mais.” 

Antes, tudo é possível, tudo é infinito. Depois, no entanto, mesmo a maior vitória pode ser maculada por um espírito-de-porco (“sim, tudo bem, fomos Penta, mas faltou um gol de Rivaldo...”). 

A melhor coisa da vida é o começo de um sonho, porque naquele instante o sonho é a soma de todas as suas próprias possibilidades, é inesgotável, é um fatorial de si mesmo. O problema com os sonhos é que todo sonho é um trajeto rumo à Realidade.





0114) Os ricos (2.8.2003)



(ilustração: desenho de William Faulkner)

Os ricos vivem num mundo onde todas as luzes estão sempre acesas, onde tudo é visível, tudo é possível a cada instante. O entusiasmo contagiante que os move é uma pressa não contaminada pela angústia, uma pressa que vem da alegria de querer fazer tudo. Suas mentes estão encharcadas de realidade, de concretude. Para míseros mortais como nós, que lemos jornal no ponto do ônibus e sonhamos com os night-clubs da Riviera Francesa, a Riviera Francesa situa-se no mesmo plano de realidade dos Jardins Suspensos da Babilônia ou do palácio de Aladim. Para os ricos, a Riviera Francesa é tão real quanto os sapatos que estão calçando.

Tudo, tudo para eles é possível. O mundo inteiro está à sua espera na outra extremidade da linha telefônica. A compra de uma fazenda na Califórnia, a contratação de uma orquestra sinfônica na Itália, a construção de um hotel na Arábia Saudita, a criação de um Festival de Cinema na Polônia, tudo pode ser resolvido com algumas ligações para as pessoas certas, sem que os convidados (que estão se distraindo no jardim) sintam sequer a ausência momentânea do anfitrião.

São generosos. Não têm amor ao dinheiro. Amor ao dinheiro temos nós, que nos inundamos de felicidade quando tiramos nosso extrato do Banco e vemos que foi feito o depósito tão ansiosamente esperado; só faltamos beijar o papelucho. Os ricos vivem num mundo além-dinheiro. Para eles, tudo se resolve com gestos, com atos. Seu filho está querendo estudar em Yale? Ora, porque não me disse antes? E se perguntarmos quanto isto vai custar, ele nos diz, não pense no que vai custar, pense no futuro do menino, isto é um presente meu, e (aí surge a terrível frase) eu não aceito um não como resposta.

Claro – existem ricos avarentos, ricos mesquinhos. Mas estes são os ricos incompletos, os que por defeito genético de fabricação não atingiram a plenitude planejada. O verdadeiro rico gasta como quem semeia. Nas conchas dos seus ouvidos ele nunca deixa de escutar o marulho eterno do oceano do Capital, e sabe que até o dinheiro jogado pela janela tende a germinar, a brotar, a florescer, a enramar-se como hera ou trepadeira para subir até a janela-mãe de onde veio. Dinheiro gera dinheiro, e os ricos são os semeadores dessa soja dourada que se estende pelos séculos, a perder de vista.

Existe só um momento em que uma leve sombra empana seu sol eterno. É quando mencionamos na sua presença a possibilidade – a mera hipótese; não uma ameaça, um desejo ou uma profecia – de que um dia serão menos ricos, de que um dia perderão alguns dos seus super-poderes. Então, suas pupilas se contraem como as de um ofídio, e vemos que temos diante de nós uma criatura milenar, mais antiga que a Revolução Francesa, que a Roma dos Césares, que os Faraós. Uma criatura que sobrevive há milênios, que não admite sair de cena, e é capaz de cravar os dentes em nossa jugular para continuar sendo exatamente como é. E aí vemos que no fundo os ricos são iguaizinhos a nós.

0113) Radiotelepatia (1.8.2003)

Pelos meus cálculos, daqui a uns trinta anos não mais precisaremos de engenhocas tão desengonçadas como as televisões. Em vez de aparelhos enviando imagens e sons para outros aparelhos, estaremos colocando mentes humanas diretamente em contato umas com as outras, através das ondas de rádio. As possibilidades de Radiotelepatia já foram sugeridas por cientistas como Freeman Dyson, Prêmio Nobel de Física. Os maiores entraves a esta grande conquista são de natureza tecnológica e econômica, porque a parte teórica já está bem encaminhada.

Suponhamos dois telepatas, o Emissor e o Receptor. Haverá chips microscópicos implantados nos seus cérebros, os quais captarão as emissões, e as enviarão sob a forma de ondas de rádio, estimulando os centros sensoriais do Receptor e criando a ilusão de impressões visuais, táteis, auditivas, etc. O Emissor pensa numa cena. Imagina, digamos, que está andando de bicicleta num parque, num dia de sol, ouvindo música no walkman. O Receptor capta as ondas de rádio emitidas pela mente do outro, e imagina uma cena semelhante. Todas as sensações físicas (calor do sol na pele, esforço muscular de pedalar, música nos ouvidos, imagens de transeuntes, sensação de deslocação ao longo do terreno, etc.) estarão sendo recriadas pela sua própria mente a partir dos estímulos que recebe. Se dez Receptores captarem a emissão original, todas as cenas serão equivalentes à cena enviada pelo Emissor, mas serão diferentes em inúmeros detalhes, porque estarão sendo recriadas por dez mentes diferentes.

É como escutar, sem ver, um jogo pelo rádio. “Cafu domina a bola, avança ela direita, faz a triangulação com Ronaldinho Gaúcho... ele vai até a linha de fundo, prende a bola, faz o giro, toca atrás para Rivaldo... Rivaldo protege a bola, cruza... entra Ronaldo, mata no peito, fuzila... gol!” Cada ouvinte “vê” mentalmente a mesma cena, mas visualiza os detalhes de maneira diferente. Nossa imaginação, como nossa memória, não é fotográfica, é desenhística. Ao imaginar e ao lembrar, reinventamos, sempre. A Radiotelepatia aproveitará essa criatividade instintiva, transformando uma cena na mente de um Emissor em milhões de cenas, todas diferentes, e todas semelhantes.

As telenovelas do futuro terão de um lado, como Emissores, um grupo de telepatas-atores a quem cabe interpretar as cenas. Cada um deles estará numa cabine especial, e somente as suas mentes estão em contato: eles imaginam o cenário (de acordo com o roteiro), e improvisam os diálogos, as ações, a cena inteira. Tudo que acontece com eles é retransmitido, via ondas de rádio, para o resto do país, e é “visto” mentalmente pelos Receptores, que acompanham a cena como se estivessem presentes a ela, mas sem poder interferir (mais ou menos como na TV). Estarei delirando? Tragam Machado de Assis de volta ao mundo, e deixem-no assistir essas novelas que passam hoje em dia. Ele ia achar aquilo tão real que ia desistir da literatura.

0112) Uísque: cimento (31.7.2003)




Muita gente diz que bebe para esquecer os problemas, mas nunca vi ninguém dizer que cheira pó, ou fuma maconha, ou toma heroína para esquecer. Talvez o ópio sirva, mas taí, nunca conheci ninguém que tivesse fumado ópio. Bebida traz um embotamento mental que nivela todas as coisas num plano secundário. Existe um momento ideal na intoxicação alcoólica, onde o sujeito mal consegue lembrar do próprio nome ou da cidade onde está, mas é capaz de conduzir uma conversa aparentemente normal sobre qualquer assunto, além de ir ao banheiro e voltar sem cair estatelado no meio do salão. No outro dia, não lembra nada. Escritores que passaram por essas experiências são capazes de verbalizá-las melhor. Não sei de ninguém que tenha escrito melhor sobre drogas, por exemplo, do que William Burroughs, autor do Almoço Nu, que experimentou todas as drogas possíveis e morreu com mais de 80 anos.

No caso da bebida, Raymond Chandler, o grande escritor de romances policiais, disse certa vez: “Todo homem devia se embebedar umas duas vezes por ano, pelo menos para não ficar esnobando os outros”. Chandler era um sujeito tímido, irritável, exigente, ético, romântico, e um grande bebedor. Depois da morte de sua mulher, Cissy, quando ele tinha 66 anos, mergulhou cada vez mais na bebida. Era capaz de escrever a um dos seus maiores amigos, num mês de dezembro: “O Natal se aproxima, trazendo consigo todos os seus horrores ancestrais.” Quando esteve na Inglaterra, deixou de comparecer a jantares que lhe eram oferecidos por escritores porque ficava bêbado. A perspectiva de uma reunião social o apavorava; ele começava a tomar uns drinques para criar coragem, e na hora de sair do hotel já estava fora de combate.

“Começo com uma taça de vinho branco,” dizia Chandler aos 67 anos, “e acabo tomando duas garrafas de uísque por dia. Aí, paro de comer. Depois de quatro ou cinco dias assim, adoeço.” O pai de Chandler era alcoólico, e ele conseguiu manter a bebida sob controle durante a maior parte de sua vida, como quem mantém um revólver carregado em cima do guarda-roupa sem nunca usá-lo. A morte de Cissy o fêz trazer o revólver para a gaveta da escrivaninha. Chandler é considerado o maior estilista do romance policial, mas lamentava “nunca ter escrito nada digno da atenção dela, nada que pudesse ter dedicado a ela.”

Depois do funeral de Cissy, as enfermeiras foram embora e levaram a tenda de oxigênio. À noite, ele desenroscava a tampa da garrafa e se entregava ao ritual de anestesiar o mundo. Talvez lembrasse o modo como os mafiosos novaiorquinos costumavam se livrar de sujeitos indesejáveis, levando-os à noite para um passeio de lancha, durante o qual seus pés eram mergulhados num balde de cimento mole. Quando a lancha chegava ao meio do rio, o cimento tinha endurecido, e bastava empurrar o sujeito por cima da amurada. A descida era suave, e a escuridão chegava tão devagar que era bem vinda.

0111) Histórias contadas muitas vezes (30.7.2003)



(No Tempo das Diligências, de John Ford)

Um caso ilustrativo das fronteiras pouco nítidas entre imitação, cópia, plágio e adaptação é uma antiga história que vem passando de mão em mão nos últimos cem anos. Boule de Suif é uma novela de Guy de Maupassant, de 1880, onde Bola de Sebo, uma prostituta parisiense, viaja de carruagem com um grupo de pessoas de bem. É a época da guerra entre a França e a Prússia, e eles são detidos por um destacamento de soldados prussianos, cujo oficial sente-se atraído por aquela rapariguinha simpática, e exige, para liberar a carruagem, que ela durma com ele. Ela se nega. Os burgueses, irritados, a pressionam; afinal, ela não dorme com qualquer um? Ela cede, entrega-se ao oficial, e durante o resto da viagem volta a ser humilhada pelos demais.

Hollywood, 1939. O diretor John Ford, alegando basear-se numa história de Ernest Haycox, junta-se ao roteirista Dudley Nichols para contar a história de Dallas, uma prostituta de bom coração, que viaja numa diligência cheia de gente decente. Em seu ácido romance sobre Hollywood, What makes Sammy run?, Budd Schulberg faz um personagem ironizar: “Olha, eu conheço um cara que encheu o bolso de grana há pouco tempo com uma história de Guy de Maupassant. Tudo que ele precisou fazer foi transferir uma puta de uma carruagem francesa para uma diligência do Oeste.” Ford usou todas as situações do conto de Maupassant, menos a principal – o fato da mulher ter que se prostituir para salvar os outros passageiros.

Brasil, 1978. Esta situação vai emergir na peça Ópera do Malandro, de Chico Buarque, baseada na Ópera dos três vinténs de Brecht. Acho que todos lembram a canção “Geni e o Zepelim”, em que uma prostituta chamada Geni (que na peça, na verdade, é um travesti) vive marginalizada em sua cidade até que um dia um Zepelim surge no ar. O capitão do Zepelim diz que só não destruirá a cidade “se aquela formosa dama” se entregar a ele. E começa o famoso coro: “Vai com ele, vai, Geni! Você dá pra qualquer um! Bendita Geni!” O final da história, já conhecemos. Geni recusa-se, mas acaba cedendo, entrega-se ao capitão... e ao abrir os olhos na manhã seguinte após a partida do Zepelim, já ouve lá fora o antigo coro: “Joga pedra na Geni!...”

Isso é plágio, é cópia, é imitação barata? Prefiro acreditar que certas situações dramáticas são inesgotáveis, por isso são usadas por tanta gente. Na verdade, quando as usamos não as esgotamos: nós as enriquecemos. A canção de Chico Buarque tem uma riqueza de elementos que a canção da peça de Brecht (“Jenny e os piratas”, creio), o filme de Ford e o conto de Maupassant não têm. Quando pedimos emprestada uma idéia que já existe, nossa primeira obrigação é enriquecê-la, injetar-lhe novidade, cobri-la com novas camadas de contexto humano e social. O desafio de Chico era ir além de Brecht e dos outros. Quem usar esta idéia agora, tem que ir ainda além de Chico. Desafios assim fazem a literatura crescer.

0110) A arte do lipograma (29.7.2003)



Já falei aqui sobre a arte do anagrama e a do palíndromo. Igualmente fascinante, para quem gosta de jogos de palavras, é a arte do lipograma.

O lipograma é qualquer texto onde esteja obrigatoriamente ausente uma ou mais letras. Será que o leitor é capaz de escrever um texto das dimensões desta coluna sem usar nem uma vez uma das letras do alfabeto? (Atenção – não valem letras como K, W ou Y).

Quando eu era pequeno, as revistas de jogos e passatempos traziam com frequência problemas como: “Num escritório, a máquina de escrever perdeu a tecla A, e a secretária teve que se virar para escrever a seguinte carta...” Seguia-se uma carta toda arrevesada, onde as palavras onde deveria aparecer um “A” eram substituídas por sinônimos tortuosos, mas no final das contas a gente só percebia a ausência da letra porque o enunciado do problema nos avisara.

A simples lógica nos mostra que é mais fácil produzir um texto curto que seja lipogramático do que um que inclua todas as letras do alfabeto. Quase toda frase tem várias letras faltando. Um lipograma deliberado, contudo, é um desafio que muitos escritores encaram com entusiasmo.

A tradição é antiga: o poeta grego Lasus (séc. 6 a.C.) escreveu uma ode aos Centauros e uma canção à deusa Ceres sem usar a letra “S”. Fulgêncio, autor latino, escreveu um livro de 23 capítulos que omitiam, sucessivamente, cada uma das letras do alfabeto. Um monge francês do século 12 fêz o mesmo num livro em versos sobre temas do Antigo Testamento. O ibérico Lope de Vega escreveu cinco poemas omitindo sucessivamente as cinco vogais.

Os maiores “tours-de-force” dos tempos modernos são o romance norte-americano Gadsby, de 1939 (a que já me referi no meu artigo de 20/6), um lipograma em “E” (que omite a letra “E”), e o do francês Georges Perec, La Disparition, que omite a mesma letra ao longo de suas 319 páginas.

Um caso radical do Lipograma é o que denominamos “Monovocalismo”: um Lipograma em quatro das cinco vogais, deixando apenas uma. Também pertence a Perec um dos marcos no monovocalismo, com um texto de 466 palavras onde se omitem E, I, O e U, e a a única vogal é o “A”. Eu próprio já publiquei um monovocalismo intitulado “A Arca”, com 574 palavras, onde é esta a única vogal utilizada.

Antevejo a inevitável pergunta: “Mas isso não é uma enorme perda de tempo”? Não sei. Talvez seja, sim, uma perda de tempo, como também o são coisas como jogar xadrez, soprar bolas de sabão, espiar a Lua com uma luneta, fazer cosca na barriga de um bebê, ficar um tempão sussurrando bobagens ao ouvido da namorada, fazer uma listagem das atividades que possam representar uma perda de tempo.

Também é, se você estiver fazendo na marra, por obrigação. O que não é o caso do presente artigo – que aliás é um Lipograma, omitindo uma letra que deixo ao leitor a tarefa de descobrir. Não é difícil. Eu faço essas coisas brincando.





0109) O velho e o mar (27.7.2003)




(ilustração: Jan Hrebicek)

A coleção de livros do Globo e da Folha de São Paulo pôs nas bancas O velho e o mar de Hemingway. 

O livro poderia intitular-se “O menino, o velho, o mar e o peixe”, porque são quatro seus protagonistas. 

Li esse livro uma vez quando era garoto, com olhos de garoto para quem o velho não poderia ser outro senão meu pai, que me deu o livro de presente. Relê-lo agora, quarenta anos depois, é trocar de olhos; e fechar um ciclo.

Hemingway era mais truculento e machista na vida real do que nos livros. Talvez porque na vida real ele fosse um personagem de Hemingway, e nos livros fosse apenas ele mesmo. 

O velho e o mar é um livro de enorme aspereza e enorme doçura. Compõe um tríptico com Moby Dick de Melville, onde o “peixe” é o Mistério, e com o Tubarão de Spielberg, onde o peixe é o Mal. 

Em Hemingway, o marlim é quase humano, e ao mesmo tempo uma imagem de indescritível beleza e altivez. O Velho pede-lhe perdão por matá-lo, e diz: 

“Nunca vi nada mais bonito, mais sereno ou mais nobre do que você, meu irmão. Venha daí e mate-me. Para mim tanto faz quem mate quem, por aqui.”

Há um verso de Oscar Wilde que diz “todo homem mata a coisa que ama”. Pode até ser, mas este livro nos dá o caso, mais notável, do homem que ama a coisa que mata. 

Lembro a cena final do “Augusto Matraga” de Guimarães Rosa, depois que Matraga e Joãozinho Bem-Bem se esfaqueiam mortalmente um ao outro. Caído, agonizando, Matraga vê a multidão a gritar e debochar do jagunço que estertora ao lado, aí ergue-se e diz: 

“Pára com essa matinada, cambada de gente herege!... E depois enterrem bem direitinho o corpo, com muito respeito e em chão sagrado, que esse aí é meu parente seu Joãozinho Bem-Bem!”

É um aspecto curioso da mentalidade masculina essa admiração guerreira pelo inimigo cuja nobreza impõe respeito. 

A luta de morte não é sempre um esforço para exterminar algo maligno, algo que desperta apenas medo e asco. A luta às vezes se dá por causa de forças muito acima dos dois lutadores, que estão ali, naquele momento, apenas cumprindo um ritual cósmico. 

Eles são os dois pontos através dos quais dois mundos entram em choque; o fato de um deles precisar ser destruído nesse choque não exclui o respeito, a admiração recíproca, como num combate sem quartel entre dois samurais.

São tantas as interpretações sobre O velho e o mar que me arrisco a somar mais uma. 

O velho é um Escritor. O menino é um Leitor. O peixe é um Livro. O mar é o lugar onde os escritores vão buscar os livros, seja este lugar o que fôr. 

Depois de toda aquela luta, o que o Escritor consegue trazer ao mundo parece-lhe um monte de despojos, de destroços sem sentido. Os outros o elogiam, mas ele sabe que foi o único a ter a visão do Livro-como-era-para-ter-sido. Ele viu um clarão, tentou transmitir seu reflexo. O que trouxe é pouco; mas pelo menos ele teve o privilégio de ver o Livro como o Livro era antes de ser trazido à terra.






0108) O segredo do I-Ching (26.7.2003)




Já li e manuseei muito a edição de Richard Wilhelm (Editora Pensamento) do I-Ching, o livro chinês das transmutações. Ele e o Tao Te King – o Livro do Caminho Perfeito de Lao Tsé são duas portas para a mais plausível descrição religiosa do universo em que vivemos. 

Isto não faz de mim um taoísta. Taoísta é quem acredita nessas coisas, e eu tenho dificuldade de acreditar seja no que fôr, eu apenas comparo teorias e acho que umas são mais plausíveis, mais eficazes do que as outras.

A maioria das religiões tem deuses demasiado antropomórficos, contaminados de emoções humanas. Deuses que se enfurecem conosco, que nos amam com filhos, que nos condenam a torturas horrorosas, que nos perdoam sem explicação, que perdem o controle por dá cá aquela palha... Deuses humanos, demasiado humanos. 

Em vez dessa relação folhetinesca, melodramática, o I-Ching, através dos seus 64 hexagramas, reproduz uma seqüência de fluxos, de movimentos que me parecem corresponder a ciclos secretos do Universo, da natureza viva, da existência humana. Como? Não sei, é pura intuição (e esse álibi de “pura intuição” é, quem sabe, uma confissão velada de fé).

Eu gostaria de ver um filme de animação em que os 64 hexagramas de sucedessem na tela, para ver ali o que vejo quando os examino um por um: as linhas partidas que sobem, linhas inteiras que descem, ou vice-versa, movimentos de expansão e contração, ciclos de madurez e definhamento, ciclos de força atuante e de recolhimento contemplativo. As formas das forças que regem o mundo, que fazem o mundo ser tudo o que é.

Joguei o I-Ching algumas vezes, mas deixei de fazê-lo porque senti que estava a incomodá-lo com perguntas fúteis – “será que vou esquecer a letra das músicas, no show de amanhã?...” Também comecei a perceber que o livro continha 64 respostas que se aplicavam a qualquer situação, e que eu podia muito bem, quando precisasse de assessoria sobrenatural, abrir numa página qualquer um livro de Drummond ou de Emily Dickinson, ler, aceitar esse conselho do Acaso.

Disseram-me um dia que as moedas com que se joga o I-Ching devem estar carregadas de nossa energia. Tomei uma decisão, e guardei num bolsinho de dentro da carteira três moedas de 10 centavos. Resolvi que as levaria comigo, junto ao corpo, durante dez anos, e que depois as usaria para jogar o I-Ching. 

Passaram-se 5 ou 6 anos, e um dia eu me vi num país estrangeiro, numa situação complicada onde precisava urgentemente dar uns telefonemas. E as únicas moedas ao meu alcance eram as do I-Ching. Fui, voltei, hesitei, maldisse minha estupidez, e acabei usando meus pobres centavos brasileiros para me tirar daquela roubada. 

Findas as ligações, resolvido o problema, olhei para o céu, e vi numa nuvem metafórica o velho Confúcio olhando para mim com o polegar erguido, piscando o olho, e dizendo: “E aí, serviu ou não serviu?” Pense num povo prático, esses chineses.






0107) O dinheiro eletrônico (25.7.2003)





Nos primórdios do terceiro milênio da Era Cristã, acreditava-se em conceitos como País, Nação, etc. 

Vendo um documentário sobre o dinheiro eletrônico, o Capital Virtual, comecei a calcular quantos anos ainda vão durar os atuais Estados e países. 


Foi-se o tempo em que bastava criticar o Materialismo dos burgueses que enricavam fabricando artigos têxteis, extraindo carvão ou plantando cana-de-açúcar. Pelo menos esses produtos serviam para alguma coisa. 


Note-se: não estou fazendo uma crítica moral, uma crítica ética a esse procedimento. Eu próprio, se ganhasse hoje um milhão de dólares, usaria metade para criar uma editora e publicar apenas os livros que me agradam, e a outra metade eu aplicaria na ciranda financeira, para alimentar o ralo-de-esgoto em que uma editora assim se transformaria. 


Vindos de séculos de guerras e de lutas políticas para a unificação de povos sob um mesmo governo, os seres humanos daquele tempo atribuíam a essas entidades uma nitidez (e uma firmeza) que elas estavam longe de possuir.

Quem visse os mapas daquele tempo acreditaria que havia uma linha nítida, ao longo de uma floresta ou de um pântano, demarcando onde acabava o país A e começava o país B. Essa obsessão demarcatória tinha muito pouco a ver com a vida real das pessoas. 


O que me lembra o episódio narrado pelo cordelista Raimundo Santa Helena: “Quando minha mãe teve as dores do parto, foi botada num trólei de estrada de ferro, e levada para a cidade mais próxima. Minha cabeça nasceu na Paraíba, e o resto do corpo no Ceará.”

A conjugação entre computadores, Internet e comércio financeiro vem transferindo as decisões econômicas para grupos que estão muito, muitíssimo acima do poder localizado dos Bancos Centrais. Inventaram a máquina de fabricar dinheiro a partir de dinheiro já existente, sem nenhum lastro produtivo, sem nenhuma correspondência com as riquezas materiais produzidas no país. 

E o diabo é que enquanto a maior parte do dinheiro existente se entrega a essa bacanal proliferatória, o resto do país precisa continuar produzindo as tais riquezas materiais, senão dá no que está dando.

Hoje, a Economia emburacou no reino da Metalinguagem, onde não mais extrai seus lucros do mundo material, e sim do mundo virtual, fictício, do dinheiro eletrônico. Fortunas trocam de mãos, empresas quebram, empresas brotam, países desmoronam (como a Argentina), países enriquecem (como Cingapura)... A riqueza, contudo, não pertence àquele países, que são apenas os hospedeiros, e, enquanto ainda existem, precisam cuidar do lado materialista da vida: estradas, hospitais, escolas, polícia, transportes... 

E o Capital Eletrônico vai ampliando seu Cassino, onde trilhões de dólares virtuais são torrados todos os dias.

Não tenho nada contra ganhar dinheiro. Mas é como dizia a avó de alguém, quando a cabeça endoidece, o corpo é que paga o pato. Só quero ver quando despencar o elevador.






0106) O inglês de João do Pife (24.7.2003)



Vou pegar carona com Lula Queiroga, na sua coluna “Baque Solto” de sexta-feira passada no Diário de Pernambuco. Mestre Lula comenta o espetáculo realizado em Nova York em que artistas pernambucanos, como Dona Selma do Coco, se apresentaram no Lincoln Center, em Nova York. E narra uns episódios pitorescos, como o de Heleno dos 8 Baixos, que em 1991 teve um disco indicado ao Prêmio Grammy. 

O repórter Francisco José, da Globo, estava em frente à TV com Heleno aguardando o resultado. Demorou, demorou... Heleno acabou cochilando, e nisto foi anunciado o prêmio, que acabou saindo para um grupo africano. Ao ser despertado, Heleno perguntou logo: “Ganhamos?” Ao saber que não, deu de ombros e arrematou: “Então fica pra próxima.”

Nesta reação existe toda uma enciclopédia-britânica de filosofia popular. Uma prova de que quanto mais terceiro-mundo um sujeito, mais ele precisa de reservas inesgotáveis de tranquilidade, bom humor, e aquela auto-confiança de Didi na decisão da Copa de 58, quando a Suécia abriu o placar, e ele foi lá na rede, pegou a bola e trouxe pro meio de campo, dizendo: “Calma, o jogo começou agora. Vamos encher esses gringos de bola.” 

Tá certo Heleno dos 8 Baixos. Afinal, ele já foi indicado para um Grammy, e o século 21 começou agora. Quem disse que não vai ter “a próxima”?

Melhor ainda é a resposta de João do Pife, que também está se apresentando no coração de Manhattan. Perguntaram-lhe sobre a dificuldade de comunicação, afinal de contas é um matuto indo pela primeira vez à mais famosa metrópole do mundo. E João respondeu, na maior tranquilidade: "Aqui em Nova York é fácil. Hotel é hotel, táxi é táxi, pizza é pizza, sanduíche é sanduíche, uísque é uísque, tchau é tchau. A gente fala, e eles entendem na hora".

João do Pife é ainda mais centrado e mais otimista do que Heleno. Ele deve ter se maravilhado ao descobrir que o Bicho não tinha tantas cabeças quanto ele ouvia falar, e que existe, sim, uma possibilidade de comunicação entre pessoas que vivem no mesmo mundo. 

Eu, com toda minha literatura, morro de inveja dos músicos e dos desenhistas, cujas obras podem ser apreciadas instantaneamente por um grego, um russo, um japonês, um mexicano, um suíço.

É claro que numa situação mais braba João ia sentir falta de um pouco mais de vocabulário, mas isso não é um privilégio-às-avessas dos artistas humildes do povo. Muita gente de anel no dedo se apavora quando se perde num metrô em terra estranha. 

Dizem que quando a Princesa Diana veio ao Brasil durante o governo Collor, a primeira-dama brasileira tomou um curso intensivo de inglês para quebrar o galho durante a recepção. A Princesa, com seu sorriso de sempre, perguntou: “Do you speak English?...” A brava Rosane titubeou, depois ergueu os dedos polegar e indicador, afastados meio centímetro, e respondeu: “Short...” Por que não convidaram João do Pife, minha gente?






0105) O plágio inconsciente (23.7.2003)



Comentei recentemente alguns casos em que um autor reproduz trechos da obra de outro autor, pensando que ele próprio criou aquilo. Muita gente torce o nariz diante dessa hipótese: “Tá maluco! Como é que um cara lê uma coisa, e depois escreve, e não percebe que aquilo é o mesmo texto que ele tinha lido?” 

Parece incrível, mas acontece muito. O exemplo que citei, da canção “Yesterday” de Paul MacCartney, ilustra este processo de quando alguma coisa brota da nossa mente “parecendo uma coisa pronta”. 

MacCartney passou meses mostrando a melodia nova a todo mundo: “Você conhece isso? É parecido com alguma coisa?” Ninguém (na época) percebeu a leve semelhança com “Answer me, my love”, uma canção gravada 12 anos antes por Nat King Cole.

Tenho poemas que escrevi num estado quase sonambúlico: levantei da cama, peguei o lápis e o papel, e joguei tudo aquilo ali na página, sem saber de onde veio, nem quem mandou. Acabei publicando como coisa minha, mas nunca perdi aquele vago receio de que um belo dia alguém chegue e diga: “Mas rapaz, tu tá maluco? Isso aqui é de Fulano de Tal, lembra que eu te emprestei esse livro, há 27 anos?”

O nome científico disto é “criptomnésia”, ou “memória oculta”. Lemos algo, aquilo fica escondido, e acaba emergindo mais cedo ou mais tarde – e, pior, emergindo num momento em que os abalos sísmicos da inspiração artística abrem fendas nas couraças da consciência, e deixam emergir a lava borbulhante das coisas ocultas, das coisas pseudo-esquecidas, das coisas que por falta de espaço jogamos naquele porão que tem o tamanho do interior de um planeta. 

O exemplo clássico do “plágio inconsciente” é citado por Carl G. Jung em seu livro O Homem e os Símbolos, páginas 37 e 311. Refere-se a um trecho do Assim falava Zaratustra de Nietzsche (cap. 11), onde este escreveu:

“Nesta época em que Zaratustra residia nas ilhas Happy, aconteceu de um navio ancorar na ilha onde fica o vulcão fumegante e a tripulação descer à terra para caçar coelhos. Ao meio-dia, no entanto, quando o capitão e seus homens se haviam reunido novamente, viram, de repente, um homem que vinha pelo ar em sua direção e uma voz que dizia nitidamente: ´É tempo, é mais que tempo!´ Mas quando a figura aproximou-se deles, passando rápido como uma sombra em direção ao vulcão, reconheceram com grande espanto que era Zaratustra... ´Vejam!´ disse o velho timoneiro, ´vejam Zaratustra que vai para o inferno!´”

Jung prova que um trecho semelhante (ilha vulcânica, descida para caçar coelhos, vultos voando no céu rumo ao vulcão) aparecia num livro publicado 50 anos antes, livro que Nietzsche (segundo sua irmã) lera aos 11 anos de idade. 

Não é difícil crer que uma cena impressionante como esta tivesse marcado a memória do garoto, e emergido na idade adulta, durante o momento febril da criação poética. O que parimos nesses momentos de exaltação criadora é certamente, sempre, filho nosso. Só que às vezes o pai é um livro alheio.






0104) O misantropo (22.7.2003)




Há cada vez menos misantropos. Forças políticas e publicitárias vivem a berrar em nossos ouvidos que somos alegres, que a vida é bela e Deus é dez, e que a festa não tem hora para acabar. Mesmo assim, ainda existe no mundo uma meia-dúzia de almas empedernidas, imunes a essa filosofia-de-refrigerante, almas que vêem a espécie humana sem amizade, sem cumplicidade, sem ilusões. O misantropo é tão anacrônico quanto as raízes gregas de seu nome. É uma criatura antediluviana que a sociedade de consumo ainda não consumiu. Deverá se extinguir dentro de mais algumas gerações, porque é notória a sua dificuldade de acasalamento. O misantropo tem repulsa pelos que entram em contato com ele (vizinhos, colegas de trabalho, parentes distantes), e seu único consolo na vida é quando percebe que esse sentimento é recíproco.

Não devemos confundir o misantropo com o sujeito que é psicótico, ou com o mero chato. O misantropo julga ter, e geralmente tem, uma concepção elevada do ser humano, e seu retraimento decorre de perceber que o ser humano não corresponde aos padrões estabelecidos por ele. O misantropo às vezes é orgulhoso, mas mais frequentemente tem sobre si próprio uma opinião nada lisonjeira. É um sujeito que já viu muito, já viveu muito, e passou por situações onde não se comportou de acordo com os seus próprios padrões de exigência. Ele reprovou a si próprio, descobriu que não presta. Como esperar que saia por aí sendo bonzinho com quem cruza à sua frente?

Tem um jeitão casmurro, encaramujado, mas costuma ser terno com algumas criaturas: crianças que ainda não falam, bichos com fome, passarinhos com a asa quebrada, pessoas humildes, pessoas que sabem evitar a alacridade, a condescendência debochada, a provocação. É capaz de gestos de desprendimento e até de generosidade, desde que possam ser feitos pelo Correio. O contato humano o incomoda. Para ele, estar na mesma sala com outra pessoa é como estar na mesma sala com uma galinha viva.

Não é egoísta. Se lhe dessem a escolher entre a extinção da humanidade e sua própria morte, ele se consolaria com esta. Não quer mal a ninguém, quer apenas que o deixem sossegado. Não quer ser forçado a fingir de novo, a mentir de novo, a brigar de novo. Para ele, a experiência do contato humano se parece àqueles filmes B de ficção científica onde o protagonista está conversando com alguém e de repente o interlocutor começa a inchar, a pele a se romper, e de dentro dele emerge um repulsivo alienígena, com boca de moréia e tentáculos de medusa. O misantropo já viu esse filme todos os dias nos últimos quarenta anos. Por que insistem em mostrá-lo mais uma vez? Ele prefere afirmar seu afeto pela humanidade dedicando-se aos silenciosos livros, provas vivas de que os pontos mais altos da espécie humana foram alcançados por indivíduos sozinhos, silenciosos, debruçados sobre folhas de papel. O misantropo está cansado. Deixem-no repousar em paz!

0103) O plágio mal-intencionado (20.7.2003)




Recentemente o canadense Yann Martel publicou um livro inspirado numa idéia de um romance de Moacyr Scliar. Scliar escrevera sobre um rapaz num barco à deriva no oceano, acompanhado por uma pantera; Martel, sobre um rapaz num barco à deriva, acompanhado por um tigre de Bengala. Martel afirma ter lido uma resenha do livro do brasileiro e achado que aquela era uma ótima idéia. Scliar teve de início o impulso de processá-lo, mas acabou desistindo. Os dois livros são totalmente diferentes. Só a idéia inicial é parecida. Não é plágio; na pior das hipóteses é falta de imaginação.

Plágio não é a imitação, nem a simples cópia, nem a paródia, nem o pastiche, nem a citação, nem o aproveitamento de uma idéia alheia. Tudo isto faz parte do trabalho artístico e intelectual, e para mim nada disso caracteriza o plágio. Todas as atividades acima são atividades criativas, em maior ou menor grau. O que as distingue do plágio é o fato de que quem as pratica está se servindo de uma obra alheia para criar uma obra própria; e quem pratica o plágio está tentando fazer passar como sua uma obra que é de outra pessoa, e para a qual não contribuiu nada, ou muito pouco. Não acho que seja o caso entre Martel e Scliar.

O plagiador típico tenta fazer tudo às escondidas, esperando nunca ser descoberto, porque sabe que está fazendo algo errado. O plágio é a atitude espertalhona, mal intencionada, de se apossar de uma obra feita por outra pessoa – porque é uma obra bem feita, é uma ótima idéia, e (todo criminoso pensa isso, é impressionante como são burros) ninguém vai perceber. Acontece no jornalismo, na literatura, nas teses acadêmicas, nas pesquisas científicas, na historiografia.

O caso mais comum de plágio é o de um sujeito famoso que se apropria da obra de um sujeito obscuro. O plagiador obscuro está a um passo de ser descoberto, porque foi se apropriar logo do trabalho de alguém mais conhecido do que ele. Se eu amanhã quiser bancar o esperto e furtar uma idéia de Jorge Amado todo mundo vai rir na minha cara, porque eu fui furtar logo de um sujeito que é conhecido de Norte a Sul. Plágio assim tem perna curta, não chega na esquina.

O que ocorre às vezes é um artista jovem e anônimo enviar uma obra sua para um artista famoso e tarimbado. Nenhuma resposta. Anos depois, o figurão publica um livro (ou monta uma ópera, ou dirige a peça, etc.), e... bingo! Lá está o trabalho escrito pelo anonimozinho, que, coitado, agora vai ter que mover céus e terras para provar que aquele troço foi feito por ele e não por um sujeito mais conhecido, mais inteligente, mais premiado, mais rico e mais rodeado de advogados do que ele. Por isso que muitos escritores já me aconselharam: “Nunca aceite ler originais inéditos de ninguém. No dia em que você escrever algo que vagamente se assemelhe a um manuscrito que lhe mandaram e que você nem sequer folheou, o cara vai sair dizendo que você furtou a idéia dele.”

0102) Quem foi Harry Smith? (19.7.2003)




Numa entrevista aos 53 anos, ele afirmava nunca ter pago impostos, nunca ter votado, nunca ter tirado carteira de motorista, nunca ter servido ao exército. Vestia apenas roupas jogadas fora, e estava com o aluguel sempre atrasado. Dizia que sua vida sexual limitava-se à masturbação. 

Durante uma época de sua vida, inventou uma dieta à base de apenas manteiga e açúcar, e quase morreu de fome. Perdeu todos os dentes porque se recusava a ir ao dentista. Pedia dinheiro emprestado a todo mundo, e nunca pagava.

Parece o retrato perfeito de um doido ou de um vagabundo, mas o nome de Harry Smith (1923-1991) aparece nos lugares mais imprevistos, e sempre cercado de admiração. 

Tendo se interessado por antropologia na adolescência, estudou na Universidade de Washington, e dedicou-se desde cedo a gravar em fita magnética canções e rituais indígenas, além de compilar vocabulários e reunir objetos de artesanato. Colecionou colchas de retalhos dos índios Seminole, ovos de Páscoa ucranianos, e gabava-se de ter a maior coleção de aviões de papel do mundo (que depois doou ao Museu Aéreo e Espacial do Instituto Smithsonian). 

Era um especialista em “figuras de cordel”, uma arte de fazer complexas figuras esticando uma peça de barbante entre os dedos. Dizia ele ser esta a única arte presente no mundo inteiro, além da música.

Por falar em música, também foi colecionador de discos em 78 rpm, que comprava pelo país afora, a preço de banana, quando a Grande Depressão quebrou milhares de lojas e gravadoras. 

Usando sua coleção, compilou e lançou em 1953 a impressionante Anthology of American Folk Music, seis LPs reunindo um total de 84 canções praticamente esquecidas, que ajudaram a decolar o movimento da música “folk” norte-americana dos anos 60, com Bob Dylan, Joan Baez, Pete Seeger e outros. Era a memória musical e cultural de uma América que a América urbana ignorava. Em 1991, Smith recebeu um Prêmio Grammy por sua contribuição à música americana.

Como sobrevivia? Não se sabe, mas por muitos anos viveu de descolar verbas para fazer cinema. Não o cinema de Hollywood, mas complexos curta-metragens de animação com técnicas desenvolvidas por ele mesmo. Seus filmes eram objeto de culto, provocavam espanto nos festivais, e são citados em qualquer estudo sobre o cinema “underground” ou de animação nos EUA. 

Era estudioso da Cabala e do Ocultismo, e um tremendo inventor de histórias; dizia às vezes ser filho de Aleister Crowley com a Princesa Anastasia da Rússia.

Seu livro de entrevistas Think of the Self Speaking mostra a maneira impressionante como sua mente percorria sem parar os caminhos mais tortuosos. No espaço de dois parágrafos ele passa por jazz, poesia beatnik, literatura clássica, drogas, rituais indígenas, episódios autobiográficos inacreditáveis, gozações com o repórter. 

Era um sujeito que pensava o tempo todo. Dizia ser mentalmente insano, e dizia também que sempre tinha razão. É bem capaz.






0101) O plágio involuntário (18.7.2003)




Nas últimas semanas a imprensa mundial tem publicado declarações de Spencer Leigh, autor do livro The Walrus was Ringo, de que ao compor “Yesterday” Paul MacCartney teria utilizado uma antiga canção gravada por Nat King Cole. 

O assunto é curioso porque “Yesterday” é uma das canções mais gravadas, mais executadas e certamente mais conhecidas do mundo, e o próprio MacCartney afirmou diversas vezes que a compôs dormindo, ou melhor, que ao acordar estava com aquela melodia praticamente pronta na cabeça. Ele pulou da cama direto para o piano e a tocou várias vezes para não esquecer. O primeiro título dado à música ainda sem letra, naquela hora matinal, foi “Scrambled Eggs” (“ovos mexidos”).

Leigh afirma que há grande semelhança melódica, harmônica e de letra entre as duas canções. 

A gravação de Nat King Cole é “Answer Me, My Love”, de 1952, que um ouvinte atento de música norte-americana como o Beatle dificilmente deixaria de ter ouvido. 

Alguns versos são semelhantes. Em “Yesterday”, os Beatles cantam: “Yesterday, all my troubles seemed so far away, now it looks as though they´re here to stay” (“Ontem meus problemas pareciam tão distantes, e hoje parece que eles voltaram para ficar”).

A letra de “Answer Me...” diz: "Yesterday, I believed that love was here to stay, won't you tell me where I've gone astray." (“Ontem eu pensei que o amor estava aqui para ficar, você não vai me dizer onde eu errei?”).

A letra, contudo, pode servir no máximo de prova adicional. MacCartney sonhou foi com a melodia, e de fato existe uma semelhança geral entre as melodias das duas canções, especialmente na modulação para o relativo que ocorre na segunda parte. Se era de fato um resíduo de lembrança que ficara no subconsciente do compositor, é natural que ao cantarolar repetidas vezes a música algumas palavras da letra original tenham-lhe vindo como que naturalmente.

Não considero isto plágio. Fragmentos de músicas, de letras, passagens harmônicas, combinações de acordes, repetição de rimas, tudo isto converge o tempo inteiro, durante o processo de criar uma canção. Ocorre com tanta frequência que nem percebemos, porque já temos a prática de, quando notamos que a música começa a ficar parecida com outra música de A ou B, automaticamente começamos a procurar outros acordes, a guiar a melodia noutra direção, etc. 

Compositores fazem isto o tempo inteiro. E mesmo assim é espantosa a quantidade de músicas que ouvimos cujas melodias, harmonias, cadências e versos lembram os de outras canções. Em geral são apenas trechos, como ocorre entre a música de MacCartney e a de “King” Cole. Eu poderia, na ponta do lápis, anotar aqui dezenas de canções brasileiras ou internacionais que usam pequenos trechos de outras melodias. Isso não é plágio. No caso do Beatle, foi sem querer, mas mesmo quando o uso é deliberado, eu encaro isto como citação, ou como empréstimo. Falarei em breve sobre o plágio mal-intencionado.





0100) O império do número (17.7.2003)





Toda cultura se baseia, entre outras coisas, naquilo que eu denomino Alucinação Motivacional. É preciso convencer a população a fazer certas coisas, e cada cultura encontra motivações diferentes.

Por que Alucinação? Por uma razão muito simples, que qualquer jovem idealista entende: “sonho que se sonha só, é sonho; mas sonho que se sonha junto é realidade.” Quem disse isso? Lênin ou Lennon? Não importa. É a regra que todos os governos, desde os faraós, têm posto em prática. 

A maior Alucinação Motivacional do mundo de hoje é o Número. Não vou nem falar em dinheiro: falarei em esporte. Toda competição esportiva é uma disputa para ver quem atinge primeiro uma determinada quantidade de pontos ou, sendo fixado um limite de tempo, quem está com mais pontos quando este limite é atingido. 

Queremos que os recordes sejam batidos, não importa quais. Tem sujeitos que não fazem outra coisa na vida senão arremessar uma bola de ferro. Um “pool” de patrocinadores o sustenta. Treinos, dietas especiais, comissões técnicas, etc. Tudo isto para que, de quatro em quatro anos, ele vá à Olimpíada e jogue a bola-de-ferro dele mais longe do que a bola do cara da Mongólia ou do Canadá.

Tenho enorme admiração pelas pessoas capazes de façanhas físicas. Admiro o cara que corre 42 quilômetros sem sofrer um enfarte, ou o outro que ergue halteres pesadíssimos sem que os intestinos lhe explodam pelo orifício mais próximo. Mas o lado físico da coisa só beneficia o atleta. O público não ganha um só grama de musculatura vendo isto: ele pensa apenas no número. 


Na Idade Média era o medo do Demônio, das feiticeiras, da Peste e do fim do mundo. 

Na URSS dos planos qüinqüenais, era o entusiasmo de pessoas que acreditavam estar criando a sociedade livre e igualitária do futuro. 

Populações que passam fome, crises, invasões, precisam se agrupar em torno de idéias nítidas e fortes, para poder enfrentar os problemas e vencê-los. E é aí que entra a Alucinação Motivacional.

Se um milhão de pessoas acreditam numa alucinação e querem batalhar por ela, tanto faz. Se eu estou numa sala e alguém diz que está vendo um elefante cor-de-rosa, eu acho que o cara está doido. Se todo mundo começa a apontar para o mesmo espaço vazio e concordar que o elefante está ali, quem vai parar em João Ribeiro sou eu. Realidade e Alucinação são definidas por consenso.

Com isto, o mundo entrou num Delírio Quantitativo. Os recordes olímpicos chegaram a um ponto tal de sofisticação que tornaram-se invisíveis. Finda a corrida, só os aparelhos eletrônicos sabem quem ganhou. Com que cara um sujeito volta pra casa e diz à família que perdeu a medalha por 16 milésimos de segundo?

O russo Sergei Bubka bateu o recorde mundial de salto-com-vara 35 vezes, e acabou tendo uma depressão braba. Cada conquista aumentava a sua obrigação de tentar a próxima, pra não ficar desmoralizado. Ele aprendeu, coitado, que os carneirinhos do sucesso são mais numerosos que os da insônia.