quinta-feira, 2 de setembro de 2010
2336) Steampunk Blues (2.9.2010)
Um Belfegor fumegante bafeja calor de fornalha sobre as ruas iluminadas a lampião, com bruxuleios de fogo químico fazendo sombras dançarem nos tapumes que protegem as entranhas geológicas da metrópole, abertas pelas escavadeiras e pás dos homens empoeirados fincando trilhos para o avanço do leviatã de ferro. A névoa gelada desce do céu e envolve as gárgulas como um oceano invertido, empurrando a cidade para baixo, infiltrando-se pela gola dos sobretudos, misturando-se ao vapor quente, numa dança espiralada de neblinas que se condensam nas vidraças, gotas oleosas que escorrem deixando estalactites de luz iridescente. E nas manilhas subterrâneas de cobre rebitado circula o gás como um sangue denso e sem cor.
Civilização da compressão ótica do espaço, do telescópio que vislumbra civilizações Rorschach nos platôs marcianos, da luneta que fiscaliza o bombardeio de “dreadnoughts” e de encouraçados, do microscópio que magnifica a guerrilha fervilhante das epidemias urbanas. Civilização do automatismo mecânico delirando nas imbricações barrocas da roda dentada com os pistões, do pêndulo com o diafragma, da turbina com a mola comprimida, da perfuradora de cartões com o código Morse. Civilização da moralidade bipolar e esquizóide, em que a histeria puritana ao norte se equilibra pela depravação boêmia ao sul, em que a tecnocracia colonialista produz no leste o excedente econômico a ser consumido pelas teorizações socialistas a oeste.
E passam charretes matraqueando cascos no pavimento diante dos salões de “music hall” em que operetas de temática chinesa se alternam com sessões mediúnicas, “strippers” do Hindustão e reconstituições de crimes famosos na lanterna mágica. E os casais burgueses levam as crianças às alamedas dos parques onde suas retinas guardarão para sempre a visão das esfinges de porcelana, dos dirigíveis de bojo prateado parecendo mais leves que borboletas, das estufas de cristal guardando orquídeas, macacos empalhados, dragões de jade, tartarugas que viram o Dilúvio, pavões e araras de cores lancinantes, plantas carnívoras, pigmeus na jaula batendo num pequeno tambor e mostrando dentes em forma de flecha.
Mais de mil anos foram precisos para erigir essa babel-babilônia que cartografa o mundo, que produz e exporta traçados astronômicos transformando o planeta numa esfera cartesiana de coordenadas e abscissas tridimensionais. Cumprido o milênio, nada mais previsível do que de dentro do Jardim emergir a Besta, não um Baphomet de cem metros de altura, mas uma besta multitudinosa e onipresente: os jovens punk de rosto pardo, com dentes escuros e cicatrizes esbranquiçadas, tatuagens de logotipos futuros loteando seu corpo, cabelos moicanos cor de radioatividade, piercings falantes que dialogam entre si, sujos, escoriados, armados de tecnologias digitais e navalhas vitorianas, de mentes velozes como a de um lagarto, filhos bastardos e inevitáveis de um coito no altar sacrílego de Hefestos e Moloch-Baal.
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