sábado, 3 de maio de 2008

0385) José Agrippino de Paula (13.6.2004)



Um artista fora-de-esquadro, para mim, é o que faz suas próprias regras, que começa suas obras partindo de premissas só suas. É um sujeito cujo zero-cartesiano está num lugar diferente do nosso. Assim é José Agrippino de Paula, de quem conheço apenas dois romances, uma peça teatral e um filme, que me produziram uma impressão inesquecível. Conheci seus livros em 1968, pelas mãos dos irmãos Lula & Chico Pereira, que me emprestaram Lugar Público (1965): um livro desconcertante, mosaico onde cada parágrafo não tinha nada a ver com o anterior, narrando o cotidiano sórdido de um grupo de intelectuais vagabundos, sem tostão. Sua rotina sem objetivo decorre entre pensões baratas, botequins e cinemas, num Rio de Janeiro cinzento, decadente, irreconhecível. Os personagens têm nomes pomposos (César, Bismarck, Pio XII, Napoleão, Moisés), e cada parágrafo é narrado por um “eu” que pode ser, aleatoriamente, qualquer um deles. Na orelha do livro, Carlos Heitor Cony comparava o jovem escritor com Robbe-Grillet e Campos de Carvalho, e via nele a mesma “visão espessa e irritada” de Henry Miller e do Sartre de Sursis.

Tão impactante quando este foi o segundo livro de JAP: PanAmérica (1967), com um prefácio elogioso do físico Mário Schenberg e na capa um belo quadro de Antonio Dias (“O espetacular contra-ataque da arraia voadora”, coleção Gilberto Chateaubriand). PanAmérica elevava ao quadrado a voz narrativa típica de JAP, um “eu” que descreve sem emoções o que vê e o que faz. É a voz monocórdia e inalterável de um drogado, ou de alguém que está sonhando e registra este sonho com a impessoalidade e a exatidão de uma câmara de filmar. Em PanAmérica, o narrador contracena com vultos da História e da cultura pop: Marilyn Monroe, Che Guevara, Joe DiMaggio, Harpo Marx, índios bolivianos, extras de Hollywood, guerrilheiros, soldados.

Em todos estes anos, a única pessoa que vi referir-se a JAP foi Caetano Veloso, que no livro Verdade Tropical conta de sua admiração pelo cineasta/escritor (ao qual dedicou seu filme Cinema Falado). Agrippino dirigiu um longa-metragem, Hitler 3o. Mundo. Quando eu trabalhava no Clube de Cinema da Bahia, por volta de 1979, fizemos uma sessão deste filme e o próprio diretor o levou. A cópia estava estragada; avisei que teríamos de cortar algumas pontas-de-rolo, que estavam imprestáveis, e Agrippino, com o rosto inescrutável de um índio peruano, disse: “Se quiser, pode remontar o filme todo, eu não ligo.” A tentação foi grande, mas não ousei.

Os dois livros acabam de ser reeditados pela editora paulista Papagaio (http://www.editorapapagaio.com.br/). Caetano diz de PanAmérica: “Talvez não haja no mundo nenhuma obra literária contemporânea de seu PanAmérica que lhe possa fazer face. O livro soa (já soava em 1967) como se fosse a Ilíada na voz de Max Cavalera.” Ih... danou-se – agora vou ter que explicar a metade do público quem é Max Cavalera, e à outra o que é a Ilíada.

0384) Olhos que dizem tudo (12.6.2004)




(Cacilda Becker)

O ator de cinema tem um instrumento de que o ator de teatro só dispõe em ocasiões especiais. Esse instrumento é o olhar.

Não que no palco o olhar do ator seja imperceptível ou irrelevante. Mas o cinema tem a possibilidade de, com um close, botar diante de nós um rosto com não sei quantos metros de altura, um rosto que parece estar a centímetros do nosso. Essa falsa proximidade e essa impressão de intimidade mental proporcionam ao diretor e ao ator um belo dum instrumento.

Diz-se que há cem anos, no começo do cinema, os espectadores estranharam muito os primeiros closes que surgiram na tela. Os jornais comentavam: “O filme é cheio de absurdos: um casal está conversando numa sala e de repente aparece a cabeça decapitada de um gigante, sem nenhuma explicação.”



Um close clássico do cinema é o da cena final do filme A Rainha Cristina, com Greta Garbo. A rainha sueca se apaixona pelo embaixador espanhol e, devido à rejeição política a este casamento, decide abdicar do trono e ir embora com o espanhol. Depois que renuncia, vai esperá-lo no navio que os levará embora da Suécia, e ali recebe a notícia de que ele acaba de ser morto num duelo. Sem o amante, sem o trono, ela ordena que o navio parta, vai para a proa e fica olhando o oceano.

É um dos planos mais belos do cinema, porque a fisionomia de Garbo é inescrutável: vemos o seu rosto, imaginamos o que ela pode estar sentindo ou pensando num momento como aquele, mas ela própria não nos dá nenhuma pista. A expressividade da atriz, num momento assim, está justamente em nada dizer, nada indicar, e em permitir diferentes leituras ao espectador.



Outro primeiro plano com muitas perguntas e poucas respostas é o de Mia Farrow em O Bebê de Rosemary. Rosemary é uma moça novaiorquina que vai morar no apartamento vizinho ao de uma seita de satanistas, os quais querem escolher uma mãe para conceber o Anticristo. É possuída (literalmente) pelo demônio, e o filme narra o pesadelo por que ela passa durante toda a gravidez. Quando o bebê nasce, ela é admitida no quarto.

O último plano do filme é de Rosemary sentada ao lado de um berço todo forrado de panos negros, olhando para o bebê que está lá dentro. Não vemos o bebê, que supomos monstruoso: a câmara mostra apenas ela, e seu olhar cheio de resignação, ternura, aceitação. Ou pelo menos é o que vejo ali; outras pessoas verão outros sentimentos.



Não há também quem esqueça a cena final da La Strada de Fellini, quando Zampanò (Anthony Quinn) fica sabendo da morte de Gelsomina. Ele, que a tratara com brutalidade a vida inteira, percebe agora que a amava. Ele deixa-se cair na areia da praia, a câmara vem sobre seu rosto. Zampanò chora, ruge, grita como um bicho bruto; ergue os olhos para o céu, como se pela primeira vez percebesse sua existência. Sem uma palavra, o ator regurgita um tumulto de sentimentos que podemos ler em cada ruga, em cada contração de seu rosto.









0383) Folclore e cultura digital (11.6.2004)




A cultura digital surgida com o computador e a Internet está fechando um ciclo e nos trazendo de volta ao tempo da cultura oral, de antes da imprensa. 

Por um lado, temos a possibilidade técnica de reproduzir diferentes tipos de linguagem (textos, sons, imagens) que em conjunto cobrem grande parte da produção cultural de qualquer sociedade. 

A invenção da imprensa teve uma função semelhante: numa época em que um monge levava anos para fazer à mão uma cópia inteira da Bíblia, tornou-se possível imprimir centenas de bíblias em poucos meses. A invenção da mídia digital, contudo, elevou isto ao cubo. E botou na roda, além do texto, a reprodução sonora e a de imagens.

Uma consequência interessante disto é que, com esta facilidade inédita de copiar e passar adiante, está se tornando cada vez mais irrelevante o conceito de “original”. Distinguimos um original de uma cópia porque existem diferenças técnicas entre um e outro, e geralmente a cópia envolve algum tipo de perda, de piora de qualidade. 

No caso da mídia digital, isto não ocorre, e neste ponto o pirateamento de CDs é muito mais eficaz do que seu antecessor histórico, o xerocamento de livros. A multiplicação das cópias faz empalidecer o conceito de original, quebra a aura de “obra-de-arte” que o cercava. 

Isto já foi analisado por Walter Benjamin em seu famoso ensaio “A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica”. E disto nasce, por exemplo, a cultura do “remix”, das canções que mesmo depois de lançadas não param de ser manipuladas pelo próprio autor ou por outras pessoas. Não apenas se copia, mas se interfere.

Este estado de coisas parece nos remeter ao tempo da literatura oral, em que não existia uma versão oficial de um texto, mas versões conflitantes e hierarquicamente parelhas. 

Um romance ibérico do século 14 era conhecido e recitado por milhares de pessoas, e ninguém estava preocupado em saber qual seria a versão original. Não existia. Ou talvez tivesse existido, mas isto era irrelevante.

Nasce daí também uma outra característica que a cultura digital partilha com o folclore pré-letrado: a diminuição do poder conferido ao Autor, devido à diluição do próprio conceito de autoria. Estamos entrando numa fase de intensa prdução e reprodução sonora, em que as músicas passarão a obedecer à famosa frase atribuída ao sambista Sinhô: “Samba é como passarinho, é de quem pegar primeiro”. 

Alguém “ripa” um CD de uma banda desconhecida, pega uma música, interfere nela, e a coloca em seu próprio CD. Outro pega este segundo CD, faz o mesmo e passa adiante. É quase impossível rastrear essa cadeia de cópias e apropriações. A música tinha dono, mas agora é de todos. 

Uma situação de certa libertinagem estética, que no plano jurídico e financeiro cria um impasse: quem merece ganhar dinheiro de direito autoral, ao longo deste processo? Quem paga? Quem recebe? São questões que vão surgindo enquanto não assenta a poeira da revolução digital.






0382) Triste do homem empregado (10.6.2004)



O Brasil é engraçado. A mídia se apavora com os índices de desemprego, os sindicatos acham que o fim-do-mundo está próximo porque caiu o número de vagas na indústria. A economia informal, no entanto, cresce mais do que o PIB da China. As grandes cidades estão “assim” de ambulantes vendendo de tudo, fazendo de tudo. E não venham me dizer que eles estão ali porque perderam um emprego numa indústria. Eu diria que a maioria das pessoas prefere ser camelô do que ser operário. Por que?

Em primeiro lugar, é “a lei do mais fácil”. Ser operário especializado requer Senai, requer estudo. Um torneiro mecânico tem conhecimentos técnicos com os quais eu, do alto de minhas veleidades literárias, não posso nem sonhar. Num certo sentido, ser torneiro mecânico exige mais preparo do que ser presidente da República, cargo onde há dezenas de ministros e assessores para consertar as mancadas do titular. Em segundo lugar, o brasileiro tem mania de ser independente. Em 1990 trabalhei dois meses para um instituto de pesquisa, entrevistando pessoas sobre o tema “Carteira assinada ou trabalho autônomo?”. Entrevistei umas 30 pessoas de diferentes classes sociais, no Rio e em Recife, e fiquei com a impressão de que o brasileiro prefere mil vezes ganhar um dinheirinho razoável por conta própria do que ganhar o dobro disso trabalhando para um patrão, batendo ponto, cumprindo horário.

Tiro isto por mim. Olha eu aí – que diabo estou fazendo como entrevistador numa empresa de pesquisa? Resposta: estava fazendo um frila, meus camaradas. Era um trabalho “free-lancer”, franco-atirador, um trabalho eventual, com algumas semanas de duração e pagamento bem razoavelzinho. A melhor coisa do mundo. Pra mim, melhor do que um emprego com carteira assinada. Não digo que emprego é ruim: todas as vezes que tenho emprego fixo por um ano inteiro eu passo bem, ajeito as coisas de casa, vou mais a restaurantes, compro mais livros e mais discos, estoco uma grana para as próximas vacas-magras. O emprego acabou? Não há problema. Alguns dias ao telefone, e os frilas voltam a aparecer.

Quem vive como free-lancer tem que viver numa adrenalina permanente, porque está em junho e não sabe como vai pagar as contas de julho. É preciso estar atento e forte, tá ligado? Emprego é bom, mas o cara quando arranja emprego veste logo um pijama mental. Acostuma-se à rotina emasculatória de dar expediente e assinar ponto. Perde o gume, perde o tesão. E só faz o que não gosta. Me lembro de São Pedro, no folheto O Grande Debate de Lampião com São Pedro, de Zé Pacheco: quando Lampião bate na porta do Paraíso, São Pedro interrompe a refeição e vai abrir de má vontade: “São Pedro depois da janta / gritou pra Santa Zulmira: / “-- Traz o cigarro caipira!” / e acendeu no São Panta. / Apertou o nó da manta / vestiu a casaca e veio / abriu a porta do meio / falando até agastado: / “--Triste do homem empregado / que só lhe chega aperreio!”

0381) Tolkien no Far-West do futuro (9.6.2004)




Acabei de ler um livro que me deixou pensativo: The Gunslinger, o primeiro volume da série “The Dark Tower”, escrita pelo subestimado Stephen King. São sete enormes livros que King começou a escrever em 1970 e concluiu no ano passado, ou seja, 33 anos depois. 

Diz ele que quando leu O Senhor dos Anéis aos 19 anos teve um impulso imediato de escrever uma história parecida. Centenas de jovens tiveram o mesmo impulso, daí a existência, hoje, do gigantesco mercado de histórias de Fantasia, não só na literatura (Terry Brooks, Stephen Donaldson, Fritz Leiber, George R. R. Martin, Marion Zimmer Bradley, etc.) como no cinema, nos quadrinhos, nos “role playing games”.

A primeira idéia de King foi fazer o que todos fizeram: escrever uma batalha épica entre o Bem e o Mal, com elfos, orcs, dragões voadores, espadas mágicas... Mas ele não se sentia à vontade escrevendo uma fantasia baseada em campônios ingleses e ambientações escandinavas. 

A revelação lhe veio ao assistir O Bom, o Mau e o Feio, faroeste italiano de Sérgio Leone, e ver “um Clint Eastwood com dez metros de altura” e “um Lee Van Cleef com rugas que pareciam desfiladeiros”. Os dois universos se fundiram em sua mente: 

“Percebi que o que eu queria escrever era um romance que tivesse o mesmo sentido épico e mágico de Tolkien, mas cuja história acontecesse naquele ambiente do Oeste, majestoso, absurdo.”

The Gunslinger conta a história do pistoleiro Roland de Gilead, e de sua caça ao Homem de Preto, feiticeiro do Mal (uma espécie de Saruman). Ao longo da história vamos percebendo que aquele mundo fica vagamente no futuro. A ambientação é de faroeste, mas aqui-acolá os personagens evocam um passado onde havia grandes cidades, arranha-céus... Das areias do deserto, emergem maquinarias gigantescas e enferrujadas. 

Ficamos com a sensação de que em algum ponto do século 21 houve o colapso da nossa civilização, e que a humanidade se reorganizou como pôde. Nesse faroeste futurista, existem mutantes radioativos, ferrovias subterrâneas abandonadas, e pianistas de “saloon” que tocam “Hey Jude”. 

Quem quiser mais informações sobre a série, pode achá-las em: http://www.stephenking.com/DarkTower/.

Não é mais Tolkien, portanto. É uma resposta orgulhosa e viril dos sertanejos norte-americanos à obra de Tolkien, da qual o livro de King guarda aquele mesmo espírito épico, mas traduzido em elementos próprios (o faroeste, a ficção científica). 

Em “Tolkien e Guimarães Rosa” (14.1.2004) e em artigos nos dias seguintes, comparei estes dois autores, e agora quero colocar Stephen King nessa mesma prateleira. Aquietai-vos, ó críticos: não estou dizendo que King é um estilista comparável a Rosa. Mas ser escritor não é apenas ter estilo, é também ser fabulista, como disse Drummond. 

King é injustamente chamado de “fast-food” literário, mas para mim seu livro é uma carne-de-sol com macaxeira e um café bem forte, que é como eu gosto dessas coisas.