sábado, 20 de agosto de 2011
2640) Repassando, compartilhando (20.8.2011)
O escritor Damon Knight tem um romance de ficção científica chamado A for Anything (em português seria “Q de Qualquer coisa”) onde ele explora uma situação curiosa. Num mundo futuro, inventa-se uma máquina capaz de reproduzir com perfeição qualquer coisa, tipo uma super-xerox universal. Se botar ali uma moeda e acionar a máquina, ela produz uma moeda igual. Se colocar um passarinho vivo, ela produz um clone exato do passarinho, também vivo. Esse invento causa mudanças imprevisíveis na civilização humana.
Algo parecido foi essa varinha de condão que a cultura digital nos presenteou: a possibilidade de com um único clique tirarmos uma cópia, ou 200 cópias, ou 2 mil cópias de um mesmo documento. Com que volúpia as pessoas recebem uma foto colorida, enternecedora, de uma galinha maternalmente amamentando seus pintinhos, e a reenviam para todos os 1.500 contatos de sua caixa de mensagens! Com que simplicidade de esforço elas criam mensagens em grupo entre 180 pessoas, de modo que cada comentário é clicado no “Responder a Todos” e segue instantaneamente para os 179 incautos, mesmo que o comentário seja apenas “kkkkkkkk”, ou “A-do-rei!” ou “Concordo!”! Como é rápido receber os clichês lenda-urbana de sempre (adolescente desaparecida, corrente de Santa Inocência, recado de Bill Gates, proposta de negociata bancária da viúva de um ex-ministro de Uganda, etc.) e seguir o conselho (já internalizado psiquicamente) de “repassar para todos”!
O Facebook adicionou, ao verbo “repassar”, o seu equivalente “Compartilhar”. Para poupar esforço, já que o processo não é tão simples quanto o da caixa de email, introduziu há pouco o sistema de digitação automática, em que a gente nem precisa escrever o nome completo de cada pessoa. Basta colocar “Bra...” e, presto! O Facebook completa o nome do futuro e indefeso recebedor. Isto desencadeou uma febre compartilhante. As pessoas se inebriam com a própria generosidade e compartilham tudo: videoclip de Lady Gaga, entrevista de deputado do DEM de Roraima, foto sensual de participante de A Fazenda, gol de placa em jogo da série C da Venezuela, lista dos “Cem Melhores Tiros de Revólver do Faroeste Italiano”... Gente que não compartilharia um misto quente com um sudanês faminto compartilha pixels e megabytes com a prodigalidade de recém-usuário do novo toque de Midas.
A Digitolândia é o parque de diversões dos indolentes, daqueles que, como dizia Drummond, “querem mudar o mundo, desde que para isto não seja preciso mover uma palha”. Vão um passo além, claro, e movem a palhazinha imponderável do cursor, que não é sequer uma varinha mágica, é mais leve ainda, um asterisco mágico que flutua no universo retangular do monitor, portulano do Novo Mundo onde tudo é de graça e sem esforço. Estou reclamando? De jeito nenhum. No instante em que em digitar o ponto final deste artigo, presto! Repassei, compartilhei com um bilhão de incautos do presente e do futuro.
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