Todo ano vai chegando essa época e recomeça a discussão.
Chamo a essas coisas “o carrossel das discussões”, porque é um debate cíclico, que
nunca se resolve, e que volta todo ano, de acordo com as rotações do
calendário.
Uma vez publiquei alguma coisa nas redes sociais curtindo
o Halloween e o pessoal me castigou um pouquinho. Como é que eu, um defensor da
cultura popular brasileira, um estudioso do folclore, e paraibano ainda por
cima, posso gostar de uma comemoração americanizada como essa?
Tem muita gente incomodada com isso, porque não se trata
nem de decoração das lojas nos shoppings. São as nossas escolas, que estão
promovendo festinhas de Halloween para as crianças, essas mesmas escolas que
não se dão o trabalho de lhes ensinar o que são a mula-sem-cabeça, o
saci-pererê, o boitatá.
De fato, estes nossos duendes deviam ser mais
frequentados e discutidos. Não só eles – outros igualmente interessantes como o
bradador, o pé de garrafa, o corpo seco, a mulher do chapéu grande, e outros
que mesmo alguns defensores de nossas mais arraigadas tradições nunca ouviram
falar.
O que irrita muitos adversários do Halloween é o fato de
que ele (como outras coisas) denota aquele nosso complexo de inferioridade
deslumbrada diante dos EUA, aquela nossa fascinação viralata diante de tudo que
é moda em Manhattan e em Beverly Hills. Concordo. É uma demonstração de que
nascemos para entregar de graça nosso ouro e pagar pela bijuteria alheia.
E se formos de fato para o vamos-ver, o Halloween que se
comemora em nossas capitais está na mesma prateleira dos Pokemons e Digimons,
das festas temáticas de Princesinhas Disney, dos Guardiões da Galáxia, das
Tartarugas Ninjas e do Bob Esponja.
Varrer isso da cultura urbana brasileira de 2017? É mais
fácil proibir o consumo de Coca-Cola e de uísque escocês no país.
Meu interesse pelo Halloween não tem nada a ver com
Brasil ou com Estados Unidos, não tem a ver com as fronteiras políticas dos
países ocidentais neste instável começo de século 21. Tem a ver com jazidas
profundas, não com os loteamentos da superfície.
O Halloween me interessa justamente porque gosto de ler
sobre essa área tão canhestramente classificada como folclore. É uma jazida,
como já falei. É material icônico-narrativo com mil anos de idade. Uma
cartografia de parte do nosso inconsciente coletivo que se revela através de
monstros, duendes, bruxas, magos, demônios, vampiros.
Para mim, o Halloween (o meu Halloween) é vizinho-de-porta da Geografia dos Mitos Brasileiros de Câmara Cascudo, uma das minhas
obras de cabeceira. Vizinho-de-porta das bruxas de Goya, do romance gótico
europeu, das lendas judaicas do Golem e do Dybbuk, e das lendas árabes dos Djinns
e dos Efrites.
É esta, para mim, a área semântica e simbólica dessa
festa, e se ela virou uma comemoração pasteurizada e comercializada, sem nada
de Brasil, reclamem de quem fez o mesmo com o Natal e o São João.
O Halloween me traz à mente o País de Outubro de Ray
Bradbury e as histórias de assombrações de Almirante, e não estou nem aí para a
decoração das vitrines do Shopping da Gávea. Halloween pode ser estrangeiro,
mas para mim não é Walt Disney: é feito dos romances de Stephen King e dos
quadrinhos de Neil Gaiman – os quais, neste sentido estrito, não são americanos
nem ingleses, são afloramentos de uma correnteza subterrânea que vem desde a
Babilônia e o Egito.
Deveríamos celebrar com o mesmo entusiasmo nosso
monstruário luso-afro-tupiniquim? Sem
dúvida, e de vez em quando estou aqui dando uma assopradazinha nessas brasas para
que não se apaguem. Não vejo contradição
entre o Halloween estrangeiro e os monstros do nosso “folclore”. São todos
consanguíneos. Pertencem a uma cultura anterior ao Mayflower e a Pedro Álvares
Cabral.