Acabei de ver hoje a primeira temporada da série de TV criada por Frank Spotnitz, tendo como base o romance de Philip K. Dick, o clássico The Man in the High Castle (1962). Primeiras temporadas são geralmente enganosas, quando a série é boa, porque as segundas, terceiras etc. têm justamente a missão de produzir reviravoltas em tudo que elas mostraram.
Então, não vou me deter aqui nas minúcias do roteiro, do quem está do lado de quem, de quem está mentindo, ou das consequências das muitas peripécias destes dez primeiros (e muito bons) episódios. Uma série desta natureza vive das viradas-de-mesa que produz.
Li o livro de PK Dick muitos anos atrás, na saudosa coleção “Asteróide” da Editora Sabiá; pretendo reler agora na tradução de Fábio Fernandes para a Aleph, enquanto vejo as temporadas restantes. Não leio para ficar de caneta em punho checando fidelidades e infidelidades ao original. Uma série é uma obra autônoma. Um filme não é uma transposição de um livro. É uma variante, uma expansão, uma obra nova criada a partir das idéias sugeridas pela obra original. Se há de haver “fidelidade”, que seja ao espírito, não aos detalhezinhos de enredo ou cenário.
É uma América empobrecida, encardida, sovada, cerzida, rebocada, onde as únicas partes reluzentes e triunfalistas são os edifícios do Reich e do Império Nipônico, as limusines dos militares, os foguetes intercontinentais cruzando os céus daquelas cidades anacrônicas e cheias de lixo.
A ação transcorre no começo dos anos 1960, quando os norte-americanos já se acostumaram a abaixar a cabeça diante dos invasores, mas existe uma Resistência “underground”. É uma história de espionagem, duplas identidades, pessoas com documentos falsos, encontros clandestinos, disfarces.
Philip K. Dick foi um dos escritores que mais absorveram o clima paranóico da Guerra Fria, da desconfiança permanente, da situação de nunca se saber ao certo quem é a pessoa em cujos olhos estamos olhando, a pessoa para quem trabalhamos, ou que trabalha para nós, a pessoa que dorme conosco na mesma cama. Um aliado, ou um enviado do inimigo?
Este espírito conspiratorial está presente na obra de PK Dick, principalmente em partes de O Homem Duplo (1977), Loteria Solar (1955), O Tempo Desconjuntado (1959). Pessoas meio perdidas num ambiente, sabendo que estão sendo caçadas por alguém (ou caçando alguém), sem saber ao certo quem é o amigo e quem é o inimigo.
A situação imaginada por PKD torna-se ainda mais rica de possibilidades dramatúrgicas porque trata-se de um povo oprimido por duas ditaduras que são adversárias uma da outra, e que vivem numa convivência tensa e fingida, apenas esperando o momento de dar o bote. Os norte-americanos ficam naquela situação da população de Tóquio tentando escapar da briga entre Godzilla e Ghidorah, algo assim.
Dick ficou muito marcado pela II Guerra Mundial, a que seus livros se referem com frequência. É curioso que no Homem do Castelo Alto (e nesta primeira temporada da série) não haja praticamente nenhuma referência à Itália, à Inglaterra, à França, à URSS – é como se esses protagonistas do conflito não existissem mais, para fins práticos.
Finalmente: o grande “gimmick” fantástico da obra original era o livro imaginário The Grasshopper Lies Heavy, onde era descrito um mundo alternativo onde os Aliados venceram a guerra. Na série de TV, o livro é transformado em filme – uma profusão de rolos de filme em 16mm que passam de mão em mão ao longo de uma corrente de “subversivos”, filmes que mostram (neste ponto a mudança enriquece muito a idéia original de Dick) mundos diferentes daquele. Como a invasão de uma realidade paralela, através da imagem cinematográfica.
O recurso lembra um pouco o filme vanguardista e anônimo usado como desencadeador do enredo de Reconhecimento de Padrões (2003) de William Gibson: “the Footage”, como a chamam, trechos de um filme maior que ninguém sabe de onde vem, quem fez, nem por que razão está sendo liberado aos poucos, e só para um pequeno grupo secreto.
PK Dick sempre encarnou o Mal, em seus romances, naquelas entidades impessoais, desumanas, sem empatia, fossem indivíduos ou organizações. Fosse um inseto, um viciado em drogas, um andróide assassino, um líder messiânico, um policial, ele via esse mecanicismo mental como uma expressão do Mal em si.
Nesta história, ele achou no Partido Nazista e no Império militar japonês duas encarnações perfeitas para essa imagem: entidades fortemente hierárquicas, insensíveis, poderosas, com um objetivo a alcançar e com a disposição de esmagar quem se atravesse em seu caminho.
No episódio 4, quando Juliana pergunta a Lem Washington (um dos membros da Resistência) se ele viu os filmes, este responde: “Meu trabalho não é assisti-los. Eu os passo adiante, e só.” Pode ser que o personagem revela outras facetas no futuro. Mas, em essência, é esse o comportamento que Dick critica, como quando o oficial nazista Smith explica a Joe Blake, no episódio 5:
Tanto as ditaduras quanto as Resistências tendem ao mesmo comportamento burocratizado, verticalizado, cala-a-boca-e-obedece, em que a caça e o caçador se espelham um no outro: como o humano e o andróide, o policial e o drogado, o médico e o louco. Para PK Dick, ninguém é bonzinho, ninguém está a salvo de a qualquer momento se transformar no seu oposto mais temido e mais odiado.