segunda-feira, 28 de setembro de 2009

1282) “Sambando nas brasas, morô?” (22.4.2007)



Estreou no Rio o filme de Elizeu Ewald Sambando nas Brasas, morô?, um docudrama ambientado na década de 1950 no Rio de Janeiro. Docudrama é um neologismo que a turma do cinema inventou para esses filmes que misturam documentário e ficção. Não é simplesmente um filme de ficção com reconstituição de época, é um filme que usa imagens feitas na própria época retratada, ou, no caso de um filme totalmente contemporâneo, uma mistura de cenas documentais e trechos encenados com atores. Sambando nas brasas, morô? é a história de um jovem músico de Minas Gerais (Marcello Novaes) que vai morar no Rio, na casa do irmão mais velho, no começo dos anos 1950. O rapaz toca na orquestra da Rádio Nacional e depois na noite carioca; o irmão é cinegrafista da Agência Nacional, do governo Getúlio Vargas. Com estes dois ganchos narrativos, o filme nos mostra um abundante material de imagens sobre a música, o rádio e a política da época, além de imagens de um Rio de Janeiro que não existe mais.

O filme é em preto-e-branco, e a transição entre material de arquivo e material filmado é feita sem solavancos narrativos, embora seja perceptível (e inevitável) a diferença de nitidez na fotografia e um de do outro. O lado documental é reforçado pela inserção de entrevistas (a cores) com pessoas que viveram aquela época: Carlos Heitor Cony, Armando Nogueira, Paulo Moura, Nelson Pereira dos Santos, José Louzeiro e vários outros. Sambando nas brasas nos faz passar pelo governo Getúlio Vargas, pelo atentado contra Carlos Lacerda, o suicídio de Getúlio (Cony comenta: “Getúlio era um suicida nato”), a eleição de Juscelino e a tentativa de golpe contra sua posse, a conquista da Copa de 58, a construção de Brasília. Tudo isto devidamente filmado pelo “camera man” interpretado pelo ator Clemente Viscaino, que acaba virando uma “testemunha ocular da História” empunhando uma câmara de 16mm.

Paralelamente a isto corre a história de amor entre o saxofonista Pedro e Arlete (interpretada por Tracy Segal), uma paquera que começa ao som de sambas no Cassino da Urca e chega ao casamento ao som da Bossa Nova de João Gilberto. Este filme de Elizeu Ewald poderia ser emendado, sem sutura, ao seu filme de 2001, Nelson Gonçalves, em que ele usa a mesma técnica e o mesmo estilo para contar a vida do grande cantor da vida boêmia. O mais interessante nestes filmes é a maneira como se pode hoje recorrer a material de arquivo para preencher os interstícios descritivos de uma ação. Mesmo existindo uma diferença de tonalidade, granulação, foco, etc. nas imagens do Rio antigo, podemos, com um pouco de suspensão da incredulidade, imaginar que estamos vendo um filme de 1955, tal a fluência com que passamos de uma imagem para a outra. A existência de uma imensa quantidade de material de arquivo disponível conduz a esse novo gênero do filme-colagem, onde existem infinitas possibilidades de fusão entre passado documental e presente dramatúrgico.

1281) Zola e a Fatalidade (21.4.2007)


(Émile Zola)

Será que existe mesmo esse negócio, a Fatalidade com F maiúsculo? Claro que as fatalidades minúsculas existem e acontecem todo dia, como o cara que vai botar uma carta no Correio, passa perto de uma construção, cai-lhe uma viga na cabeça e tchau. A Fatalidade é outra coisa, é algo que pertence mais ao domínio do Destino do que ao do Acaso, é algo que parecia escrito-nas-estrelas, predeterminado para acontecer. Por mais que se fuja a ela, está-se fugindo na direção de Tebas ou de Samarra, ou seja, sempre na direção desse encontro marcado com nosso futuro irreversível.

No filme Belle de Jour de Luís Buñuel há uma cena em que o casal interpretado por Jean Sorel e Catherine Deneuve vai caminhando por uma rua de Paris e vê numa calçada uma cadeira de rodas, vazia, estranhamente deixada ali. Sorel se interrompe e fica olhando para aquele objeto com um ar fascinado. A esposa o puxa pelo braço, “vamos embora, o que foi?” E ele, “nada, nada...” Ainda um pouco intrigado recomeça a andar, meio que olhando para trás. Ele próprio não sabe por que aquilo lhe chamou a atenção. Saberemos nós, no fim do filme, quando ele é alvejado pelos tiros de Pierre Clémenti e fica paralítico. Foi um vislumbre do próprio futuro; um aviso do Destino.

Num livro de Sérgio Paulo Rouanet leio um comentário sobre Émile Zola, o grande romancista do naturalismo francês da virada dos séculos 19/20. Zola era um neurótico obsessivo, que deu um certo trabalho aos psiquiatras da época. Os obsessivos são essas pessoas que lavam as mãos cem vezes por dia, ou que ao sair de casa voltam vinte vezes porque acham que deixaram alguma luz acesa ou alguma torneira aberta. Há o caso famoso de uma mulher que só saía de casa levando o ferro de passar roupa, para ter certeza de que não o deixara ligado. Diz Rouanet: “Zola precisava antes de dormir tocar várias vezes os mesmos móveis, abrir as mesmas gavetas. Contava os bicos de gás, os degraus de uma escada. De noite, abria os olhos sete vezes, para provar a si mesmo que não ia morrer” (Os Dez Amigos de Freud, vol. 2, pag. 363).

Ora – como morreu Zola? O próprio Rouanet registra (vol. 1, pag. 142) que Zola morreu em 28 de setembro de 1902, durante o sono, envenenado pelo óxido de carbono produzido pela lareira de seu apartamento. A chaminé estava entupida e o gás se acumulou no aposento. Depois suspeitou-se de um entupimento proposital; Zola arranjara muitas inimizades com sua participação no Caso Dreyfus, em que combateu com ferocidade o anti-semitismo na França. Mas à luz dessa morte, as ansiedades e obsessões anteriores parecem se justificar. Como se ele pressentisse no futuro, um perigo relacionado ao gás, à noite, à hora de ir dormir. Como se precisasse se certificar, todas as noites, movido pela angústia dos pressentimentos vagos, de que estava em segurança e que aquela coisa que temia não iria acontecer.

1280) Kurt Vonnegut Jr. (20.4.2007)




Li não sei onde que idade madura é quando começam a morrer os nossos ídolos, e velhice é quando começam a morrer nossos colegas de faculdade.

Ao que parece ainda estou no primeiro estágio. Morreu aos 84 anos Kurt Vonnegut Jr., escritor para quem o fato de estar vivo era uma mera casualidade, e que sempre encarou com desconfiança o planeta Terra, a humanidade que o habita e ele próprio.

Vonnegut tinha uma relação conflituosa com a literatura de ficção científica, cujos temas ele utilizava, mas a cuja comunidade afirmava não pertencer, talvez com medo de ser discriminado. Para uma crítica literária pretensiosa e desinformada, como é grande parte da norte-americana, o simples fato de alguém escrever dentro de determinado gênero cancela por antecipação qualquer possibilidade de boa literatura.

O grande clássico de ficção científica de Vonnegut, na opinião da crítica, é As Sereias de Titan. Pelo meu gosto pessoal, seu melhor livro é Matadouro 5, em que ele mistura o bombardeio americano a Dresden, na II Guerra Mundial (ao qual ele escapou, pois na época estava prisioneiro dos alemães nessa cidade), com as aventuras de Billy Pilgrim, um rapaz que é abduzido por extraterrestres e passa a viajar aleatoriamente no Tempo, fazendo um ping-pong caótico entre Passado, Presente e Futuro.

Vonnegut era sardônico, amargo, irascível, e, como muitos indivíduos portadores destes traços, dado a rasgos melodramáticos e sentimentais. Parecia-se muito (e não só fisicamente) com Mark Twain.

Seus livros de maior sucesso são muitos: Almoço dos Campeões, Pastelão, ou Solitário Nunca Mais, Galápagos, Hocus Pocus e vários outros. Tinha um estilo telegráfico, de frases curtas, bordões repetidos, personagens que se comportavam às vezes como personagens de histórias em quadrinhos. Algo no seu sarcasmo lembrava os filmes de Robert Altman e as HQs de Robert Crumb.

Vonnegut criticava com acidez a cultura-de-massas, como no conto “Harrison Bergeron”, em que um personagem é levemente mais inteligente que a média da população, e o Governo implanta um rádio-transmissor em seu cérebro, o qual emite um sinal ensurdecedor de 20 em 20 segundos, para impedir que ele use sua inteligência e obtenha vantagens. O sujeito está conversando e quando está prestes a ter uma idéia, o transmissor soa: “Seus pensamentos fugiram em pânico, como ladrões ouvindo um alarme”.

Vonnegut dizia que um leitor diante de uma página impressa é como um violinista diante de uma partitura: metade da obra está ali diante dele, e a outra metade cabe a ele executar no seu instrumento, que no caso do leitor é sua própria mente.

Vonnegut nunca desistiu. “O planeta está tentando se livrar de nós,” dizia ele. “Depois de duas Guerras Mundiais, e do Holocausto, e da Guerra dos Bálcãs, ele chegou à conclusão de que somos uns animais inviáveis”. Daí viriam os terremotos, tsunamis, e até mesmo a Aids. “É o sistema imunológico da Terra que está nos perseguindo”.







1279) Viva o clichê (19.4.2007)


(The Progressive Review)

De vez em quando nesta coluna eu desço a ripa nos clichês literários e cinematográficos. Isto significa que advogo a extinção imediata deles, sua proscrição, algum tipo de “pogrom” ou de “solução final”? Longe disto. O clichê, o lugar-comum, a banalidade, o estereótipo mil vezes repetido, tudo isto tem sua utilidade dentro da retórica criativa. O segredo é saber usá-los com parcimônia e discernimento. O que é um clichê? Em geral, é uma maneira interessante de mostrar ou dizer algo, uma maneira que mostra ou diz com tal eficácia que todo mundo começa a utilizá-la. Daí a pouco, todo mundo já viu algo parecido. Daí a alguns anos, ninguém agüenta mais ver – isto é uma figura de linguagem, porque estudos científicos já demonstraram que o público agüenta, sim, rever uma coisa um milhão de vezes, desde que haja alguém disposto a mostrá-la um milhão de vezes.

Vou dar um exemplo banal. O filme começa com a luz se acendendo na sala de um apartamento, onde entra uma mulher jovem, vestida de executiva. Ela joga a bolsa sobre o sofá, liga a secretária eletrônica, e sai por uma porta; quando começamos a ouvir os recados ela retorna, mastigando uma maçã; senta no sofá joga os sapatos para longe... Pronto, está dito tudo. É uma jovem independente, mora sozinha, trabalha pra caramba, mal tem tempo de comer... Houve um dia um roteirista que, incumbido de apresentar rapidamente esta personagem bolou esta ceninha. Que foi copiada alguns milhares de vezes desde então.

Já viram um bêbado no cinema brasileiro? Ele vem sempre cambaleando pela rua afora, bebendo na boca da garrafa. Olhe, eu nunca vi na vida real um bêbado bebendo da boca da garrafa, e olha que nestas cinco décadas eu já passei mais tempo dentro de bares do que dentro de bibliotecas. Mas não importa. Mostrar o cara bebendo na garrafa tem mais ênfase do que mostrar num copo. A função do clichê é dizer algo numa fração de segundo, e nessa fração de segundo ficou dito: esse sujeito está bêbado às quedas.

A função do clichê é passar informações rápidas sobre detalhes secundários para poder avançar a história e falar de coisas mais importantes. Para que essa informação seja passada rapidamente, a imagem tem que ser clara, direta inequívoca: esse sujeito está bêbado, aquela moça mora sozinha e trabalha muito. O clichê se justifica como um atalho na descrição ou na exposição, para conduzir a narrativa ao que realmente importa, ao que de fato interessa. O problema é quando os clichês se sucedem, os lugares-comuns vêm um atrás do outro, e só levam a novos lugares-comuns e novos clichês. Aí percebemos que o autor não tem muita coisa a dizer, está simplesmente repetindo coisas que já viu e que aprendeu a fazer, mas que em si não dizem muito – é como aqueles músicos que ficam a tarde inteiro “praticando escalas”, tocando dó-ré-mi-fá-sol-fá-mi-ré-dó, para ficar com os dedos mais ágeis, mas a música em si nada diz, não desperta emoção estética alguma.