quarta-feira, 21 de agosto de 2024

5094) Um poema de Emily Dickinson (21.8.2024)



(Emily Dickinson) 


Um poema de Emily Dickinson (1830-1886)
 
“Esperança” – um ser de plumas
que nos pousa na alma,
e canta uma canção sem versos
e nunca se acalma. 
 
Soa mais doce quando há temporal;
e é forte a tempestade
capaz de calar tal passarinho
que aquece a humanidade. 
 
Já ouvi seu canto nas terras mais geladas
e no oceano, entre o trovão;
e nunca, mesmo à morte, me pediu
uma migalha de pão. 
 
“Hope” is the thing with feathers -
That perches in the soul -
And sings the tune without the words -
And never stops - at all -
 
And sweetest - in the Gale - is heard -
And sore must be the storm -
That could abash the little Bird
That kept so many warm -
 
I’ve heard it in the chillest land -
And on the strangest Sea -
Yet - never - in Extremity,
It asked a crumb - of me.
 
*****
 
Emily Dickinson usava com frequência em seus poemas o formato que em inglês de chama de common metre (ou “common measure”), o “metro (ou métrica) comum”, algo tão impregnado na poesia em língua inglesa quanto a redondilha em nosso idioma. 
 
O common metre consiste basicamente numa estrofe de 4 linhas, respectivamente com 8, 6, 8 e 6 sílabas. É uma métrica muito presente, por exemplos, nos hinos religiosos – o exemplo sempre citado nos manuais é “Amazing Grace”. 
 
Amazing grace, how sweet the sound
that saved a wretched like me…
I once was lost, but now I’m found,
Was blind, but now I see…
 
Aqui, uma palhinha desse hino americaníssimo, na voz de Elvis Presley:
https://www.youtube.com/watch?v=AEgG63MCa0I
 
Hinos religiosos eram uma parte importante da vida de Emily Dickinson, uma mulher tímida, introspectiva, de vida espiritual muito intensa, e uma poesia que não se parece com a poesia de ninguém, antes ou depois dela. 
 
A Enciclopédia Britânica Online (https://www.britannica.com/art/common-metre) assim comenta esse verso: 
 
Common metre, a metre used in English ballads that is equivalent to ballad metre, though ballad metre is often less regular and more conversational than common metre. Whereas ballad metre usually has a variable number of unaccented syllables, common metre consists of regular iambic lines with an equal number of stressed and unstressed syllables. 
 
O que este trecho diz, basicamente, é que tanto o common metre quanto a balada usam um esquema de sílabas e de rimas praticamente igual, mas “a métrica da balada é menos regular e mais conversacional, mais coloquial, do que o common metre”. Este, por sua vez, repousa de maneira muito mais obrigatória no número e na posição das sílabas acentuadas. 
 
Cabe então observar esta distinção entre os dois estilos, do ponto de vista métrico. É uma cadência muito dependente da música – o hino religioso versus a canção narrativa, no caso da balada. A impressão que tenho é de uma certa rigidez métrica no common metre e uma flexibilidade maior na balada. Talvez porque o primeiro se destina ao canto coletivo, uníssono, geralmente durante um culto; e a balada seja o canto solo de um narrador, com mais autonomia para cadenciar acentuação, andamento, etc. 
 
“Métrica”, a meu ver, é um conceito capaz de acomodar sem conflito estas duas modalidades de ritmo (porque a métrica é basicamente um ritmo sonoro, embora sirva também como referência visual no caso do poema impresso). De um lado, um ritmo mais rígido, mais obrigatório, mais previsível, com sílabas fracas e fortes sempre em posições previamente estabelecidas; e de outro lado um ritmo mais fluido, solto, maleável, que o tempo inteiro tem em mente aquela forma estabelecida, mas sente-se livre para manejá-la com um certo jogo de cintura, afastando-se dela mas não muito, e a todo instante voltando a ela para reafirmá-la. 
 
São duas maneiras de metrificar, ambas corretas e legítimas. 



(João Cabral de Nelo Neto)

 
No Brasil, vemos algo assim, curiosamente, na obra de João Cabral de Melo Neto. Cabral é universalmente considerado o poeta do rigor, da exatidão, da verbalização precisa, da consciência permanente das estruturas visuais e sonoras com que está trabalhando. Ao mesmo tempo, compensa este rigor com o uso franco e livre da inexatidão, da imprecisão. 
 
Cabral usa largamente a rima toante, ou inexata, e o faz ao modo do Romanceiro Ibérico, misturando-a à rima consoante ou exata (que exige equivalência de sons a partir da vogal da sílaba tônica). 
 
É na métrica, contudo, que ele se movimenta com mais liberdade ainda, e não são poucos os seus poemas em que a redondilha maior (verso de sete sílabas) flutua ao sabor da leitura, encolhendo-se em seis sílabas, dilatando-se para oito e até nove, mas sempre voltando ao centro, sem nunca se afastar demais numa ou noutra direção. 
 
A contagem da métrica de um verso é sempre uma operação subjetiva. Praticamente todo verso pode ter sua cadência modificada pela voz interna do leitor, através de elisões, hiatos, ditongos, diferentes encontros de vogais e semivogais, um vasto repertório de indicações escritas que cada leitor “sonoriza” a seu modo. 
 
Na poesia de João Cabral de Melo Neto, há poemas onde o verso de sete sílabas é o modelo predominante, mas a todo instante encontramos outros que admitem apenas uma leitura de seis ou de oito sílabas, e não há artifício recitativo que os encaixe em sete. Cabral não trata a cadência como um “leito de Procusto”a que os versos tenham que se adaptar a qualquer preço; para ele, aquela medida é um norte, um referencial, um valor rítmico principal que precisa ser observado mas admite uma certa flutuação, um certo suingue. O ritmo poético é uma forma de dança, mas nem sempre busca uma precisão com a das bailarinas de Báli – pode hospedar também a relativa liberdade de um samba sincopado, ou de um frevo que quebra, retarda e solta a melodia sem perder o andamento. 



(Augusto de Campos)


Voltando, agora, à tradução poética: 
 
Perfeccionistas como Augusto de Campos se dedicam a produzir, em nossa língua, uma versão quase isomórfica de um poema estrangeiro, fazendo um malabarismo estonteante com todas as variáveis envolvidas: formato de estrofe, esquema de rimas, métrica dos versos (uniforme ou variada), rigor na prosódia obedecendo às acentuações rítmicas do original... e mesmo com esta grade de restrições conseguem reproduzir também, com sucesso, as idéias (a “logopéia”), as imagens visuais (a “fanopéia”), as metáforas e os símbolos do original, além de achar correspondência para o seu “tom” emocional, o seu léxico de época (quando é o caso), suas alusões culturais e históricas, etc.  Não é pouco! 
 
Esta é uma opção tradutória exigente, rigorosa, que tenta resgatar a “melopéia” original do poema, seu arcabouço de sons, de ecos e assonâncias, sua estrutura auditiva. Vejo essa opção como uma reação a um estilo “conteudístico” de traduzir, no qual o importante era reproduzir “o que estava sendo dito”, sem preocupação maior com os aspectos sonoros. 
 
É possível, em muitos casos, tentar conciliar estes dois lados. Num poema de métrica inflexível, um decassílabo, por exemplo, pode-se permitir uma certa liberdade de movimentos, para que o tradutor, encontrando uma correspondência feliz com o original, não a jogue na cesta do lixo apenas porque o verso resultante chega a onze ou doze. 
 
Uma certa liberdade quanto à rima – usar rimas toantes aqui e ali, mesmo que o original se limite a rimas exatas. Isto pode parecer preguiça ou desatenção, mas muitas vezes esse recurso, sem abrir mão da rima por completo, expande o glossário acessível ao tradutor, e pode resultar numa versão com ganhos significativos em outras dimensões do poema. 
 


 
(Cynthia Nixon como Emily Dickinson, no filme de Terence Davies “A Quiet Passion”)