terça-feira, 30 de abril de 2024

5057) A arte de suportar a dor (30.4.2024)




O romance Duna (1965), de Frank Herbert, construiu em torno de si um culto de leitores ao longo das sequências ao livro inicial: Dune Messiah (1969), Children of Dune (1976), God Emperor of Dune (1981), Heretics of Dune (1984) e Chapterhouse Dune (1985). 
 
Não cheguei a ler nenhum destes; o único outro livro do autor que li foi The Heaven Makers (1968), uma curiosa experiência em que nosso mundo é manipulado por seres mais poderosos, que influem em nosso comportamento. 
 
Minha primeira leitura de Duna (1965) foi na sua primeira edição brasileira, com tradução de Jorge Luiz Calife, pela Editora Nova Fronteira, em 1984. 
 
Nesse livro, um episódio logo no início me chamou a atenção. É quando o protagonista Paul Atreides é levado por sua mãe, Lady Jessica, para fazer um teste junto à Reverenda Madre da ordem das Bene Gesserit, as “feiticeiras”, a que a mãe pertence.  E a Madre submete o rapaz a um teste de resistência à dor. 
 
Eis a narração (na edição da Ed. Aleph, 2017, trad. Maria do Carmo Zanini): 
 
– Está vendo isto? – ela perguntou. 
Das pregas de suas vestes ela retirou um cubo de metal verde com cerca de quinze centímetros de lado. Ela o girou, e Paul viu que um dos lados do cubo estava aberto – era negro e estranhamente assustador. A luz não penetrava naquele negror escancarado. 
– Insira a mão direita na caixa – ela disse. 
O medo tomou Paul de assalto. Ele começou a recuar, mas a velha disse: 
– É assim que obedece a sua mãe? 
Ele fitou os olhos pássaro-brilhantes. 
(...)
– Seguro contra seu pescoço o gom-jabbar – ela disse. – O gom-jabbar, o inimigo despótico. É uma agulha com uma gota de veneno na ponta. A-ah! Não se afaste, ou então provará o veneno. (...) Agora, eis como será o resto: se remover a mão da caixa, você morrerá. Essa é a única regra. Mantenha a mão dentro da caixa e você viverá. Retire-a e morrerá.
(págs. 24-25)
 
 
Aos poucos, a mão direita dele, enfiada na caixa, começa a sentir um formigamento, e um calor cada vez maior. Ele recita mentalmente a Litania Contra o Medo, que a mãe lhe ensinou: 
 
“Não terei medo. O medo mata a mente. O medo é a pequena morte que leva à aniquilação total. Enfrentarei meu medo. Permitirei que passe por cima e através de mim. E, quando tiver passado, voltarei o olho interior para ver seu rastro. Onde o medo não estiver mais, nada haverá. Somente eu restarei.” 
 
O problema é que a temperatura no interior da caixa se torna insuportável. 
 
Paul cerrou o punho da mão esquerda quando a sensação de ardência na outra mão aumentou. Ela crescia aos poucos: calor, e mais calor... e mais calor. Sentiu as unhas da mão livre perfurarem-lhe a palma. (...) A dor latejante subiu-lhe pelo braço. O suor brotou de sua testa. Cada fibra de seu corpo gritava para que ele removesse a mão daquele fosso ardente... mas... o gom-jabbar. (...) Em sua mente ele sentiu a pele da mão torturada encaracolar e enegrecer, e a carne crestada cair até restarem somente ossos carbonizados. 
E então cessou! 
Como se tivessem desligado um interruptor, a dor cessou. 
(...) Ele tirou a mão da caixa e observou-a, atônito. Nenhuma marca.  Nenhum sinal de agonia na pele. Ergueu a mão, girou-a, flexionou os dedos. 
– Dor por indução nervosa – ela explicou. – Não podemos sair por aí mutilando possíveis seres humanos. 
(pág. 26-27)
 
É a primeira grande cena do livro e do filme, e estabelece com rapidez o jogo de poder entre os personagens, ao mostrar a primeira prova-de-fogo a que o herói se submete, e da qual emerge abalado, mas vivo, e com honra. 



 
“Dor por indução nervosa” é uma dessas explicações casuais, mas verossímeis, que tanto agilizam a ficção científica. Não é preciso gastar uma página e meia explicando o funcionamento do “cubo verde”. O verdadeiro funcionamento que nos interessa ali é no desafio psicológico entre a mulher que representa a Sabedoria dos Antigos e o rapaz que talvez venha a se tornar o Messias – e precisa ser testado. 
 
E o teste é plausível. Tão plausível que fiquei com essa cena remoendo na memória durante dias, até que me veio uma lembrança súbita dos meus tempos escolares. Nessa época, eu morava no Catete, e dei um pulo à Biblioteca Popular da Glória (perto de onde morou Pedro Nava). Logo me vi sentado numa mesa, segurando um exemplar de Ubirajara (1874) de José de Alencar. 




No capítulo 6, “O combate nupcial”, o herói, que nesta cena assume o nome fictício de “Jurandir”, está concorrendo ao amor de uma donzela, Araci, e os pajés da tribo lhe designam algumas provas para mostrar que é um guerreiro de valor. 
 
Quando voltou o silêncio, Ogib, o grande pajé dos tocantins, estava em pé no meio do campo. Junto dele uma das velhas mães dos guerreiros segurava o camucim da constância, que tinha o bojo pintado de vermelho. 
O pajé disse: 
—Não basta que o guerreiro seja forte e valente, para merecer a esposa. É preciso que tenha a constância do varão, e não se perturbe com o sofrimento. É preciso que ele tenha a paciência do tatu, e suporte sereno as mortificações das mulheres e as importunações das crianças. 
“O guerreiro que não tem constância e paciência, depressa gasta suas forças. O rio que se derrama pela várzea, nunca verá suas margens cobertas de grandes florestas. (...) Se queres merecer a filha de Itaquê, mostra, Jurandir, que és varão ainda maior do que o famoso guerreiro que todos admiram. 
O grande pajé levantou o tampo do camucim, e descobriu uma abertura, bastante para caber o punho do mais robusto guerreiro. 
Jurandir meteu a mão no vaso. O semblante sempre grave do guerreiro cobriu-se de um sorriso doce como a luz da alvorada; e seus olhos, mais contentes que dois saís, pousaram no rosto de Arací. 
O camucim da constância continha um formigueiro de saúvas, que o pajé havia fechado ali na última lua. Açuladas pela fome de tantos dias, as formigas vorazes se prepararam para dilacerar a primeira vitima que lhes caísse nas garras. 
A dentada da saúva, que anda solta no campo, dói como uma brasa; quando são muitas e com fome, queimam como a fogueira. 
Todas as vistas se fitaram no semblante do guerreiro, para espreitar-lhe o minimo gesto de sofrimento. 
Mas Jurandir sorria; e seus lábios ternos soltaram o canto do amor. De propósito o guerreiro adoçou a voz, para não parecer que disfarçava o gemido com o rumor do grito guerreiro. 
Assim cantou ele: 
– A dor é que fortalece o varão, assim como o fogo é que enrija o tronco da craúba, da qual o guerreiro fabrica o arco e o tacape. 
“A jussara tem setas agudas: mas Arací, quando atravessa a floresta, colhe o coco de mel, embora a palmeira lhe espinhe a mão.
“O ferrão da saúva dói mais do que o espinho da jussara; mas Jurandir acha o mel dos lábios de Arací mais doce do que o coco da palmeira. (...)
 
Como convém ao típico romance indigenista alencarino, segue-se um longo trecho de prosa poética em que “Jurandir”, enquanto as saúvas lhe devoram a mão, tece loas à beleza e à coragem de sua amada. 
 
Foi preciso quebrar o camucim para que o guerreiro pudesse retirar a mão, de inflamada que ficara. 
O grande pajé esfregou, na pele vermelha, o suco de uma erva dele conhecida; e logo desapareceu a inchação. 

 

 

(José de Alencar, 1829-1877 
 Frank Herbert, 1920-1986)

 
A coincidência entre estes dois testes tem semelhanças e divergências interessantes. No romance de ficção científica, a Ciência produz uma dor virtual sem que haja dano físico. Na narrativa romântica de Alencar, a dor e o dano são reais, mas toda a composição da cena, inclusive o comprido monólogo poético do indígena, traz para ela uma aura de artificialidade que o romance de Herbert consegue evitar, usando uma linguagem tensa, objetiva. 
 
A própria “Litania do Medo” que Paul recita para si não tem intenção de beleza poética, é um exercício de focalização do pensamento. 
 
Durante muitos anos catei inutilmente algum outro exemplo da prova da Mão Torturada: em velhas coletâneas de folclore, de contos populares, de narrativas mitológicas. Provavelmente existem. Acho improvável (mas não impossível) que Frank Herbert tenha lido José de Alencar. O mais lógico é que ambos lessem narrativas indígenas ou da mitologia, narrativas orais que ainda devem circular por aí. E que alguém deve estar desencavando, inspirado por esse retorno cinematográfico da saga de Paul Atreides, o Lisan-al-Gaib, Usul, Muad-Dib, o Mahdi – o Profeta de Duna. 
 
 

 








sábado, 27 de abril de 2024

5056) Os filmes "Duna" (27.4.2024)

 



“O futuro será medieval”, parece dizer uma parte significativa da ficção científica ao longo dos anos.

 

Um dos melhores exemplos é o romance Duna (1965) de Frank Herbert, que depois de algumas tentativas que não deram muito certo (Alejandro Jodorowski, David Lynch) recebeu agora uma transposição segura e bem realizada (em dois filmes, cada um com cerca de 2 horas e 20 minutos), mesmo não sendo especialmente brilhante, de Denis Villeneuve.

 

Os dois filmes, feitos com intervalo de cerca de três anos, são na verdade um filme só, tal a unidade e continuidade entre eles.

 

Villeneuve é um cineasta que sabe manejar as grandes estruturas, os grandes orçamentos. Fui catar informações sobre os orçamentos. O primeiro filme custou 150 milhões, arrecadou 400 milhões e os produtores, mesmo otimistas, diziam que “ainda falta muito para se pagar...”  Como afirmam alguns críticos, algumas cláusulas-pétreas da Aritmética não valem na Economia. É uma espécie de Aritmética não-euclidiana, com perdão do barbarismo.

 

Problema deles. A ficção científica medieval é aquele gênero onde são bem vindos os públicos da FC hard, da FC soft, da Fantasia Heróica, da Space Opera... Como em festa infantil, cada convidado leva algum brinde para casa.



 
(Timothée Chalamet, como “Paul Muad-Dib”, e Austin Butler, como “Feyd Rautha”)


Existem fragatas interplanetárias gigantescas e pequenas naves ornitópteras que batem asas; ao lado disto, temos lutas de espadas e escudos, e lutas corpo a corpo em arenas ao estilo romano. Não há computadores, mas existem os Mentat, cérebros capazes de calcular tudo. Monstros, pistolas de raios, conversas telepáticas, estados alterados de consciência capazes de vislumbrar as ramificações do tempo imediato.

 

Isto dá à série Duna, desde os romances iniciados em 1965, uma mistura de Star Trek com O Senhor dos Anéis, e é uma das razões do culto que produziu desde então. Correndo o risco de mais um trocadilho infame, a tendência é o gênero “Cloak and Dagger” (“capa e espada”) virar “Glock and Dagger”.

 

Duna transcorre num futuro distante: Ano 10.191 da Era dos voos inter-estelares, que começaram por volta do ano 13.000 de nossa época. (Colhi estes dados no Internet Movie DataBase.) Esses datas produzem ao mesmo tempo a sensação de um salto vertiginoso no futuro, e a presença de um enorme passado acumulado. Porque o futuro não é feito apenas de novidades, mas de permanências. E de formas que retornam ciclicamente ao longo da História. A literatura de FC vem reiterando, há mais de um século, que a História humana não avança numa trajetória retilínea, ascendente, uniforme. A História até avança, mas o faz aos zigue-zagues, aos soluços, aos espasmos.




Um dos pontos fortes do romance de Frank Herbert (estou me referindo aqui ao primeiro livro da série – não li os demais) é a sensação do peso de um Passado, da presença de uma cultura milenar. Há na prosa narrativa dele um acúmulo de sabedoria oral, transmitida em forma de provérbios, mandamentos, pequenas fábulas e apólogos, ensinamentos cujo sabor antigo e oriental casa bem com a ambientação social da narrativa com seu cenário que lembra o Oriente Médio e a África.

 

“Duna” é um planeta árido e rude onde desembarca uma civilização poderosamente tecnológica. As armas e a tecnologia (p. ex., as roupas que preservam a água corporal) contrastam com o fundamentalismo religioso e com a própria estrutura política. Não é exatamente a “galáxia totalmente humana” proposta por Isaac Asimov a partir da série “Fundação”: mas é a Galáxia imperialista, e ali está o medievalismo através do conceito de Império, de famílias nobres, de feudos, de casamentos para alianças políticas, etc. 



Ou seja: o futuro terá tecnologia avançadíssima, mas o pensamento individual e coletivo será medieval. Isto “dá um gás” à trama, porque temos direito a intrigas palacianas, traições, espionagem, disputas pelo poder dentro do mesmo grupo, etc.  No livro, tudo isto vem unido por uma argamassa de princípios, mandamentos, fábulas, provérbios, reflexões... Os personagens de Duna pensam com intensidade, refletem íntimamente sobre tudo que está lhes acontecendo. E nos filmes a maior parte disto está ausente.

 

Duna era um romance de Fantasia Heróica com guerreiros Sardaukar no lugar de Orcs. E era uma space-opera de aventura ecológica, encharcados dessa sabedoria sentenciosa, com uma frase antiga para definir ou esclarecer qualquer situação. Uma convivência entre o épico aventureiro e a sabedoria dos Antigos, algo que encontramos também (lá venho eu com meus exemplos surrados de sempre!) no Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien e no Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa.

 



(Rebecca Ferguson, como “Lady Jessica”)


O filme abre mão desse lado sentencioso, o que por um lado lhe dá agilidade narrativa. Tudo se concentra na intriga política e na revolta social, mas ao se focalizar assim ele perde a profundidade de significado do romance original. (Sem deixar de ser um bom filme, reconheço.)

 

Isto o cinema não consegue transpor da literatura: a capacidade de mostrar, como parte espontânea e essencial do tecido narrativo, o que os personagens estão pensando. O cinema precisa apelar para diálogo ou para voz em off. Paciência.

 

O livro de Frank Herbert é um épico sobre um choque de civilizações e de pensamentos sobre o mundo, choque que aflora numa disputa econômica (pela especiaria) equacionada pela política, e mal-e-mal resolvida pela guerra. O filme-duplo de Villeneuve traz esse choque de maneira envolvente e tecnicamente impecável (pelo menos aos meus olhos leigos), mas não produz, como o livro produzia, a impressão de milênios de cultura e de reflexão por trás daqueles povos em guerra. De uma toda uma filosofia complexa, vemos brotar apenas o fervor fundamentalista, e é pouco.




Villeneuve fez uma opção deliberada de reduzir os diálogos e as “filosofias” e se concentrar no enredo e na ação. Ainda assim, trechos característicos da prosa de Herbert aparecem:

 

“Disse que o mistério da vida não era um problema a ser resolvido, e sim uma realidade a ser vivida. Daí citei a Primeira Lei dos Mentat: “Não se pode entender um processo interrompendo-o. O entendimento precisa acompanhar o fluxo do processo, tem de se juntar a ele e fluir com ele.”

(Duna, ed. Aleph, trad. Maria do Carmo Zanini, p. 54)

 



Um dos aspectos mais interessantes do filme é o povo Fremen, que sempre vi como uma mistura entre os sertanejos de Canudos, os povos do deserto de Lawrence da Arábia e os samurais japoneses. Povos que parecem impassíveis ou fanáticos, mas na verdade são herdeiros conscientes de uma cultura sedimentada há milênios. Seu comportamento obedece a uma espécie de fatalismo em que os desejos individuais pesam pouco. Como diz Karen Blixen, ao descrever a atitude do povo guerreiro dos massai:

 

As forças que haviam edificado [essa atitude] construíram também grandes prédios de pedra, mas estes já haviam retornado ao pó fazia muito tempo.

(Karen Blixen, A Fazenda Africana, Civilização Brasileira, trad. Per Johns)

 

As construções megalíticas passam. Já a atitude guerreira e estóica... esta fica. E Denis Villeneuve entende isso quando recorre a uma arquitetura brutalista, implacável, de edifícios com o peso arrogante de quem pretende durar para sempre, e máquinas espantosas que se locomovem na areia do deserto por entre operários ou soldados liliputianos. Os zigurates ardem, as máquinas explodem e desmoronam, e não se vê nenhuma reação nos olhos azuis de quem as destrói. Os olhos permanecerão.



(Zendaya, como “Chani”)






quarta-feira, 24 de abril de 2024

5055) Os prêmios literários (24.4.2024)




Os prêmios literários funcionam de maneira semelhante aos prêmios cinematográficos, musicais, teatrais, etc. Um grupo de jurados se reúne e escolhe as melhores obras, geralmente as obras lançadas num período específico (o ano tal, etc.). Os jurados mudam a cada ano. A obra que foi premiada agora, pelo grupo X, talvez não o fosse no ano passado, ou no ano que vem, avaliada por outras pessoas. 
 
Comento às vezes que “ser indicado é equivalente a ganhar”. Não é mera diplomacia. Se cinco obras são indicadas, ou dez, isto quer dizer que o júri poderá dar o “Grande Prêmio” a qualquer uma delas, pois chegando a este ponto são igualmente merecedoras. Mas... vale aqui a regra de que “todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”. E o Oscar vai para Fulano de Tal. 
 
No interior desta situação básica, há muitas variantes. 
 
Por exemplo: um prêmio literário que se destina a obras publicadas é diferente de um prêmio concedido num concurso para obras inéditas, inscritas sob pseudônimo. São processos de natureza muito diferente. 
 
No primeiro caso, estão sendo julgadas obras conhecidas por todos. O nome do autor(a) pode pesar na escolha. 
 
No segundo caso, de obras que concorrem sob anonimato, julga-se o texto pelo texto – embora muitas vezes seja possível saber quem o escreveu. (Autores que concorrem sob pseudônimo têm variadas maneiras, explícitas ou indiretas, de indicar aos jurados qual foi o livro que inscreveram. Sempre existe alguém, com ou sem desconfiômetro algum, que tenta exercer este tipo de pressão.) 




Os prêmios de ficção científica dos EUA são atribuídos a textos de diferentes extensão: os critérios geralmente são “Melhor Romance” (“Best Novel”), “Melhor Novela” (“Best Novella”), “Melhor Noveleta” (“Best Novelette”), “Melhor Conto” (“Best Short Story”). 
 
Essa subdivisão é problemática, sim, do ponto de vista literário, mas os organizadores cravam um critério numérico que todo mundo aceita, e isto ajuda a colocar cada texto em sua gavetinha. Na última vez que chequei, os parâmetros estavam assim: 
 
Conto: até 7.500 palavras.
Noveleta: entre 7.500 e 17.500 palavras.
Novela: entre 17.500 e 40.000 palavras.
Romance: de 40.000 palavras em diante.
 
(Prêmios cinematográficos adotam uma regra parecida, fazendo a divisão entre curta, média e longa metragem.) 
 
A dificuldade aumenta quando partimos para conceitos mais amplos, porque “Melhor Conto de FC” e “Melhor Conto de Fantasia” acabam sendo questionáveis. Há incontáveis textos que, a depender de uma interpretação subjetiva, podem ser vinculados a um gênero ou ao outro. É da natureza da literatura, e muitos autores fazem de propósito – não para aperrear os júris, mas para ensinar ao leitor que um mesmo texto pode ser lido de várias maneiras.  
 
(Digressão: Aliás, a discussão “Isto é fantasia ou ficção científica?” é uma das areias-movediças conceituais que espreitam o viajante incauto nessa floresta secular, sombria. Quem pisa nesse terreno dificilmente volta para a discussão sobre o livro propriamente dito.) 
 
Saindo da FC e olhando o caso dos prêmios em geral, segmentados por gênero literário: aparentemente é simples dividi-los em “Prosa”, “Poesia”, “Ensaio”, “Não Ficção”, “Biografia”, etc. Do ponto de vista literário, esses critérios nunca são vistos do mesmo modo. Sempre há um livro renitente que pode ser visto como prosa ou como poesia, como ficção ou como não ficção, e assim por diante. Ainda bem. 
 
Devemos erguer um brinde às Exceções, que nos mostram o quanto de arbitrário e circunstancial existe na aparente objetividade das Regras. 
 
Já vi, mais de uma vez, algum autor ver seu nome na lista de indicações a um prêmio e dizer baixinho algo como (estou parafraseando!): “Mas meu livro não é poesia! É uma meditação, um ensaio fragmentado, constelar, sobre as virtualidades do existir, num século de estilhaçamento de conceitos!...”.  E eu aconselho: “Rapaz, se tu tás dentro do trem, pouco importa o vagão!”.  





(Jonathan Lethem)


Dentro da própria ficção científica existe uma discussão (puxada por Jonathan Lethem) sobre quais teriam sido os caminhos do gênero se o Prêmio Nebula de 1973 tivesse sido concedido não a Encontro com Rama de Arthur C. Clarke, como de fato aconteceu, mas a O Arco-Íris da Gravidade de Thomas Pynchon, que também estava entre os indicados. 
 
Mais detalhes aqui:
https://hipsterbookclub.livejournal.com/1147850.html
 
Aproveito para lembrar que até Jorge Luis Borges já foi indicado para este prêmio de FC, e fico imaginando sua reação sarcástica se tivesse ganho. (Foi com “Utopia de um Homem Cansado”, em 1976; Borges perdeu para “Catch that Zeppelin!” de Fritz Leiber, um grande escritor hoje esquecido.) 
 
A existência de obras ambíguas dessa natureza produziu centauros conceituais como o termo “literary science fiction”, contraposto a “genre science fiction”, ambos já fazendo parte do vocabulário resenhístico de revistas como a Locus
 
Existem muitos jovens (=pessoas mais novas do que eu) em busca de um tema para tese ou dissertação acadêmica. Se eu tivesse mais anos pela frente eu me dedicaria a estudar esse curioso fenômeno dos gêneros literários, que são cistos populares dentro da literatura “propriamente dita” (há um esnobismo deliberado nesta expressão). 
 
O texto impresso, pós-Gutenberg, ao mesmo tempo popularizou o livro (onde havia 100 cópias manuscritas de uma obra passou a haver 100.000 impressas) e o elitizou (o livro impresso também não é acessível a todo mundo –  somente a quem é alfabetizado e tem algum dinheiro). 
 
Os prêmios literários são apenas uma entre muitas instâncias em que existe a literatura literária (uma espécie de Sala Vip para quem preenche uma série de requisitos) e a literatura de gênero, ou popular, ou popularesca, ou de massas, ou de entretenimento. A primeira delas inveja as vertiginosas vendagens da segunda. A segunda inveja a visibilidade, a respeitabilidade e as honrarias concedidas à primeira. 
 
Um prêmio é importante? Sem dúvida. Há prêmios em dinheiro que podem equilibrar as finanças de um autor para o resto da vida. (Este, claro, é o ponto de vista de um septuagenário.)
 
Há prêmios onde a remuneração é modesta, ou simbólica; mas a repercussão é grande, junto à imprensa e ao público. Um prêmio pode fazer decolar uma obra de valor que até então estava na obscuridade. Foi o que aconteceu com Jorge Luís Borges ao ganhar na Europa o Prêmio Formentor, aos 61 anos. Do dia para a noite o mundo inteiro tomou conhecimento dos contos que ele tinha escrito vinte anos atrás. 
 
Cada prêmio tem seu viés. Voltando ao território da ficção científica, o Prêmio Hugo é votado pelos fãs, pelos leitores, no contexto da Convenção Mundial de FC que se realiza todo ano. É um prêmio de popularidade, por assim dizer. O Prêmio Nebula é votado pelos membros da SFFWA, entidade que reúne escritores, editores, críticos, etc., nos campos da FC e da fantasia; é um prêmio mais exigente em termos literários (em tese, pelo menos). 
 
Eu tenho uma simpatia especial pelo Prêmio Philip K. Dick, concedido anualmente ao melhor livro inédito publicado em formato de bolso (“paperback”). Dick foi um grande escritor que publicou, nesse formato “de pobre”, livros que hoje são clássicos da FC, re-publicados em edições de luxo, caríssimas. Quem primeiro reconheceu seu talento, e apostou nele, foi o livro de bolso. 
 






domingo, 21 de abril de 2024

5054) A arte do spoiler (21.4.2024)



 
Um spoiler, quando falamos de filmes, livros, etc., é a revelação de uma informação antes da hora, estragando o prazer do mistério ou do suspense. 
 
A expressão mais próxima em português seria “desmancha-prazeres”, cujo inconveniente é ser mais longa e ter uma latitude maior de significado. Um desmancha-prazeres pode ser, por exemplo, uma pessoa que vai com a gente para uma festa, ou um passeio, e reclama o tempo todo. 
 
Procurei agora (e não achei) na Internet o meu exemplo de spoiler preferido, muitas vezes citado. Um antigo desenho do “Amigo da Onça”, de Péricles, em O Cruzeiro. Ele mostra o sádico personagem saindo de uma sessão de cinema e dizendo, enquanto passa pelos espectadores que entram na sala: “O assassino é o pai da moça... O assassino é o pai da moça...” 



(O "Amigo da Onça", de Péricles)
 

A história de mistério policial deve ser o gênero de narrativo que mais depende (ou que invariavelmente depende) do fato de uma informação crucial precisar ser ocultada ao leitor até o último capítulo, quando Sherlock Holmes ou Hercule Poirot reúne os suspeitos, explica a história toda e aponta o culpado. 
 
Mesmo assim, há inúmeras obras não-detetivescas que dependem de mistérios, dúvidas, incertezas. Histórias onde não sabemos ao certo o que aconteceu. Um fato remoto na infância de alguém. Um episódio de que todo mundo evita falar. A verdadeira identidade de uma pessoa. Às vezes, a própria identidade de quem está contando a história. 
 
No final, vem a revelação, mas o objetivo maior da narrativa não é a resposta em si, mas o longo período de incertezas e dúvidas, que é compartilhado pelo leitor, e que tem sua função dramática. 
 
Revelar o final antes da hora pode estragar a experiência de quem, na leitura, precisa justamente saborear todas as possibilidades, versões e hipóteses, antes de receber a resposta final. É um prazer específico que se extrai de alguns tipos de narrativa. 
 
Mas nem sempre o spoiler estraga o prazer da leitura. Muita gente até gosta. Uma curiosa pesquisa constatou que para muitas pessoas a informação tida como “desmancha-prazeres” as levava a gostar mais das histórias – desde que a revelação fizesse parte do texto, e não fosse uma “dica” dada por alguém, fora do livro. 
 
Aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2016/10/4168-o-suspense-e-o-spoiler-9102016.html



 
No útil websaite LitHub, um texto de Jonathan Russell Clark discute o que ele considera “o spoiler mais famoso de todos os tempos”, o prólogo de Shakespeare para a tragédia Romeu e Julieta. Nesse prólogo, em forma de soneto, a platéia é informada de que “um casal de desafortunados amantes tira a própria vida”. Clark considera que essa revelação, feita no instante mesmo em que as cortinas se abrem, é uma estratégia brilhante do autor. 
 
Primeiro, diz ele, porque nesta peça, mais do que em muitas outras, o final trágico é de cortar o coração, porque poderia tão facilmente ter sido evitado. Se uma desgraça tão catastrófica desabasse inesperadamente para a platéia, ela talvez reagisse mal; mas a peça já se abre dizendo como acaba, o que esvazia um pouco o impacto negativo. 
 
Por outro lado... isto não nos impede de torcer para que o casal fique junto, mesmo sabendo que eles não vão ficar. E quando o desfecho-mau acontece (diz Clark), não nos queixamos do Autor, que foi leal conosco, e sim de nós mesmos, da nossa esperança ingênua. E culpamos a injustiça do mundo – o que é (diz ele) o objetivo de toda a grande literatura. 



(Casino)
 

Existe também o falso spoiler preparado pela narrativa. No filme Casino (1985) de Martin Scorsese, Robert DeNiro faz um gangster que logo na primeira cena entra no carro, liga a ignição e o carro explode em chamas. Em seguida, o filme volta no tempo, em flash-back, para nos mostrar a razão do crime. Lá pelas tantas é que somos informados de que o bandido escapou da explosão. 
 
É um recurso usado tantas vezes que já estamos calejados. Um filme que começa com o protagonista sendo enterrado, fuzilado, enforcado, etc., já entrega de bandeja que aquilo não passa de uma encenação. O “nosso herói” certamente vai ressurgir vivinho da silva daí a pouco, e vai explicar o truque que usou para enganar seus perseguidores. 
 
Isto vale, contudo, para filmes mais leves, filmes de aventura, de entretenimento. Num filme de pretensões mais realistas, um fato crucial mostrado perto do início dificilmente será desmentido depois. 
 
O spoiler será, sempre, um desmancha-prazeres? Não necessariamente. Podemos ler várias vezes um livro onde há algum tipo de mistério esclarecido no final, alguma surpresa que nos pegou desprevenidos apenas na primeira vez, alguma reviravolta da narrativa que nos espantou mas não irá nos espantar na repetição da leitura. Por que? 
 
Para Clark, um spoiler sempre se refere a “o que acontece”, mas as grandes histórias dizem respeito ao “como acontece” e ao “por que acontece”.  E estes aspectos podem ser trabalhados pelo autor com tal riqueza de elementos que a releitura sempre trará novidades. Diz ele: 
 
“A alquimia das melhores histórias está em sua consistência: uma conexão de elementos mínimos, infinitesimalmente trançados entre si e com o amálgama que os une; está nas idas e vindas entre o que está acontecendo de fato, os motivos por que está acontecendo, e as razões que tornam tudo isto importante.” 


 
É por isto que mesmo os mistérios detetivescos cujo desfecho eu já conheço podem ser lidos sem susto. Já sei quem matou as vítimas em histórias como O Mistério da Laranja Chinesa de Ellery Queen, ou Madball de Fredric Brown, ou The Three Coffins de John Dickson Carr, ou O Assassinato de Roger Ackroyd de Agatha Christie. E daí? 
 
Essa revelação específica deixou de ser importante. No trajeto até ela, contudo, há uma série de pequenas revelações, pequenas conotações, detalhes secundários mas relevantes, que me motivam a ler de novo; e há o prazer de acompanhar a mestria com que o autor soube tecer tudo aquilo, e que é equivalente a escutar pela enésima vez uma sinfonia somente pelo prazer de ver como tantos efeitos diferentes foram amarrados num todo que faz sentido e que dá prazer. 
 
 
 
 





quinta-feira, 18 de abril de 2024

5053) Drummond: "Outubro 1930" (18.4.2024)




Entre os poemas do livro de estréia de Carlos Drummond (Alguma Poesia, 1930), este longo poema parece se destacar de todos os demais, e ao mesmo tempo permanecer invisível. Certamente estou “comendo mosca” estes anos todos, mas de tantas análises e críticas que já li sobre a poesia de Drummond lembro de pouquíssimas menções a “Outubro 1930”. 
 
É um poema um tanto longo, embora distante de ser um dos mais longos de Drummond. É um dos mais longos deste livro, contudo, e sua principal característica é a sua forma heterogênea, aparentemente desconjuntada. Uma estrutura quebrada, feita (propositalmente) de pedaços que parecem apenas se justapor uns aos outros, sem se encaixar com justeza. 



De propósito, é claro. O mês de outubro de 1930 foi o mês da famosa “Revolução de 30” que derrubou o governo de Washington Luís e levou Getúlio Vargas a passar 15 anos no poder. (Depois ele voltou, mas é outra história). A gota dágua, o fato desencadeador desse conflito militar foi o assassinato do “presidente” (governador) da Paraíba, João Pessoa, morto pelo seu desafeto João Dantas em 26 de julho. 
 
Estes fatos se articulam de maneira especial com a obra de Drummond, nesse tempo um poeta inédito de 28 anos (que ele completaria em 31 de outubro). 
 
Na “Cronologia” que figura em sua Obra Completa da Ed. Aguilar (1967), lê-se, no item referente a esse ano: 
 
Auxiliar de gabinete de Cristiano Machado, Secretário do Interior, ao irromper a Revolução de Outubro, que transforma aquela paragem burocrática em centro de operações militares; passa a oficial-de-gabinete, quando seu amigo Gustavo Capanema substitui Cristiano Machado. 
 
Drummond pegou em armas, no conflito? Certamente que não. O poema fala nas mortes, nos soldados, nas trocas de tiros, mas as imagens autobiográficas provavelmente são trechos assim: 
 
(...)
De 5 em 5 minutos um ciclista trazia ao Estado-Maior um feixe de telegramas contendo, comprimida, a trepidação dos setores. O radiotelegrafista ora triste ora alegre empunhava um papel que era a vitória ou a derrota. Nós descansávamos, jogados sobre poltronas, e abríamos para as notícias olhos que não viam. olhos que perguntavam. Às 3 da madrugada, pontualmente, recomeçava o tiroteio. 
 
É a rotina dos que, distantes das trincheiras, se encarregam das comunicações. Alguém já disse (nesse contexto bem século 20) que, na guerra, um telegrama na hora certa vale tanto quanto uma bala no lugar certo, e é verdade.  Drummond é o “funcionário deitado” a que ele próprio se refere; e seu poema, mesmo com as habituais ironias de jovem irreverente, tem o tom de quem está dentro dos acontecimentos, e não apenas observando-o de fora. 



(Recife, 1930)
 

Há um trecho especialmente real e tocante, um desses “flashes” que dispensam teorizações e mostram a crueza da guerra, como um Gif-animado em que vemos a mesma cena brutal, sem som, repetindo-se indefinidamente: 
 
Olha a negra, olha a negra,
a negra fugindo
com a trouxa de roupa,
olha a bala na negra,
olha a negra no chão
e o cadáver com os seios enormes, expostos, inúteis.
 
Morte gratuita, no meio da rua, que pelo menos a mim traz à lembrança uma cena famosa do cinema, a morte da personagem de Anna Magnani em Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini. 
 
Aqui, a cena:
https://www.youtube.com/watch?v=FNnSUpm7CgM
 
Além do estado de guerra, emerge do poema um sopro de alerta histórico e geográfico, a sensação de “um Brasil se fazendo”, um país sendo consertado na-marra por quem se impacientou com sua situação até há pouco. Surge aqui, talvez pela primeira vez, uma imagem recorrente nos primeiros livros de Drummond: a enumeração de nomes de lugares, nomes talvez exóticos, de localidades remotas, mas que se somam uns aos outros e pressionam o poeta, como que dizendo: “Nós também somos Brasil.” 
 
A esta hora no Recife,
em Guaxupé, Turvo, Jaguara,
Itararé,
Baixo Guandu,
Igarapava,
Chiador,
homens estão se matando
com as necessárias cautelas.  
 
São os nomes que chegam nos telegramas. A guerra civil torna-se uma forma curiosa de irmanação patriótica, em que o poeta sente-se confusamente unido às pessoas desses lugares, de alguns dos quais certamente nunca ouvira falar antes da chegada dos telegramas de campanha. 
 
O poema tem um registro irregular, onde a agulha salta da angústia para a ironia, da compaixão para o desinteresse, e se encerra com um sentimento arraigado no poeta, uma mistura de ceticismo e resignação: 
 
Deus vela o sono e o sonho dos brasileiros.
Mas eles acordam e brigam de novo.
 
Fiquei sabendo que este poema apareceu apenas a partir da 2ª. edição do livro, e só então sua presença se encaixou no meu entendimento, porque me parece (não tenho informações mais precisas) que Alguma Poesia teve sua primeira edição antes do conflito armado. A “Cronologia” da Aguilar registra assim: 
 
1930.  Publica Alguma Poesia (500 exemplares), sob o selo imaginário de Edições Pindorama, criado por Eduardo Frieiro. A edição é facilitada pela Imprensa Oficial do Estado, mediante desconto na folha de vencimentos do funcionário. Amigos oferecem-lhe um jantar comemorativo, em que é saudado por Milton Campos. 
 
Do ponto de vista da técnica, o mais interessante deste poema é que ele, sozinho, inaugura na obra de Drummond um formato fragmentado a que o poeta iria recorrer várias vezes no futuro. Não se trata apenas de um poema longo (Drummond gosta de poemas longos), mas de um poema heterogêneo, composto de partes que do ponto de vista formal têm pouca relação entre si. 
 
“Outubro 1930” mostra, alternadamente, estrofes em verso e trechos em prosa. O verso não obedece a métrica fixa, mas reitera em cada linha uma extensão regular – é verso com intenção de verso, para maior contraste com o trecho seguinte, uma série de frases em prosa que parecem querer rebentar a camisa-de-força do verso para comunicar de forma instantânea a urgência dos acontecimentos. 
 
Esse tipo de estrutura heterogênea, misturada, irregular, tem a ver com uma certa concepção do poema que podemos talvez chamar de “cubista”, lembrando o costume de artistas como Pablo Picasso ou Georges Braque de colar, sobre a pintura a óleo, fragmentos meio aleatórios de folhas de jornal, fotografias, papéis de embrulho, provas tipográficas...  


(Picasso, Garrafa de Vieux Marc, Copo, Violão e Jornal, 1913)

 
Era uma pintura invadida e interferida por fragmentos indisciplinados do mundo moderno, “ruídos” que irrompem no interior da estrutura pacífica, milenar, da pintura clássica. Aqui, dá-se o mesmo com a poesia, cuja estrutura é forçada a assimilar a prosa não-poética do mesmo jeito que a sociedade era forçada a assimilar a guerra civil. 
 
Drummond continuou, ao longo da vida, a explorar esses poemas longos em que se misturam, como em colagens cubistas, poesia metrificada, prosa, poesia livre, trechos de diálogo, transcrições de documentos reais ou fictícios... 

Há bons exemplos da riqueza de recursos desse método em poemas como “O voo sobre as igrejas” (Brejo das Almas), “Nosso tempo” e “América” (A Rosa do Povo), “Os bens e o sangue” (Claro Enigma), “A um hotel em demolição” (A Vida Passada a Limpo) e certamente muitos outros. 



 




segunda-feira, 15 de abril de 2024

5052) Papai está falando sozinho (15.4.2024)

 

Era uma turma alegre, estávamos conversando na mesa de um bar, cedinho da noite. De repente, um celular sobre a mesa acendeu e vibrou. Um dos meus amigos atendeu, foi até a porta em busca de melhor sinal. Voltou apressado, jogou na mesa duas ou três notas amassadas, sem nem olhar, como fazem os americanos nos filmes. “Já vai?”, perguntei. E ele, afastando-se, por cima do ombro: “Papai caiu.”
 
Na vida dos adultos jovens surge muitas vezes esse período que pode ser chamado “a Era de Dâmocles”. (Dâmocles era aquele grego que mandava botar uma espada pendurada sobre a cabeça dos convidados.)  A espada pode cair a qualquer instante. “Papai” leva uma queda, se machuca um pouco ou nem tanto, precisa ser levado não sei onde, recebe cuidados, curativos, admoestações. E tudo volta ao normal.
 
Até o dia em que noutro bar, noutra festa, noutra reunião de trabalho, brota a mensagem seguinte: “Papai caiu de novo”.
 
É a vida, não é mesmo? Porque uma coisa é cuidar de um bruguelo ou de uma pirraia de fraldas, que bambeia e desaba por cima da quina mais próxima, abre o bué, mas com meia hora de panacéias e carinhos nem se lembra do acontecido. E outra coisa é cuidar de um latagão ou de uma matrona cuja mente tem sempre metade da idade do corpo, e quer continuar a conviver com escadas, chuveiros, prateleiras de cima.
 
Existe outro momento, contudo, também digno de atenção, e este às vezes vem antes.
 
“Papai está falando sozinho.”
 
Eu já vivi isto, muita gente por aí deve ter vivido o mesmo. Muitíssimo frequente nos aposentados e nas pessoas que trabalham em casa. A gente passa no corredor e ouve vozes no quarto de dormir. Vozes no plural? Não, apenas uma, mas dirigindo-se a um suposto interlocutor.
 
– Mas quem diabo mexeu nesse armário... eu sempre deixo essa camisa pendurada do lado esquerdo, quem foi que botou lá na outra ponta?
 
A gente bota a cabeça na porta:
 
– Tudo bem aí?...
 
– Não tem nada bem. Toda vez que eu vou na padaria alguém entra no quarto e tira minha roupa do lugar.
 
Outras vezes o passante-no-corredor arrisca uma olhada e vê o sujeito sentado na escrivaninha, rabiscando apressadamente numas folhas de papel e murmurando coisas como:
 
– Mas é claro... perdi foi meu tempo... essa porra não podia dar certo nunca desse jeito.. tu é burro, meu camarada, tu é muito burro.
 
– Papai?... Tá falando com quem?
 
– Com o imbecil que lhe botou no mundo.
 
Este caso clínico tem um lado-reverso dos mais interessantes, porque existem (em igual proporção) mulheres que falam sozinhas, mas ninguém repara – porque em geral são as mamães, as donas de casa que passam o dia entregues a tarefas domésticas, arrumando, espanando, aspirando, dobrando, limpando, lavando, cozinhando... E falando em voz alta, em altos brados, como num filme italiano.
 
Essas tarefas exigem que ela seja quase onipresente, num segundo está à beira do fogão experimentando um caldo na pontinha de uma colher-de-pau, e dois segundos depois está limpando o banheiro, cuja descarga nem terminou de jorrar e ei-la forrando a cama de casal e entucando as beiras do lençol embaixo do colchão.
 
Como ela está ao mesmo tempo em todos os lugares, está sempre falando, e quem está na sala imagina que ela fala com quem está no terraço, quem está no terraço imagina que é com alguém no corredor, e por aí vai.
 
– Eu não sei de que adianta a pessoa ter meia dúzia de pessoas dentro de casa, porque são cinco pra desarrumar e uma escrava sozinha pra botar as coisas nos cantos... Custa nada botar de volta de onde tirou? Custa, porque esticar o braço é trabalhoso, e eu tenho que vir esticar o meu. A criatura come um pão, mas cadê que ajunta o farelo e joga fora? Não, eu tenho que largar o leite derramando e vir varrer o farelo dela. O outro termina o almoço e acha que faz um grande favor botando o prato na pia, mas não tem nem energia pra derramar no lixo a metade que não comeu...
 
– Mamãe?... Tá falando com quem?...
 
– Com as minhas vizinhas, as almas do Purgatório.
 
É um sintoma generalizado nas pessoas da terceira idade, e acho que aqui chegamos a um detalhe crucial. Por que os jovens não falam sozinhos, e os velhos sim? Creio que em parte é porque os jovens têm medo de serem vistos como doidos, incapazes, ou (mais modernamente) drogados.
 
Todo jovem cultiva a obsessão e o trauma da normalidade externa. Por dentro, o rapaz quer ser Sylvester Stallone ou Ney Matogrosso, não importa: por fora ele sabe que precisa se parecer com rapaz-de-propaganda-de-banco, porque se não vai acionar gatilhos. E a mocinha sente-se no fundo uma Salomé ou uma Rosa Luxemburgo, também não importa: tudo que se exige dela é que seja normal, e depois case.
 
Velhice é outra coisa. Quando um cara entra no terço final da existência, ele percebe pela primeira vez que pode se parecer com ele mesmo. Que o mundo não dá um vintém pelas opiniões dele, e muito menos pelo comportamento. Um jovem sente-se de certo modo responsável pelo mundo. Mesmo sabendo que a tarefa é dantesca, ele respira fundo e procura estar à altura, como um pai de trigêmeos. A velhice começa depois que ele percebe que em vez de tapinhas nas costas o mundo preferiu lhe dar um pé na bunda.
 
No Nordeste existe um comparativo muito a propósito: “Fulano está mais perdido do que cachorro que caiu da mudança”. A mudança é o mundo: virou esquinas, pegou atalhos, furou semáforos, acelerou, deu banda, rompeu pela contramão... e cada sujeito de 60 anos ficou sentado zonzo na poeira, pensando:
 
 – Agora danou-se, mesmo que o pé pudesse pisar direito eu não ia alcançar mais nunca.
 
– Falando com quem, papai?...
 
A enorme sensação de desobrigamento e alívio se traduz num senso lúdico do momento, e um detalhe importante é o retorno prazeroso de um tipo especial de cisão psíquica. Em momentos assim, o sujeito é capaz de simplesmente ser, e este é o Eu no. 1; é capaz de se observar, e quem observa é um Eu no. 2; e é capaz de comentar o que observa com um interlocutor suposto, que podemos chamar de Eu no. 3, embora geralmente, para efeitos estilísticos assuma a figura dos “amigos imaginários” que a pessoa tinha na infância.
 
Sei que parece delirante, e proponho agora um argumento mais pragmático. Todo professor e professora sabe que quando os nossos pirralhinhos repetem uma lição em voz alta aprendem e memorizam melhor do que quando fazem apenas a “leitura silenciosa”. Por que? Ora, porque a memória não passa de uma rede de conexões entre os neurônios, e produzimos milhões delas por dia. A maioria se dissipa após o uso. Dissimam-se mais lentamente quando envolvem diferentes partes do corpo.
 
Quando lemos um conjunto de informações, isto envolve apenas o olho e o cérebro, e nossa memorização repousa nas conexões entre estes dois. Porém quando repetimos em voz alta precisamos usar a garganta, as cordas vocais, a língua, etc., sem falar no fato de que o ouvido também está registrando tudo. Em vez de uma ou duas redes de sinais, temos uma dúzia. É mais difícil de se dissipar.
 
Quando uma pessoa está resolvendo mentalmente um problema, ela na verdade está produzindo algun minúsculos “euzinhos”, cada qual dando uma opinião. Todos são ele, todos representam modos-de-ver dele próprio, mas precisam deliberar.
 
O cara vai viajar, está fazendo a mala. E falando sozinho.
 
– Caramba, é uma semana só, não vou precisar de tantas calças... vou com uma, e vai outra na mala. E esse casaco aqui está ocupando metade do espaço, melhor ir vestido... Mas vestido com ele, num calor desse?  Ora, tanto faz, Uber tem ar condicionado, aeroporto também, avião... Vai, vai vestido. Danado é caber esse sapato... Não, não preciso de dois pares. Vai o que vai no pé e acabou-se.
 
– Papai?... Tudo bem aí?
 
E nem vou me referir ao fato de que indivíduos que escrevem literatura, que escrevem para teatro ou cinema precisam sentir (com a boca, a língua, os lábios, as cordas vocais) como essas frases vão ser fisicamente pronunciadas. Diálogo imaginado em silêncio está sujeito a mil armadilhas. A gente só percebe que está jogando um travalíngua no colo da atriz quando pronuncia ele em voz alta, a tempo de ser corrigido.
 
“ – Saia daqui, Dr. Axel. Imediatamente. Não convoquei esta reunião para que o senhor venha se beneficiar de privilégios hierárquicos”. Privilégios hierárquicos?! Quem diabo no mundo fala desse jeito, caramba!?  “Não lhe chamei para esta reunião para que o senhor venha passar na minha cara a posição que ocupa...” Menos pior. Sei não...
 
– Falando sozinho de novo, papai?...
 
Ele vai responder, enfarruscado:
 
– Tenho é que falar sozinho mesmo, porque preciso de um interlocutor à altura.
 
Não liguem – é mera bazófia, mera jactância. Ele está, como um rádio-astrônomo, tentando fazer contato com uma forma de vida inteligente no fundo do silêncio cósmico de si mesmo. É uma inteligência, viva, confusa, brilhante, inquieta, com quem ele conversou a vida inteira, mas que agora está se afastando com as galáxias, demora cada vez mais para responder... Mas... é a vida!  Quem somos nós para reclamar da expansão do universo?
 
 


[ voz que fala na cabeça ]