Vieram me perguntar por que eu passo tanto tempo ouvindo
música. Não ouço muita música. Meus amigos ouvem mais do que eu. Muitos deles
não pegam um metrô Carioca-Cinelândia sem plugar as oiças. Todo bar tem música,
todo rádio e TV tem música. A próxima evolução será um chip estéreo incrustado
juntos aos nossos martelos e labirintos, puxado a surdo de escola.
É porque eu ouço muitas vezes com uma certa concentração.
Uma vez eu estava na sala de um casal de amigos e vieram me mostrar o disco
novo não lembro de quem. Era no tempo do elepê, de modo que prestei atenção às
três ou quatro músicas (era um disco instrumental) daquele lado. Aí quando
foram mudar, minha amiga falou:
– Você ouve tão concentrado que parecia que tava rezando.
A maioria das pessoas não gosta de música, gosta de
música-de-fundo, música que possa ficar em segundo plano. Elas acham que a vida
vai bem, ou vai mal, mas em todo caso iria certamente melhor com uma trilha sonora
ao fundo. Um mero acompanhamento.
A música é um refratador de emoções, pega aquele foco
emocional da gente naquele instante e o dispersa com bons resultados,
iluminando uma área mais ampla ao redor da memória.
Ouvir música é como ler poesia, ou rezar, ou estar
pensando numa coisa decisiva que está para acontecer com dia e hora marcados. A
pessoa se espalha pela própria vida afora, como tinta numa tela. Tudo que a
gente já viveu (tudo não, claro) parece emergir, coisas sentidas, pensadas,
visualizadas, coisas pedidas com fervor a um poço escuro e talvez vazio.
A música pode ser manipulativa. Basta ouvir um anúncio,
ou ouvir a trilha de John Carpenter para seus thrillers de horror. Ela é um “indutor emocional”, conforme usada
em muito cinema e muita TV por aí. Ela explica subliminarmente ao ouvinte como
ele deve se sentir, como a dramaturgia precisa que ele se sinta. Na verdade,
ordena que ele se sinta assim, e qualquer um acaba sentindo, até eu.
Esse doping musical é um pouco forçação de barra e um
pouco consequência do vexame de quando a gente está finalizando uma cena e vê
que ela está meio mequetrefe. Não há
suspense? Enfia um crescendo de orquestra de dentro do qual se eleva um rasgado
dissonante, e basta um plano da porta para quem está no sofá presumir a vinda
de Freddy Kruger. É beijo? Violino.
Os violinos são como o molho vinagrete, sempre dão a
impressão de estar melhorando aquilo que os recebe. Não se pode negar a eficácia e a necessidade
desses recursos, mas isso é apenas o lado adestrador da música, o seu lado
pavloviano.
A música não é apenas para estender um tapete onde “outra
coisa” vai desfilar. Lembro sempre a história do garotinho de cinco anos que
viu o pai escutando a música na sala e perguntou “onde estava passando o
filminho”. O guri achava que uma música sem imagem era algo amputado, faltando
uma coisa.
Música é para ser ouvida a sós, à meia luz, com enorme
silêncio, numa sala tranquila onde não vá entrar nenhum alarido de um momento
para outro? Talvez, mas se só pudesse ser de mil outras formas também.
Vendo aqueles documentários sobre o jazz, aquelas décadas
de quando ele brotou do dixieland e das orquestras de metais, a gente vê como
era uma música dançante no começo. Foi se sofisticando ao longo do século e
virando música mais para ouvir do que para dançar. Uma música que era para os
negros dançarem virou música para os brancos escutarem. (Isso é o tipo da
frase-de-efeito de cronista cuja simetria estrutural lhe dá mais credibilidade
do que ela comporta.)
A música ideal talvez fosse aquela que pudesse (o mesmo
som, o mesmo fonograma) botar para dançar num salão centenas de pessoas, e
pudesse também ser fruída por uma só, a sós, à meia-luz, etc.