A data de 20 de julho marca este ano o cinquentenário da
descida do homem na Lua. Neil Armstrong e Buzz Aldrin foram os dois primeiros
seres humanos a caminhar naquela poeira de milhões de anos “que cheirava a
pólvora queimada”, disseram eles, após muitas tentativas (ainda na espaçonave)
de limpar o finíssimo pó cinzento aderido aos seus trajes espaciais.
Eu estava perto de completar 19 anos naquele dia
histórico, e por essas ironias do destino não assisti o pouso pela TV. Estava
tocando com minha banda de rock no Recife naquele dia.
Conto essa história neste meu artigo para a revista
“Kurumata”:
Já leitor inveterado de ficção científica, eu acho que
via naquilo tudo uma dimensão que muita gente ao meu redor não via. Para
muitos, era apenas uma façanha como descobrir a América ou chegar ao Polo
Norte; uma aventura arriscada, movida a tecnologia e uma certa coragem suicida.
E uma aventura movida a política, porque era ainda a
época da Guerra Fria, da corrida tecno-militar entre os EUA e a URSS. Seria (se
tudo desse certo) uma vitória esmagadora dos norte-americanos, e todos
torcíamos por eles.
Até eu – porque embora estivéssemos vivendo um período
brutal da ditadura militar, com o AI-5 recentemente imposto à população, nem eu
nem meus amigos tínhamos a menor simpatia para com aquela União Soviética
igualmente ditatorial, burocrática, truculenta com seus cineastas e escritores.
Melhor torcer pelos norte-americanos, que pelo menos
tinham um pouco mais em comum conosco, pensava todo mundo ao meu redor.
Ou (pensava eu) melhor considerar aquilo uma vitória não
de um país, mas de toda a Humanidade. Era um planeta que pela primeira vez
tocava fisicamente em outro; não era um país. Nós, brasileiros, estávamos
pousando ali também.
A transmissão ao vivo, em tempo real, coisa nova naquela
época, criava um laço supra-nacional entre todos os bilhões de pessoas que
acompanhavam a aventura. A televisão nos unia num momento que, descontadas as
oscilações de fuso horário e os inevitáveis delays
de transmissão, podia ser considerado um “Agora” universal. Além fronteiras.
E aquele fato transcendental acabaria servindo também
como argamassa de destinos individuais, dando à descida na Lua aquele status de
fato unificador, que nos leva a perguntar a alguém: “Onde estava você quando aquilo aconteceu?”.
Durante alguns anos tomei notas para um conto que se
intitularia justamente “Onde Estava Você?”, e que seria uma reflexão sobre esse
eixo de simultaneidade entre vidas individuais, produzido por um fato de
amplitude planetária.
Pensei em três casais de gerações sucessivas, numa mesma
família. Em 1945, o avô e a avó do narrador escutam a notícia da explosão da
Bomba de Hiroshima. Em 1969, o pai e a mãe dele assistem na TV a descida do
homem na Lua. E em 2006 ele conta onde está quando uma raça alienígena faz seu
primeiro contato explícito com o nosso planeta.
O conto ficou se chamando “Príncipe das Sombras”, está no
meu livro A Espinha Dorsal da Memória
(1989), e diz a certa altura:
...um dia ele perguntou a ela onde estava quando a Bomba caiu sobre o
Japão. Ela respondeu que tinha sabido da notícia através do rádio; tomava banho
de chuveiro e o rádio estava ligado na sala, ela ouviu a voz urgente do locutor
e captou alguma frase, não percebeu todos os alcances do fato mas sentiu que
tinha a ver com o fim da guerra, saiu à sala gotejante, envolta na toalha, mas
o rádio já retornava à música e a mãe vinha em defesa do tapete. (...) Quanto a
ele, que tinha vinte e quatro anos naquele agosto, estava num restaurante com
alguns amigos, quando outro amigo entrou a passos largos, puxou uma cadeira e
largou na mesa a notícia, o peito ofegante, os olhos brilhando, e não porque
estivesse a pensar no efeito daquilo sobre o moral nipônico, mas porque era possível,
era real.
(...) Em 20 de julho de 1969 uma moça de cabelos louros ligou a
televisão para ver o que estava passando (dividia um apartamento com duas
amigas, ambas tinham saído, era domingo)
e viu uma sucessão de imagens que não entendeu bem, entendeu
a voz que as acompanhava e era a de Gilberto Gil, que àquela época era seu
cantor preferido; a voz entoava versos que ela não conhecia: “Momento
histórico... Simples resultado do desenvolvimento da ciência viva... Afirmação do
homem, normal, gradativa, sobre o universo natural – sei lá que mais...” A canção a levou à poltrona, da qual não mais
se levantou durante as horas seguintes, até terminar a transmissão da primeira
descida do homem na Lua. A moça ainda não era minha mãe; ainda se passariam
vários anos até que um rapaz de cabelos escuros e boca maliciosa lhe
perguntasse: “onde estava você, quando, etc.?” Após a resposta, ele disse que
naquele dia estava também diante da televisão, a sala cheia de gente, a cabeça
cheia de fumo, o rosto lavado em lágrimas, vingativamente satisfeito, como se
aquilo fosse um triunfo pessoal.
A ficção científica nunca me ensinou a odiar raças
alienígenas, mas me ensinou a pensar na humanidade como uma coisa só. Retalhada
por distâncias geográficas, históricas e culturais, desunida por competições
econômicas e políticas; mas uma coisa só. Quem pisou na Lua naquela tarde de
domingo foram os aborígenes australianos, os camponeses do México, os pastores
do Cáucaso, os tutsis e hutus de Ruanda, os roqueiros da Escandinávia, os
pirangueiros-de-porta-de-bodega do bairro do São José, em Campina Grande, que
certamente estavam vendo tudo e fazendo piada.
Gilles Deleuze tem uma definição de Esquerda x Direita
que para mim vai muito mais além dessa distinção meramente política. Diz ele
que quem é de esquerda se preocupa primeiro com a humanidade, depois com seu
próprio país, e só depois com sua cidade e as pessoas que o cercam. E quem é de
direita pensa acima de tudo em si mesmo e nos seus, só depois cuida dos
interesses do país, e provavelmente não está nem aí para a humanidade. (Estou
parafraseando, claro.)
Eu tiraria os termos “esquerda” e “direita” da discussão
e diria que essa oposição talvez seja a mais importante de todas no planeta Terra
de hoje, quando é o próprio planeta que está ameaçado de entrar em colapso, e
com esse colapso acabar com as guerras dos países, a farra das "famílias" e a
própria existência da civilização.
Se esta não for a questão mais importante do mundo hoje, neste
20 de julho de 2019, qual será?