Quando comecei a fazer meus shows mambembes no Nordeste, de 1979 em diante, eu costumava explicar, antes de cantar uma música, que minhas canções pertenciam a alguns gêneros de música folclórica inventados por mim: batuque apocalíptico, baião filosófico, rock repente, bolero brechtiano, embolada comportamental, blue etílico...
Quando vim para o Rio em 1982 descobri que existia aqui uma banda chamada Blues Etílicos, graças à fatalidade telepática que faz com que indivíduos parecidos, com idéias-fixas parecidas, tenham idéias parecidas.
Passaram-se alguns anos e acabei me tornando amigo da banda, principalmente do gaitista Flávio Guimarães, um apaixonado pela música nordestina, pelos ritmos populares do Nordeste, e que já gravou inúmeros trabalhos juntando a emoção melódica do blues e os temas do sertão ou da zona da mata.
Certa vez eu conversava com Michael Grossmann, norte-americano radicado em São Paulo, que estava ajudando a produzir o novo disco solo de Flávio. Falávamos de nossa admiração em comum por Robert Johnson, o bluesman lendário que morreu jovem e deixou apenas um pequeno número de canções gravadas.
Eu ouvi muito essas canções no elepê King of Delta Blues Singers, na famosa “Casa 9” carioca onde durante alguns anos moraram Lenine, Ivan Santos, Alex Madureira, Júlio Ludemir e vários outros visitantes esporádicos, entre os quais Pedro Osmar e eu próprio.
Sugeri a Michael escrever um cordel contando a vida de Robert Johnson, e que a canção resultante fosse gravada por Sebastião da Silva, um cantador de quem eu era amigo desde os idos do Congresso de Violeiros de Campina Grande nos anos 1970. Michael tinha uma enorme coleção de elepês de cantoria, trazia cantadores ao seu apartamento de vez em quando, e era também amigo de Sebastião; topou na hora.
Escolhi desde logo o formato da décima composta por uma quadra e dois tercetos (4-3-3), com esquema de rimas ABCB-DDE-FFE. É uma décima muito usada pelos poetas do Vale do Pajeú, e diferente da décima tradicional com que se glosam motes, cujas rimas seguem o esquema ABBAACCDDC.
A música foi composta em novembro de 2000, e gravada no mesmo mês, num estúdio de São Paulo. Na mesma sessão, compusemos e gravamos outra música, “Destilaria”, que viria a aparecer apenas anos depois, noutro disco do Blues Etílicos. Eu gravei um dos violões; o outro foi de Otávio Rocha.
A “Balada de Robert Johnson” foi lançada no CD , Navegaita (2003). ficou um primor de
gravação, pela interpretação intensa de Sebastião da Silva, com sua voz
metálica e expressiva, a gaita de Flávio, o baixo acústico, os efeitos de
guitarra slide de Otávio. Tornou-se um
número habitual nos shows de Flávio, e cheguei a cantá-la no palco algumas
vezes, acompanhado pela banda, no saudoso “Mistura Fina” da Lagoa.
Não demorou muito para que ela aparecesse no YouTube, em videoclips que receberam variadas edições, com imagens colhidas de filmes antigos sobre o blues do Mississipi.
https://www.youtube.com/watch?v=bF0SHbnqvpM&ab_channel=142857als
BALADA DE ROBERT JOHNSON
(Braulio Tavares e Sebastião da Silva)
(versão original completa)
1
Seu mundo era rutilância
seu mundo era escuridão
seu nome era Robert Johnson,
cantador doutro sertão.
Vinte e sete anos vividos
lá nos Estados Unidos
passou, veloz como a luz...
Naquela terra sombria
onde a tristeza e poesia
se dá o nome de blues.
2
Sua mãe teve onze filhos,
seu pai ele nunca viu.
O mundo em que foi criado
lembrava muito o Brasil.
Era neto de escravos,
dos negros fortes e bravos
colhedores de algodão.
Nunca pisou numa escola:
escreveu com a viola
e leu com o coração.
3
Dizem que foi o Diabo
quem lhe ensinou a tocar,
em um encontro marcado
numa noite sem luar.
Cruzando as estradas tortas
daquelas veredas mortas
chegou na encruzilhada:
veio com a mão vazia
e partiu com melodia,
ponteio, rima e toada.
4
Outros garantem que é lenda
que o Diabo não existe,
que Johnson cantava o blues
só por ser poeta e triste.
Empunhava o instrumento,
recitava um sentimento
na sua vida andarilha;
e a tristeza era uma fera,
um cão negro, uma pantera
farejando a sua trilha...
5
Correu estradas de ônibus,
de caminhão ou de trem,
ora cantando sozinho
ora em dupla com alguém.
Andava dias inteiros
ao lado dos companheiros
sob o sol mais escaldante,
porém sempre se mantinha
vestido com toda linha
bem-cuidado e elegante.
6
Tinha o dom de encantar
a quem estivesse vendo
sua voz chorando um blues
e seu violão gemendo.
Na luz mortiça dos bares
com uma troca de olhares
conquistava um novo amor,
e aquela mulher vadia
nessa noite lhe trazia
mistério, prazer e dor.
7
Buscando uma namorada
procurava as mais feiosas:
as mulheres solitárias,
carentes e carinhosas.
A mulher que o aceitava
com todo gosto lhe dava
o corpo, a casa e a cama.
E ele deixava que ela
julgasse ser a mais bela
na ilusão de quem ama.
8
Uma noite numa festa
tocava de madrugada
e começou um namoro
com uma mulher casada.
Sedutor e seduzido,
cantava com o sentido
naquele corpo moreno,
quando um copo alguém lhe deu:
ele pegou e bebeu
sem saber que era veneno.
9
Foi como um rio de fogo
que lhe desceu na garganta,
mas a paixão era muita,
e sua sede era tanta!
Passou-se mais de uma hora,
e enquanto o povo lá fora
bebia, ria e dançava,
por dever de cantador
ele gemia de dor
e fingia que cantava.
10
Saiu dali carregado
para o quarto da pensão;
morreu e deixou somente
a mala e um violão.
Não levou fama nem glória
não deixou nome na história
não levou riso nem mágoa...
Foi um sopro de poeira,
uma nuvem passageira,
um nome escrito na água.
11
Foi assim que Robert Johnson
passou pelo nosso mundo:
brilhou durante alguns anos,
apagou-se num segundo.
Não deixou seu nome escrito
no mármore, no granito,
nas armas ou nos brasões.
O que deixou para nós
foram os versos e a voz
e vinte e nove canções.
Repete:
O que deixou para nós
foram os versos e a voz
e vinte e nove canções.