domingo, 9 de junho de 2024

5070) "Godzilla Minus One" (9.6.2024)




Vi alguns filmes de Godzilla quando era adolescente, e eles sempre me divertiram muito. Os efeitos especiais eram toscos? Nunca liguei para isso. Não estou ali para imaginar que algo é real, mas para ver como o não-real se comporta. Minha suspensão-da-descrença está sempre pronta, a um estalar dos dedos. 
 
Vi agora o Godzilla Minus One, de Takashi Yamasaki. Um bom filme dentro do seu gênero, com personagens interessantes, um monstro respeitável, bons efeitos especiais, música tonitruante e bombástica. 
 
Godzilla é sempre interpretado como um símbolo da destruição nuclear sofrida pelo Japão na II Guerra Mundial, e do perigo nuclear como um todo. Forças primitivas da natureza estavam quietinhas no seu canto... mas os cientistas foram cutucar ali, sem a menor necessidade. E de repente essa natureza revela-se uma força cega, que mata, sem sequer perceber que está matando. 


 
Uma imagem que me ocorre quando penso no Godzilla de Yamasaki é a fotografia do que ganhou o nome de “a Pata do Elefante” (“the Elephant’s Foot”). Quando o reator nuclear de Chernobyl explodiu, em 1986, o material nuclear misturou-se ao cimento derretido pela alta temperatura, e escorreu como lava. Depois que esfriou, solidificou-se numa massa escura e informe com a aparência da pata de um elefante. 
 
Os especialistas dizem que é um dos objetos mais mortíferos existentes no mundo, pelo alto grau de radioatividade (que felizmente vai decrescendo, com o passar dos anos). 
 
Esse monstruoso resíduo poderia ser chamado também “a Pata de Godzilla”. Seria uma metáfora adequada para esse monstro, um resultado da mistura entre sabedoria científica, presunção tecnológica, autoritarismo político, estupidez burocrática. Todos estes elementos estão presentes em Godzilla Minus One, com a ressalva de que no fim da aventura quem salva o mundo (ou pelo menos Tóquio) é um grupo de militares corajosos e de bom coração. 
 
Monstros servem para ser destruídos por armamentos poderosos e tropas eficientes – é algo que o cinema vem nos dizendo há décadas. 


 (
Godzilla Minus One, Takashi Yamasaki, 2023)



(20 million miles to Earth, Nathan Juran, 1957)
 
 
Para além de sua alegoria científica e militaresca, filmes como os da série Godzilla têm também uma dimensão místico-religiosa que fica aflorando aqui e ali. 
 
O monstro não é mau, ele é apenas selvagem, bruto. Uma força da Natureza que foi desencadeada pela imprudência humana, e que agora reage – reage como até um animal doméstico reagiria ao ser maltratado. É feroz e é incompreensível, por mais que a gente queira compará-lo a uma fera raivosa. 
 
Quando encontramos traços humanos no monstro, conseguimos nos compadecer dele, e talvez o melhor exemplo disto seja King Kong. Com diferentes nuances em cada versão; mas sempre um monstro em que podemos projetar emoções semelhantes às nossas. 
 
Godzilla nem tanto, mas me chamou a atenção um comentário feito pelo diretor Yamazaki, nas entrevistas. Ele diz que na cultura japonesa existe o conceito do tatarigami, “espíritos que trazem consigo as calamidades”. Godzilla, para o diretor, é metade-monstro e metade-deus. Uma divindade brutal e destrutiva, mas que traz em si algo de sagrado. 



 
O que me trouxe à mente um conto de Ted Chiang, “O Inferno é a Ausência de Deus”, em sua coletânea Stories of Your Life and Others, 2002 (no Brasil, História da sua vida e outros contos, Ed. Intrínseca, 2016, trad. Edmundo Barreiros). 
 
O conto de Chiang não é propriamente ficção científica, embora tenha ganho naquele ano os principais prêmios deste gênero (o Hugo, o Nebula e o Locus, além de outros). É uma ficção religiosa, imaginando um mundo em que existe Deus, existem o Paraíso e o Inferno, tudo parecido com o que dizem os livros sagrados. 
 
E nesse mundo acontecem o que eles chamam de “Visitações” dos Anjos. São breves momentos em que os Anjos surgem em nosso mundo material, emergindo do Além. Essas Visitações, contudo, ficam mergulhadas em mistério, porque os Anjos não se dirigem às pessoas: nada lhes dizem, nada lhes revelam. Surgem, e desaparecem. E cada Visitação é uma pequena catástrofe, como se fosse uma chuva de raios misturada a um terremoto. 
 
Cada visitação produz milagres – milagres paradoxais, imprevisíveis, inexplicáveis. Uma pessoa é curada do câncer. Um menino morre queimado no incêndio provocado pelos raios. Uma mulher que nasceu sem pernas adquire pernas, instantaneamente. Outra mulher é dilacerada por cacos de vidro na explosão de uma vidraça, e tem morte horrível. Outro homem perde os olhos, que desaparecem do seu rosto. 
 
Os efeitos dessas Visitações fugazes e assombrosas ficam sendo discutidos durante anos pelos fiéis, em grupos de estudo onde eles se dão apoio mutuamente e procuram entender o propósito do que lhes aconteceu. Nunca se sabe onde e quando as Visitações vão ocorrer, nem que consequências terão. 

O fenômeno assemelha-se aos mistérios encontrados pelos personagens de Piquenique na Estrada (“Roadside Picnic”, Arkádi e Bóris Strugátski; filmado por Andrei Tarkóvski como Stalker), onde um passo em falso pode provocar acidentes meio absurdos, mas fatais. 
 
Nessas narrativas, o contato com o Sobrenatural Divino e com o Extraterrestre Inacessível se assemelham. Sabemos que algum prodígio aconteceu, e produziu resultados espantosos, mas não entendemos a razão daquilo, não sabemos o como e o para quê desses eventos milagrosos, que para uns é redenção e para outros é tragédia. 


 
A noveleta de Ted Chiang é complexa, contraditória, e não deixa de trazer à lembrança o início da primeira das Elegias de Duino (1923) de Rainer Maria Rilke: 
 
Quem, se eu gritasse, me escutaria, entre as hierarquias
dos anjos? E mesmo que um deles de súbito
me apertasse contra seu peito, eu pereceria
ao contato de sua existência tão mais forte.
Pois a beleza não é senão o princípio do terror
que mal somos capazes de aguentar, e que nos espanta
porque calmamente desdenha de nos aniquilar.
Todo anjo é medonho. (...)
(trad. BT)
 
Falta a Godzilla essa dualidade angélico-medonha que o traga mais para perto do domínio humano. Uma dualidade que era visível no “King Kong” do cinema, com quem podemos estabelecer, em muitos momentos, um laço de empatia, de com+paixão. Somos capazes de entender (ou de imaginar que entendemos) o olhar de King Kong para a minúscula bonequinha loura que ele protege em seu punho cerrado. 
 
Não é o caso com Godzilla, principalmente este Godzilla furioso, de urros bestiais, esse tatarigami tão bem reconstruído pelos efeitos do filme de Yamasaki. Bem concebido e bem realizado, ainda assim é um filme comum de Homem vs. Monstro em que o Homem vence no final.  Como em todas as narrativas formulaicas, é uma conta que não deixa resto, e que não será lembrada. O "Bem" venceu o "Mal" mais uma vez; noves fora, nada. 
 
É diferente do final dos diferentíssimos filmes de King Kong (Merian Cooper & Ernest Schoedsack, 1933; John Guillermin, 1976; Peter Jackson, 2005), em que a derrota de Kong torna-se, por alguma química imponderável, uma derrota também nossa. O alívio que sentimos com a execução brutal do monstro fica temperado pelo remorso de sabermos que naquela execução cada um de nós também foi vítima e também foi carrasco. E até hoje ficamos pensando. 
 
 

 

Cartaz para o King Kong de 1976, não utilizado: Jacques Lewkowicz (criação), Julio Shimamoto (ilustração) e Paulo Hiroshi (produção).