(São Luís-MA)
De vez em quando eu ministro (ou ministrava, quando o
mundo era normal) “Oficinas de Poesia” e “Oficinas de Cordel” pelo Brasil afora.
Onde a gente chega, encontra um público diferente, com diferentes níveis de
informação sobre o que é “cordel”. Vou fazer uma “reconstituição”, como fazem
os telejornais quando querem mostrar como se deu um acidente, um assalto, etc.
Estou sentado na mesa (gosto de falar sentado na mesa,
diante da classe) e digo:
– Muito bem, acabaram os cinco minutos. Quem tem verso
pronto?
Meu desafio foi: “Vocês tem cinco minutos para escrever
uma estrofe típica de folheto de cordel; o tema é este: O QUE QUISER”.
Eles enterraram a cara na folha de papel e eu fiquei olhando
pela janela, lá pra fora: um dia lindíssimo, bem nubladinho, céu todo branco,
ventinho frio... Quanto é grande o poder da natureza!
Uma moça simpática, de óculos, daquelas que sentam logo
na primeira fila, mete os pés e me traz uma folha de caderno.
– Ôpa, habemus versus. Como é teu nome?
– Dóris.
– Valeu, Dóris.
Ela senta, e já vem um cara de pulôver e boné trazendo outra
folha.
– Tá aqui, professor.
– OK. Teu nome?
– Arlindson.
– Teu pai se chama Arlindo?
– Não, se chama João Batista. Por que?
– Nada não, é uma pesquisa que eu vivo fazendo. Pessoal,
vamos dar um tempo. Temos dois exemplos aqui e vamos ler e comentar.
– Tem que entregar agora todo mundo? – pergunta um senhor
grisalho lá atrás. Eu gosto dessas perguntas onde os termos vêm invertidos.
– Agora não. Sua Senhoria o Árbitro vai dar alguns minutos
de acréscimos pra quem ainda não fez – digo. – Parem os cronômetros, e vamos
ver os versos dos nossos amigos aqui.
Pego primeiro a folha de Dóris, que tem uma letra firme,
bem legível. Várias palavras riscadas por cima, substituídas por outras.
Leio devagar, em voz alta, enquanto eles escutam:
O que quiser? O que é que eu quero?
Quero alguma coisa diferente de zero.
Quero o que não tenho. O que me desespero.
O que foi, o que não vai ser,
o que preciso decidir num segundo,
sabendo que não tenho todo o tempo do mundo
e cinco minutos são uma eternidade
quando o silêncio é tão profundo
quanto o céu que cobre a minha cidade.
Terminada a leitura, ergo os olhos. Todos estão com o
olhar pregado em mim. Ninguém diz nada. O coroa magro de óculos, à esquerda,
estica o lábio inferior e faz um sinal de assentimento com a cabeça, como quem
diz: “Sim senhor”.
Pego o outro papel.
– Vamos ver agora o verso de Arlindson. Atenção, hein,
gente? Isso aqui não é paredão não. Não é pra ver quem é melhor. A resposta
poética é individual e personalíssima, como a impressão digital de vocês.
Leio:
Quero chamar os ouvintes
da cidade, do sertão,
para escutar este caso
de luta, amor e paixão;
foi um fato que se deu
na vila do Riachão.
(Montenegro-RS)
Levanto a vista. O silêncio continua, mas menos
impressionado. Alguém encolhe os ombros como se dissesse: “E daí?”. Eu me viro
para Dóris.
– Dóris, a primeira coisa que eu observo aqui é que a sua
estrofe de cordel está com nove linhas. Porque você escolheu nove, e não outra
quantidade?
– São nove? Nem vi. Que diferença faz?
Eu me viro para Arlindson.
– E o teu? Quantas linhas são?
– São seis, né? O cordel é feito em sextilha. Rimando a
segunda, a quarta e a sexta.
Dóris dá uma risada alegre, sem implicância.
– Ai meu Deus, que coisa específica. Eu não sei rimar nem
no sábado e no domingo.
– Mas você rimou – digo eu, mostrando o papel. – Tecnicamente
falando, seu verso é uma estrofe de nove linhas, em métrica irregular, rimando
AAABCCDCD. Um esquema meio irregular, mas que pra meu gosto funcionou.
– Que bom – diz ela. – Mas eu não pensei nada disso. Fui escrevendo
pensando no sentimento, não me preocupei com métrica nem com rima, porque eu
não entendo disso. Aliás, me inscrevi na oficina pra saber por que isso é tão
importante, e pra aprender como se faz.
– Você já está bem encaminhada, rimou de maneira correta.
Não esquente muito a cabeça. Tem poetas que são melhores na forma fixa, esse
tipo com rima e métrica. E tem poetas que são o contrário. Se você acha que
escreve melhor desse jeito aí, não se preocupe, mande brasa.
– Eita, “mande brasa”! Fazia quarenta anos que eu não
escutava isso – diz um cara de bigode branco na terceira fila, se sacudindo de
rir.
– E eu? – diz Arlindson.
– Você fez uma sextilha perfeita. Estrofe: seis versos,
rimando ABCBDB. Verso: 7 sílabas sem fazer esforço – porque às vezes a gente
tem que forçar um pouco a dicção pra poder dar certo. Rima: sem problema
também. Uma coisa apenas: por que você botou o nome da cidade de “Riachão”?
– Porque é verdade. Eu estou com uma história na cabeça
faz dias, e foi no Riachão, um lugar perto daqui.
– Foi Deus quem botou o nome desse lugar, porque a rima
em “ÃO” é talvez a que mais tem na língua portuguesa. Quebra o maior galho. Mas
tem que ser economizada. Senão fica repetitivo, o leitor percebe-sem-perceber e
pensa: “isso tá ficando muito chato”.
– Eu também acho, e procuro variar. Nunca faço duas
sextilhas seguidas usando a mesma rima.
(Uruguaiana-RS)
– Isso mesmo. Então, vejam: nós temos aqui dois exemplos
que são o contrário um do outro. O verso feito por Dóris não é nem de longe um
verso de cordel, porque faltam as regras tradicionais do cordel... Calma,
calma, já explico. Mas o verso dela tem poesia!
Tem imagens, tem uma agitação de sentimentos. São frases filtradas pelo
uso consciente da palavra. Poesia é isso, na base. O resto é a pirueta-verbal
de cada um, o voo-alto-filosófico de cada um, o sentimento-do-mundo, ou não, de
cada um.
“Já o verso de Arlindson é uma estrofe de cordel impecável:
formato, métrica e rima. Mas eu diria que não tem poesia. Não tem essas coisas
que acabei de elogiar no verso de Dóris. É aquilo que a gente chama,
tecnicamente, de “prosa rimada e metrificada”, um texto que obedece as regras,
mas não tem poesia. Calma, Arlindson, não estou dizendo que não presta.
“Uma característica do cordel é esse hibridismo, essa
mistura de linguagem prosaica e linguagem poética. Não tem mal nenhum nisso. É
difícil você fazer um folheto inteiro, mesmo de 8 páginas, com todas as estrofes
ricas em poesia. O cordel é narrativo, conta histórias. Contando histórias ele
também é descritivo. Muitos trechos do cordel têm esse fluxo da prosa, de
narrar ações com simplicidade, de forma direta, e têm em outros momentos
estrofes mais elaboradas, mais ricas em imagens, com uso mais original das
palavras, e tal.
– Eu achei uma coisa – diz uma senhora de vestido escuro,
sentada por trás de Arlindson. – Achei que o verso dela, pra mim, já era um
poema completo. Por mim, está dito tudo ali, a indecisão dela, a angústia, a
reflexão dela sobre o tempo... Não senti falta de mais nada. No dele, não. Ele
começou uma história e deixou um gostinho de quero-mais.
– “Gostinho-de-quero-mais”, apesar do nome clichê, é um
conceito útil na teoria literária – digo eu. – É isso que a gente procura
deixar no leitor. Ora, o cordel é narrativo, quase sempre. Conta histórias.
Essa estrofe de Arlindson é a estrofe 1 de um poema que pode ter 40, 80 ou
muito mais. Tem que ter essa expectativa de “vem mais coisa”.
- E só é cordel se for assim? – pergunta um rapaz moreno
chamado Millôr. O nome dele eu já gravei desde o primeiro dia, ele disse que a
mãe era fã de Millôr Fernandes.
– Aí é que está. O cordel tem regras. Mas a poesia, em
geral, é uma coisa livre: o poeta é o dono do poema, ele é quem determina as
regras.
– E poesia precisa de regras? – diz Dóris. – Poesia devia
ser, sei lá, o reino da liberdade, alguma coisa assim.
– As regras da poesia não servem para proibir, mas para focar. As formas fixas são desafios: poemas
que obrigatoriamente têm que ter aquele formato. Pra reprimir? Pra prejudicar o
poeta? Não: para ser uma prova de domínio da técnica. Mas só usa quem quer,
ninguém é obrigado.
– Então rima e métrica é só pra isso? Exibição de
técnica? Onde fica a emoção?
– Idealmente, a função da técnica é esta: dar recursos para
a emoção. Sem técnica, vocês só tem uma ou duas maneiras de exprimir suas
emoções. Com técnica, você tem duzentas. O que é melhor?
– O melhor é o que a gente sabe usar com mais sabedoria,
não tem a ver com quantidade – afirma a senhora de preto.
– Então pronto – digo eu. – Papel e lápis na mão, todo
mundo. Vocês têm cinco minutos para produzir um poema de cinco a dez linhas,
rimado ou não, cordel ou não, não importa, um poema. O tema é o mais fácil do mundo: “O Brasil de hoje”, mas não
pode usar a palavra “Brasil”, nem nenhum nome próprio, de pessoa, de lugar, de
instituição. Mãos à obra. Cinco minutos, como dizia José de Alencar.
Eles abaixam a cabeça para o papel e eu penso: “Caramba,
ainda bem que ninguém nunca me mandou fazer isso.”
(Barbacena-MG)