O australiano Damien Broderick, crítico e escritor de
ficção científica, usa às vezes o termo “Stepford Science Fiction” para se
referir àqueles livros que fazem tudo direitinho, de acordo com o figurino, mas
não têm alma.
O termo vem do romance de Ira Levin, The Stepford Wives (1972), muito apreciado por algumas feministas. Um
casal jovem se muda para a cidadezinha de Stepford, e a mulher logo descobre
que algumas de suas vizinhas vivem eternamente voltadas para cuidar da casa e
do marido. Andam elegantíssimas, passam o dia inteiro maquiladas e bem
vestidas; dedicam-se a manter a casa “um brinco”; acham o maridão a coisa mais
maravilhosa do mundo, e só conversam besteira. Parecem robôs. Ela começa a
investigar, e...
O livro foi filmado duas vezes. A primeira versão (Bryan
Forbes, 1975), é excelente; a segunda (Frank Oz, 2004) é muito fraca.
( a versão de 1975)
A figura do robô ou do andróide (ou da “ginóide”, no caso
de simulacros femininos) é um confortável clichê da FC, e nos últimos tempos
tem cedido espaço à figura da Inteligência Artificial (I.A.), um ser sem corpo,
meramente comunicacional, capaz de trocar idéias por escrito, e às vezes falando
via sintetizadores.
Esta I.A. tem sido convocada recentemente a produzir
textos literários, escrita criativa. Isto está explodindo por todos os lados ao
mesmo tempo, e não se passa um dia sem que meu X-Twitter anuncie um novo
software capaz de “escrever histórias obedecendo a qualquer prompt fornecido pelo usuário”. (Não,
não usei ainda, não vou transferir para um software
o único prazer que me resta.)
Tudo parece sugerir que muito em breve a produção de
“Stepford Literature” (seja de FC ou de qualquer outro tipo) irá se multiplicar
exponencialmente. É um defeito humaníssimo essa fascinação pelo Menor Esforço,
pela Solução Instantânea, pelo Resultado Sem Trabalho, pelo pedido à orelha de
uma lâmpada árabe, prontamente atendido por um gênio todo-poderoso e submisso.
O que talvez falte a essa turma seja “alma”. Essa
literatura artificial é uma espécie de Embutido Verbal, uma salsicha textual – amassada,
prensada, temperada e composta pela decantação de bilhões de textos preexistentes,
de acordo com as especificações do prompt.
O que é alma? Segundo o poeta Mario Quintana, alma é
aquela parte, dentro de nós, que pergunta se temos alma.
A Literatura de Stepford não nasceu com a Inteligência
Artificial. Existe há séculos, desde que começou a produção industrial de
histórias impressas. Nesse universo totalmente humano existem as histórias
escritas “com alma” (com pensamento próprio, com criatividade, com vivência,
etc.) e existem as histórias produzidas em série, a toda velocidade, para suprir
um mercado de leitores pouco preparados e pouco exigentes.
A literatura de folhetim do século 19 produziu uma
literatura com alma (Charles Dickens, na Inglaterra; Dostoiévski, na Rússia;
Alexandre Dumas, na França; e assim por diante) e produziu uma imensa
quantidade de autores que, em última análise, não criavam muita coisa, apenas
repetiam, com variações mínimas, o material que leram: enredos, descrições,
ambientação, caracterização de personagens, etc.
Margaret Dalziel (em Popular
Fiction 100 Years Ago, 1957) define literatura popular como “os livros e revistas que são lidos apenas
por entretenimento, por pessoas para quem o entretenimento é incompatível com o
dispêndio de esforço intelectual ou emocional.”
São acima de tudo histórias previsíveis, “um pouco mais
daquilo mesmo”, um tipo de narrativa e de universo que o leitor precisa de
apenas uns poucos livros lidos para aprender a identificar e dominar. É uma
literatura baseada no conceito de “zona de conforto”, um horizonte de
expectativas onde as surpresas precisam existir, senão ninguém compraria novos
títulos, mas precisam existir dentro de um quadro previsível.