Alguém pode estranhar a enorme diferença de ponto de vista entre os dois livros. O Ulisses é na verdade o romance de uma cidade inteira, Dublin, com seus bairros, suas vielas, seus bares e bordéis, seus variados sotaques e dialetos (toda cidade grande os tem), ao passo que o livro de Woolf é uma história intimista, que ocorre toda dentro da mente da protagonista.
Não li este livro por inteiro; tive-o há anos numa boa tradução de Mario Quintana.
Cohen justifica assim sua escolha:
“É a resposta britânica feminina à masculinidade irlandesa. A narrativa de Woolf acompanha um dia de junho na vida de Clarissa Dalloway, enquanto ela organiza uma festa que dará à noite. O que era externalizado em Joyce – detalhes físicos, ação – é internalizado em Woolf – detalhes mentais, psicologia. Seu livro é um triunfo da nossa voz mais íntima”.
Os dois livros têm em comum a história de “um dia na vida de uma pessoa”, e um discurso que acompanha os ritmos e associações verbais da mente semi-consciente, ao invés de nos dar uma descrição pretensamente objetiva do mundo exterior.
As diferenças entre um e outro também são grandes. Mrs. Dalloway é uma história intimista, mas Ulisses é aquilo que o pessoal chama de um grande painel social, com uma sucessão de ambientes e uma multiplicidade de personagens e de situações capaz de deixar tonto o leitor. Um é um livro pequeno voltado para dentro; o outro é um livro grande voltado para fora.
A certa altura do livro, diz Woolf:
“Ela tinha a sensação constante, enquanto olhava os táxis, de estar longe, muito longe, lá no alto mar e sozinha; sempre tivera a sensação de que era muito, muito perigoso viver por um dia que fosse”.
É o tema guimarãesrosiano do “viver é muito perigoso” em Grande Sertão: Veredas, só que aqui não se fala do sertão de jagunços e tiroteios, mas da angústia de experimentar a intensidade de cada momento. Mrs. Dalloway, como grande parte de ficção de Virginia Woolf (e de autores como Clarice Lispector) fala do modo quase insuportável como o momento presente é experimentado por um tipo de pessoa excessivamente sensível, com acuidade fora do normal para todo o entrecruzamento de impressões sensoriais, lembranças e emoções que podem se concentrar num breve instante.
A ficção de Virginia Woolf (junto com a de Proust e de Joyce) serviu para equacionar de forma diferente a questão do tempo literário, da possibilidade de se dilatar ilimitadamente um instante vivido por um personagem.
Cabe aqui a frase famosa de Borges em “O Aleph”: “O que vi foi simultâneo; o que descreverei agora será sucessivo, porque a linguagem assim o é”. Essa possibilidade de infinita subdivisão desse instante psicológico em tempos simultâneos foi uma das grandes conquistas da literatura praticada por esses autores.