Durante alguns anos da década de 1970, trabalhei na organização do Congresso Nacional de Violeiros, de Campina Grande. Alguém me perguntou uma vez quanto eu ganhava. Resposta: não ganhava nada, era feliz. Tinha um bom pretexto para passar dias, noites e madrugadas conversando sem parar com cantadores de viola. Com o que aprendi nesses anos formei uma poupança de onde faço saques diários até hoje, e que está longe de se esgotar.
Uma das minhas atribuições era fazer parte da Comissão de
Seleção – a comissão que escolhe os assuntos e os motes que serão sorteados no
palco, em cima da hora, para que os cantadores improvisem. Todo ano eu me
auto-nomeava para essa comissão, e era aprovado pelos verdadeiros organizadores
do Congresso, os membros da ARPN (Associação de Repentistas e Poetas
Nordestinos): José Gonçalves, Ivanildo Vila Nova, José Laurentino, Santino
Luiz, Moacir Laurentino, Juvenal de Oliveira...
Um mote que forneci num desses Congresso deu o que falar:
Se não fosse o valor do nordestino,
em São Paulo não tinha arranha-céu.
Os repentistas reclamaram que o mote era “ruim de rima”,
porque só admitia poucas palavras: escarcéu, troféu, xaréu, mundéu... Eu
argumentei que tinha mil outras: cordel, anel, coronel, Babel, mel, fel... E
ninguém aceitava. A rima tinha que ser exata. Argumentei que o som era o mesmo,
e que rima-se pelo som, não pela grafia. Mas o Colosso da Tradição não arredava
pé. Cantador gosta de dificuldade!
(É por isso que quando uma vez recitei Morte e Vida Severina, de João Cabral,
para alguns deles, ouvi o comentário: “É, a linguagem é bonita, a crítica
social também, mas ele rima qualquer-coisa com qualquer-coisa...”)
Algum tempo depois, lembrei-me que não sou cantador, sou,
como João Cabral, um mero beneficiário indireto do que eles produzem; e compus
uma série de glosas ao meu próprio mote, cantadas em variações da melodia do
martelo agalopado.
Quando fui morar em Salvador em 1977, iniciei uma
parceria musical com Zelito Miranda, quando ambos fazíamos parte do Teatro
Livre da Bahia, sob a direção de João Augusto, em encenações memoráveis como Oxente Gente, Cordel (1978).
Hoje em dia Zelito incendeia multidões com seu “forró
temperado”, e ainda canta várias músicas desse tempo, de quando participávamos
juntos das famosas “coletivas musicais” de uma época em que, vejam só, a grande
queixa dos músicos baianos é que não tocava música baiana nas rádios de
Salvador, a não ser os discos dos tropicalistas e dos Novos Baianos.
“O Valor do Nordestino” era um desses trabalhos em
martelo agalopado que eu e ele cantávamos juntos, alternando os versos, no
Restaurante Universitário, no Teatro Castro Alves, no Teatro Vila Velha, nos
palcos improvisados da Ufba e nas Residências Universitárias de que Salvador
era cheia.
No espetáculo Oxente
Gente, Cordel esta canção era um dos números musicais da nossa dupla, “O
Galo de Campina” e “Zé Miranda de Serrinha”.
Fizemos um sem-número de parcerias que nunca foram
gravadas, mas esta aqui ficou parcialmente registrada por Zelito num DVD:
https://www.youtube.com/watch?v=KzUYYnlh_B4
(a música está em 54:04)
Abaixo, a letra original completa, que acabei publicando no
folheto (hoje uma raridade!) que acompanhava a peça do Teatro Livre.
Quem vê tanta avenida e edifício,
construção, catedral e viaduto,
muitas vezes nem pensa no matuto
que lutou com suor e sacrifício,
exercendo a dureza de um ofício
sem pensar em medalha nem troféu,
confiando que alguém de lá do céu
compensasse o rigor do seu destino:
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.
Operário da construção civil
em São Paulo ou no Rio de Janeiro
dá um duro danado o mês inteiro
e o que ganha não chega a ser 3 mil.
Vem de lá do Nordeste do Brasil
faz igreja, faz ponte, faz motel,
faz a vila onde mora o crioléu
e faz casa de luxo pra granfino:
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.
Quando vem lá do norte ele não passa
de mais um joão-ninguém desempregado
e com tudo que vê fica espantado:
com a pressa, o barulho e a fumaça.
Vai dormir sobre o banco de uma praça
sem emprego, a vagar de déu em déu,
se cobrindo com as folhas de papel
de um jornal semanário ou matutino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.
A cidade possui um ar cinzento
que irrita a garganta e o pulmão
e no meio da tal poluição
se eleva a floresta de cimento:
espigão de escritório e apartamento
tem a torto e a direito, e a granel,
e quem faz esas torres-de-Babel
é o nortista migrante e peregrino:
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.
Ele fez pavilhões no Anhembi
fez Congonhas e Ibirapuera,
Interlagos e a Via Anhanguera,
o hotel Hilton, o Othon, o Normandie;
ele fez os degraus do Morumbi
onde a massa alvinegra da Fiel
nos domingos faz festa e escarcéu
grita gol, solta bomba e canta hino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.
Quando vem lá do norte ele não traz
nem bagagem, nem roupa, nem dinheiro,
traz somente a herança de vaqueiro:
duas mãos, a coragem, nada mais...
E constrói avenidas e canais,
constrói posto pra Esso e para a Shell,
constrói torre e antena da Embratel
e constrói a boate e o cassino.
Se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.
Nordestino em São Paulo ou Guanabara
é tratado dum jeito diferente
porque lá no Nordeste toda a gente
tem respeito a seu nome e sua cara.
Mas no Sul é chamado “pau de arara”,
“paraíba”, “baiano” ou “tabaréu”:
quando fala com gente de anel
só lhe tratam por “zé” ou “severino”...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.
Nordestino no Sul é cidadão
que não vale uma prata de dez réis:
quase sempre nem pode pôr os pés
nesse prédio que fez com a própria mão.
Vez por outra ele cai da construção
e o destino se torna mais cruel:
fica morto, a família fica ao léu,
e ninguém diz o nome do assassino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.
A tarefa que exerce é muito dura,
muito mais que a do próprio arquiteto:
faz coluna, parede, piso e teto,
e o cimento com a pedra ele mistura;
faz com viga e concreto a estrutura,
faz o forro, o lambril, põe o painel;
quando acaba a pintura com um pincel
chega um rico, e se torna o inquilino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.
Houve um tempo em que o homem do sertão
quando estava faminto e injustiçado
tinha um rifle, um facão bem amolado,
e virava Corisco ou Lampião.
Hoje em dia ele vai num caminhão,
chega lá, constrói ponte e faz hotel;
mas vai lendo um folheto de cordel
que é pra não se esquecer de Virgolino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.
·
Alguns detalhes nessa letra, que ainda sei de
cor quase por inteiro, são bem “de época”. Nomes de hotéis e logradouros, por
exemplo, eu tirei dos jornais – quando escrevi estes versos eu não conhecia São
Paulo, onde só desembarquei justamente para a encenação da peça onde eles eram
cantados.
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Um conselho aos jovens: saibam que toda vez que
vocês mencionarem cifras monetárias numa letra (“e o que ganha não chega a ser
3 mil”) o teor desse verso vai oscilar dramaticamente ao longo das décadas, de
acordo com a inflação. Em 1977 (consultei agora) o salário mínimo era de Cr$
1.106,40 cruzeiros, e a primeira versão da letra referia-se a “2 mil”. Era um
dos versos mais chatos de cantar, porque cinco anos depois o mínimo já estava
em torno de 23 mil.
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“Crioléu” parece uma rima forçada, mas na época
era uma palavra posta em circulação por Henfil, no Pasquim. A editora Codecri, que o Pasquim manteve durante anos, ganhou seu nome de um hipotético
“Comitê de Defesa do Crioléu”, inventado nas tirinhas do irmão de Betinho.
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“Se cobrindo com as folhas de papel de um
jornal semanário ou matutino...” – qualquer fã de Jackson do Pandeiro
reconhece aí uma alusão clara à canção “Meu Enxoval” (“com quatro mil réis eu
compro o enxoval: Diário da Noite e a Última Hora”).
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“A herança
de vaqueiro: duas mãos, a coragem, nada mais”. Não foi intencional, mas
ainda acho este verso um comentário inconsciente ao de Carlos Drummond (“Tenho
apenas duas mãos e o sentimento do mundo”).
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“Vez por
outra ele cai da construção”: ecos inevitáveis de Chico Buarque
(“Construção”, 1971) e do filme de Ruy Guerra (A Queda, 1978).
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“Quase
sempre nem pode pôr os pés / nesse prédio que fez com a própria mão.”
Referência também inevitável a outro grande sucesso da época, a canção
“Cidadão”, de Zé Geraldo: “Tá vendo aquele edifício, moço, ajudei a
levantar...”