domingo, 6 de abril de 2025

5169) "Flow" e a arte de narrar (6.4.2025)



 
Flow (2024), dirigido por Gints Zilbalodis, é um filme feito na Letônia, e que ganhou recentemente o Oscar de Melhor Animação. Está em cartaz em vários lugares pelo Brasil afora. 
 
O  principal encanto narrativo de Flow está sugerido no próprio título, que indica a noção de fluir, de fluência, de fluxo, de um fluido que escorre sem se deixar reter. 
 
Esta imagem provém, é claro, da situação inicial do filme. Uma floresta cheia de animais (e sem seres humanos visíveis) é invadida de repente por uma inundação, devido a um tsunami ou outro fenômeno parecido. As águas invadem tudo, elevando-se irresistivelmente, em poucos minutos. 




A narrativa acompanha um grupo de quatro animais unidos pela fuga e pelas circunstâncias: um Gato, um Cão, um Lêmur e uma Capivara. Eles se esbarram durante a fuga, brigam, afastam-se, reaproximam-se, ignoram-se, salvam-se mutuamente. 
 
Tudo isto ocorre numa dinâmica de surpresas, improvisos, atitudes espontâneas, tudo condicionado  pelos problemas imediatos que um deles, ou o grupo, é forçado a enfrentar. 



 
Flow é uma lição de narrativa porque de minuto a minuto aparece uma situação nova; um problema inesperado; uma solução salvadora; uma consequência não-prevista dessa solução; um re-arranjo de comportamento para contornar esse novo obstáculo; a chegada de um personagem novo; a hostilidade inicial desse encontro; o desequilíbrio de forças que um minuto atrás pareciam ter negociado satisfatoriamente os respectivos espaços. 
 
E tudo isto sem o benefício de um diálogo sequer. 
 
Os bichos de Flow não são bichos humanizados como os da Disney ou da Pixar, que não passam de seres humanos que pensam, falam, agem e vivem como seres humanos, mesmo tendo forma exterior de animais – como o Pato Donald e o rato Mickey. 
 
Em Flow, os bichos parecem se comportar da maneira instintiva e arisca dos respectivos bichos da vida real – o gato age como um gato qualquer, a capivara como uma capivara, e assim por diante. Suas atitudes não são as de bichos capazes de raciocinar, prever, deduzir como seres humanos. São atitudes de bichos que, diante de um perigo ou de uma vantagem, agem de acordo, como um bicho o faria. 




Claro que existe um trabalho sub-liminar de humanização nesses personagens, permitindo-nos deduzir ou prever muitas de suas ações. São as ações que nós, espectadores torcendo pelo seu sucesso, esperamos que eles pratiquem. 
 
A animação do filme, ao que se diz, foi feita com o software Blender, um software tão acessível que muitos amigos meus disseram: “Tenho no meu computador... Não é dos melhores, mas é bastante bom.”  Levou cinco anos. 
 
E cabe à animação projetar nesses animaizinhos mais uma tintura de verossimilhança, dando-lhes os movimentos característicos dos animais, algo que certamente requereu muitas e muitas horas de observação e de reprodução minuciosa, principalmente no personagem Gato, o que mais aparece e que arrasta consigo a narrativa. 




Graças a isto, aceitamos que aquele gato parece de fato um gato e se move, caminha, pula, escapole, esgueira-se e briga como gato. Essa verossimilhança física nos ajuda a aceitar que nos momentos mais fantasiosos da ação é mesmo um gato que está fazendo aquilo – p. ex., algumas acrobacias mais heróicas. 
 
É algo equivalente, na extremidade oposta do espectro, ao que os gibis de Walt Disney conseguem com a turma de Mickey e Donald. Essa turma se comporta de maneira tão inconfundivelmente humana que rapidamente qualquer criança aceita suas aventuras e seu universo, sem perguntar por que razão um deles é um rato de calças e o outro um pato sem calças. 
 
Os bichos de Flow têm essa plausibilidade visual (graças à boa animação) e psicológica (graças ao bom roteiro) para que os aceitemos totalmente como bichos, mesmo naqueles instantes em que, para corresponder às exigências cada vez mais dramáticas da história, eles precisam fazer coisas que bicho nenhum faria com tal fluência. Como quando eles, refugiados num barco à deriva, começam instintivamente a manejar a vela e o leme. 


 
E aí voltamos à questão do fluxo, do desenrolar contínuo e sem descanso da narrativa. É uma narrativa que nada tem de hitchcockiana, mas parece seguir ao pé da letra um dos lemas de Alfred Hitchcock: “Se a ação for suficientemente fascinante e suficientemente rápida, o público não terá tempo de se perguntar se aquilo é plausível ou não”. 
 
Flow tem cerca de uma hora e meia de duração, não tem tempos mortos. Os animais fogem das águas que se elevam, sobem em árvores, sobem em barcos, deixam-se levar pela correnteza, são atacados por pássaros, se viram como podem. 
 
Não há seres humanos na história. A correnteza os leva às ruínas de uma cidade, mas são ruínas já muito antigas, sem relação com o tsunami presente. Quem construiu aqueles palácios, aquelas muralhas, já se extinguiu há muito tempo. Os animais não parecem guardar memória alguma daquele ambiente. 
 
Seu mundo é um eterno presente, como o dos animais em geral parece ser. O passado existe, mas só o passado recente; e o presente, um compasso de espera até a próxima decisão de sobrevivência. 
 
É uma narrativa que parece levar em conta um princípio posto em prática por muitos ficcionistas, seja da literatura, do cinema, etc.  É o da narrativa onde só conta o que acabou de acontecer, ou, como dizem alguma “a narrativa Fibonacci”. 
 
A série de Fibonacci, para quem não conhece, é um artifício matemático com mil e uma utilidades. É uma série infinita de números onde cada novo número a ser adicionado é simplesmente a soma dos dois anteriores. 
 
Eis a série de Fibonacci em sua versão básica: 
 
1 – 1 – 2 – 3 – 5 – 8 – 13 – 21 – 34 – 55 – 89 - ... ... ...
 
Cada número é a soma dos dois que o antecedem: 89 = 55 +34; 55 = 34 + 21; e assim por diante. 
 
Este princípio pode ser mais ou menos aplicado à narrativa de ficção. Sem muita exatidão, claro, para não virar uma obrigação mecânica. Mas como um recurso que pode ajudar naqueles momentos em que o escritor não sabe com muita clareza o que fazer em seguida. 
 
O princípio básico deste recurso pode ser expresso assim: A próxima cena a ser escrita precisa desenvolver elementos que estavam presentes na última e na penúltima
 
Isto não é uma obrigação. É uma possibilidade útil. 
 
Até porque outro recurso importantíssimo é justamente o reaparecimento de algum elemento (um personagem, uma situação, um local, etc.) que o espectador tinha visto meia hora atrás, e do qual já tinha esquecido. Quando aquilo reaparece, e reaparece de maneira dramática, com impacto, ele pensa, subconscientemente: “ih, é mesmo, tinha esse detalhe, nem me lembrava, mas é isso mesmo”. 
 
O efeito “série Fibonacci”, no entanto, lida com outra tática. A tática de fazer algum malabarismo com elementos que o espectador ou o leitor acabou de conhecer, tem ainda vívidos na memória, e muitas vezes espera algum desenvolvimento. Situações tipo “ih, agora eles conseguiram isto, daqui pra frente tudo vai ser diferente”. 
 
A narrativa flutua com segurança entre o grande conflito (como os bichos sobreviverão à inundação?) e os conflitozinhos menores – principalmente quando os quatro conseguem se refugiar no barco-a-vela e isso produz uma série de pequenas rivalidades, pois cada um quer uma coisa diferente a cada momento. 


 
Flow é um filme de ação. É engraçado dizer isso, porque no linguajar de hoje em dia “filme de ação” implica sempre em ação humana violenta, em confrontos físicos, brigas de arma em punho, e assim por diante. A ação não-humana deste filme torna-se humana pelo grau de empatia que conseguimos desenvolver para com um gato que tenta não morrer afogado; e com o nosso grau de entendimento desses pequenos conflitos intra-grupo, em que os bichos não são muito diferentes de nós. 
 
Flow levou cinco anos em preparação, é hoje o filme de maior sucesso na história da Letônia, um país com menos de 2 milhões de habitantes. Um estátua do Gato foi erigida em sua homenagem na capital, Riga. 


 




quinta-feira, 3 de abril de 2025

5168) Brasileiro vende quase tudo (3.4.2025)



 
O brasileiro nasceu para ser comerciante, negociante. Acredito que existe sangue fenício entre nós, não porque tenha visto provas genéticas disto, mas porque cresci ouvindo dizer que fenício e comerciante são sinônimos. 
 
O brasileiro vende tudo? Não propriamente: mas o brasileiro acredita que tem comprador para tudo. 
 
Morei alguns anos no Catete, ali entre a Nona Delegacia e a Pedreira da Glória. 
 
Andava muito pelos arredores, que amo até hoje. O zero cartesiano do meu Rio de Janeiro fica no Largo do Machado. 
 
Frequentei muito a Biblioteca da Glória, na rua homônima, num prediozinho discreto, diante da calçada cheia de árvores de onde Pedro Nava deu adeus. 
 
As calçadas da Glória são geralmente largas, como eram as calçadas numa época em que os pedestres eram mais numerosos do que os cabriolés.  São especialmente largas naquele trecho em frente ao Palácio do Bispo. 
 
Recém-desembarcado no Rio, eu era (ainda sou) curioso com um monte de coisas que os autóctones nem ligam, porque aquilo faz parte da vida deles há mais de 400 anos. Mas é assim mesmo. Os que vêm da Europa se maravilham com maracujá, capivara, marimbondo, espada-de-são-jorge, jabuticaba, sagüim. 
 
Eu me maravilhava – não com a natureza local, mas com a cultura. Os nativos estendiam lonas bem largas na calçada, diante do Palácio do Bispo, com um tijolo em cada canto, e ali distribuíam coisas à venda. Eu parava e ficava computando. 
 
Um par de tênis usados, quatro torneiras enferrujadas, lápis de todos os tamanhos e às vezes sem ponta, óculos arranhados, sandálias havaianas às vezes desemparelhadas, um calidoscópio, três canecas de louça, dois pratos de ágata, um álbum de fotos, quatro sutiãs, vários gibis da Mônica. 
 
A vendedora era às vezes uma mulher de seus 60 anos, sentada no meio-fio, pano amarrado na cabeça, cigarro no dedo. Bastava a gente parar e ela abria um sorriso incompleto e fazia um gesto largo abrangendo tudo: 
 
-- Pode olhar, meu fio!... Pode escolher! 
 
O brasileiro acredita que existe comprador para tudo. E deve mesmo existir comprador para alguma daquelas coisas, porque senão aquela senhora não se animaria a descer a ladeira de Santo Amaro e expor seus cacarecos-relíquia. 
 
Alguma coisa ela devia vender! E no fim do dia, ao recolher aquela enorme trouxa sacolejante, podia parar ali mesmo na Padaria da esquina e comprar 3 ou 4 pães. Só quem já precisou de um pão sabe o que valem três ou quatro. 
 
No outro dia eu passava e mais adiante estava uma lona também sortida, vigiada por um guri de boné pra frente com uma marmitinha do lado.
 
Uma panela de pressão com tampa, um oratório de madeira faltando uma banda, três pentes e uma escova, um mapa do Brasil plastificado, duas tampas de ralo de pia, um montinho de camisetas passadas a ferro, alguns passarinhos de plástico, um chapéu preto com peninha na fita, um colete de seda, um copo de liquidificador, uma imagem do Padre Cícero, um desentupidor de pia, alguns cadernos de espiral cheios de lições copiadas, uma gravata borboleta. 



 
Existe uma lei não-escrita do comércio que diz mais ou menos assim: se você tem 200 coisas para vender e são 200 cachimbos, você só atrai um público, o dos compradores de cachimbo. Mas se você tem 200 objetos para vender e ali tem cachimbo, vaso de louça, livro, anágua, copo, prato, chinelo... você tem mais chance de vender alguma coisa. 
 
Variedade rima com oportunidade. 
 
Claro que isto não era somente na Glória. A minha querida Rua do Catete era mostruário permanente para vendedores de livros e de elepês de vinil que viram várias vezes a cor da minha carteira. Ainda hoje começa ali um próspero mercado-persa, na esquina de frente para o MacDonalds e de quina para o caldo de cana. Mas daí em diante já são tendinhas, são barraquinhas que vão até o Cine São Luiz. Já é um comércio mais profissionalizado, mais com-estrutura. 
 
O que me atrai são as lonas e as cobertas de plástico, estendidas no chão, ao ar livre. Talvez porque me evoquem os vendedores de folheto de cordel na feira de Campina. Folhetos, aliás, que rarissimamente vi pendurados em cordéis. Sempre os vi espalhados no chão com a capa pra cima, o vento da manhã fazendo drapejarem as páginas, como pequeninas bandeiras do país da imaginação. 
 
Pois é, fico poético quando vejo a poesia dessa esperança mercantil, dessa confiança de que basta expor na calçada uma coleira-de-cachorro sem cachorro para vendê-la. Há de haver em algum lugar da cidade uma pessoa com cachorro e sem coleira, capaz de parar, erguer as mãos pro céu e dizer: “Mas olhe só que sorte a minha!...” 
 
Uma coleira-de-cachorro sem cachorro, um par de bibelôs de pastorinhas, quatro canetas-tinteiro uma sem tampa, dois pares de sapato-alto feminino, um ralador de cozinha, um estetoscópio enferrujado, uma pilha de disquetes flexíveis, um cinturão com fivela redonda, um chuveiro Lorenzetti, uma bandeja retangular de plástico, uma chupeta de bebê. 
 
Outras minas inesperadas, mas promissoras, são os arredores da Praça da Cruz Vermelha (onde fica o Instituto do Câncer; arredores de hospitais são focos permanentes de aglomeração), as imediações da Central do Brasil, as saídas do metrô do Largo do Machado, alguns trechos de calçada larga na Rua México ou Graça Aranha... 
 
Uma bola de vôlei meio murcha, um monitor empoeirado, uma vitrola portátil com tampa, um espremedor-de-laranja de vidro, uma sombrinha estampada, uma figa da Guiné em madeira, uma pilha de máscaras de carnaval, quatro benjamins, um ferro elétrico, uma viseira verde de revisor, um porta-toalhas de madeira entalhada, uma pilha de CDs sem capa, meia dúzia de frascos de remédios, um telefone preto com fio, uma gravura emoldurada de Santa Luzia, vários rolos de fio elétrico de diferentes tipos, um porta-jóias em ferro fundido. 
 
A necessidade de vender alguma coisa por alguns trocados faz o pessoal arrebanhar essa troçada, trazer com esforço, arrumar com carinho, exibir com esperança. Se a gente pergunta, eles dão de ombros e dizem: “Nunca se sabe. Pode ser que interesse a alguém.” 





Um sociólogo argumentaria, com certa razão, que essas pessoas veem-se a um passo da mendicância, mas relutam em entregar-se a ela. Em vez de pedir, preferem oferecer algo em troca, preferem sentir que ainda têm algum poder de barganha, ainda participam de transações equitativas, toma lá, dá cá. Não é esmola. 
 
Isso constitui uma faixa muito específica do conceito “comerciante”, da rubrica “comerciante”. Não é simplesmente o cara habilidoso e lucreiro. Não é simplesmente o cara bonachão e regateador. Não é simplesmente o cara raposa e impiedoso com o vacilo alheio. Não é simplesmente o cara solene e crente de que está cumprindo uma missão social. 
 
É a pessoa que percebeu os mil mecanismos randômicos que movem o mundo e se entregou a eles, feliz como quem preenche com uns números quaisquer as dezenas da loteria, como quem faz sua aposta onírica na mesinha do bicho. 
 
Tudo é acaso, tudo é sorte e azar, tudo paira numa neblina de possibilidades. e tudo despenca na bigorna de uma surpresa. 
 
Não sabemos o que vai vender, nem quem vai comprar. Temos aqui os nossos produtozinhos, eles são espalhados e expostos ao dedo indicador do Acaso. Não sabemos se tem comprador pra tudo. Para alguma coisa, tem. 
 


segunda-feira, 31 de março de 2025

5167) James Joyce, os vivos e os mortos (31.3.2025)





Os Vivos e os Mortos (“The Dead”, 1987) é um filme de John Huston, baseado no conto “The Dead” de James Joyce, em seu livro Dublinenses (1914; minha edição é Dubliners, Penguin Popular Classics, 1996). 
 
É a história de um jantar tipicamente irlandês, na Noite de Reis, na Dublin de 1904, entre família e amigos. Um jantar com música ao piano, dança, bebida (sem exagero), risadas, breves momentos de tensão (todo mundo querendo se comportar bem, e se esforçando para que ninguém estrague a festa). E, no final, um casal que sai da festa para um quarto de hotel, onde a esposa conta ao marido um episódio romântico e triste de sua juventude. 
 
É basicamente isto, mas é o suficiente para que muitos escritores e críticos considerem o conto “um dos melhores da literatura inglesa”, e o filme “um dos melhores da carreira de John Huston” (que fez o filme com 80 anos, e morreu antes da estréia). 
 
O filme é também um excelente exemplo de roteiro (por Tony Huston, filho do diretor) fidelíssimo ao texto literário original. 
 
A festa de Reis é chamada de “Epifania”, e o uso comum da palavra equivale a “revelação”, aquele instante em que alguém tem a percepção súbita de uma verdade oculta ou transcendental. Vai ser difícil encontrar alguma análise do conto de Joyce que não refira esta palavra. 



(Cathleen Delany, "Tia Julia"; Helena Carroll, "Tia Kate" e Anjelica Huston, "Gretta Conroy")
 

O personagem principal do conto é Gabriel Conroy, que vai com a esposa Gretta a essa festa anual de suas tias solteiras Kate e Julia Morkan, que vivem com outra sobrinha, Mary Jane. As três são instrumentistas, professoras de música, e as mais velhas formaram gerações de músicos, que as tratam com carinho e respeito. Nesse jantar anual, parentes, amigos e colegas se reencontram. 
 
Gabriel Conroy é um personagem movediço, cheio de boas intenções e de gestos impensados. Trata as pessoas de quem gosta com uma rudeza que parece não lhe pertencer, alimenta vaidades tolas, certezas reconfortantes, e medos sem razão. Toda a história do conto/filme é uma sucessão de equívocos seus com relação às mulheres que o cercam. 
 
Estes equívocos são breves interações que Conroy inicia com o melhor sorriso e a frase mais pronta, e das quais se retira minutos depois com o rosto ruborizado, a respiração opressa, perplexo ao perceber que está enraivecido e não sabe por quê. 
 
Conroy é um homem culto (resenha livros para um jornal de Dublin, onde o próprio Joyce colaborava), cosmopolita (gosta de viajar pela Europa), sincero (no conto, seus pensamentos de ternura e admiração pela esposa chegam a ser comoventes em alguns trechos). 
 
Ao mesmo tempo, é esnobe: desiste de fazer citações literárias em seu discurso-após-a-ceia porque acha que aquele pessoal não vai entendê-las, e envergonha-se da origem regional da esposa Gretta. 




Conroy é o típico “tiozão” simpático, adepto da conversa superficial e da repetição de clichês. Logo ao chegar na casa, ele troca breves frases com Lily, a criada, que ele conhece desde que era uma garotinha. 
 
-- Diga-me, Lily – disse ele num tom amistoso. – ainda está na escola? 
-- Oh, não, senhor – respondeu ela. – Terminei há mais de um ano. 
-- Oh! Então... – disse Gabriel alegremente – imagino que um belo dia estaremos indo ao seu casamento com um rapaz, hein? 
A garota olhou para ele por cima do ombro e disse com grande amargura: 
-- Os homens de agora só querem saber de conversa e do que podem conseguir com a gente. 
(p. 202, trad. BT)
 
A resposta inesperada da garota deixa Conroy desconfortável; ele volta a lembrar dela durante a noite. 
 
Logo a seguir, quando estão dançando quadrilha, ele faz par com uma antiga colega de faculdade, Miss Ivors. Ela é uma mulher desinibida, desenvolta, politizada, e começa a lhe dar alfinetadas, deixando-o silenciosamente amedrontado. Ela o critica por escrever resenhas literárias para um jornal que ela considera politicamente reacionário (simpatizante da Inglaterra, em detrimento da independência da Irlanda). 
 
Ele não sabia como reagir àquela acusação. Pensou em dizer que a literatura estava acima da política. Mas eles eram amigos há mitos anos, suas carreiras tinham corrido em paralelo, primeiro na Universidade, e depois como professores: ele não podia se arriscar a dar-lhe uma resposta presunçosa. Continuou piscando os olhos e tentando sorrir, e murmurou frouxamente que não via nada de político em resenhar livros. (pag. 214, trad. BT) 
 
Miss Ivors é diferente da esposa dele, Gretta, cuja família vem de uma província meio desvalorizada. (Quando alguém lhe pergunta se Gretta é de lá, ele responde defensivamente: “Os parentes dela são.”) O diálogo entre Conroy e Miss Ivors começa durante uma dança de quadrilhas, onde há troca de pares, e essa alternância de alfinetadas e interrupções é bem costurada tanto no texto quanto no filme. 
 
Miss Ivors inquieta Conroy com seu comportamento anti-convencional. A certa altura, ele está conversando com outra conviva e pensando nela: 
 
Enquanto sua língua tagarelava, Gabriel tentou banir da mente qualquer lembrança do desagradável incidente com Miss Ivors. Claro que a moça, ou a mulher, ou seja lá o que ela fosse, era uma entusiasta, mas existe hora para tudo. (pág. 217) 



Gabriel é tradicionalmente encarregado do discurso principal dessa Noite de Reis, e ele já chega à festa nervoso, consultando discretamente as anotações que traz no bolso, tenso pela obrigação de ser o mais brilhante. 
 
Miss Ivors tinha elogiado sua resenha. Estava sendo sincera? Será que ela tinha mesmo alguma vida pessoal além de seu propagandismo? Nunca tinha havido um clima negativo entre os dois até aquela noite. Ele ficava nervoso ao pensar que ela estaria sentada à mesa da ceia, olhando-o enquanto ele falava, com aqueles olhos inquiridores.  (pág. 219) 
 
Um dos poucos detalhes que o filme insere e que não estão no conto é na saída de Miss Ivors: ela se despede de todos, tem um compromisso – e o filme deixa claro que é uma reunião política. Uma mulher sozinha sai de uma ceia para uma reunião política! 
 
No conto, Gabriel Conroy tenta acomodar na vida real este fato estranho. 
 
-- Mas como vai para casa? – perguntou Mrs. Conroy.
-- Oh, daqui até o cais é um pulo.
Gabriel hesitou um momento e disse:
-- Se me permite, Miss Ivors, posso ir deixá-la em casa, se precisa mesmo sair.
Mas Miss Ivors desvencilhou-se dos dois. 
-- Não me falem mais nisso. Pelo amor de Deus, vão logo para sua ceia, e não se incomodem comigo. Sou bem capaz de cuidar de mim mesma. (pág. 223)
 
Logo em seguida vem a ceia, onde Gabriel, o “sobrinho preferido” das donas da casa, tem um duplo papel de estrela. Cabe a ele não só fazer o discurso, como a tarefa de cortar e servir as fatias do ganso. 
 
Gabriel sentou-se com autoridade à cabeceira da mesa e, tendo conferido o gume do facão, enterrou firmemente o garfo no corpo do ganso. Sentia-se totalmente à vontade agora, porque era um especialista no corte da ave, e nada lhe dava mais prazer do que ver-se à cabeceira de uma mesa bem servida. (pág. 225) 
 
A ceia, a reunião dessas pessoas, ocupa três quartos da narrativa, mas sua parte mais tocante é a volta de Gabriel e Gretta Conroy para o quarto do hotel (eles não moram mais em Dublin), e ali, quando Gabriel começa a se despir e a abraçar a esposa, cheio de expectativa por aquela noite a sós, livres da casa e das crianças, vê que ela está melancólica, distante, olhando a neve que cai lá fora. 
 
É então que ele, compreensivo, carinhoso, pede para saber o que se passa na cabeça dela. Ela está tão absorta que, sem negacear, começa a lembrar uma história de amor adolescente que viveu, e que nunca contara ao marido. Uma história que lhe foi despertada por uma canção cantada naquela noite, que ela escuta da escada, “The Lass of Aughrim”. 


 
É a história de um rapaz que ela conheceu quando muito jovem, um rapaz de 17 anos, chamado Michael Furey. Não foi uma paixão adulta, sensual. O rapaz, diz Gretta, era “muito delicado”, tinha “olhos escuros, imensos! E uma tal expressão neles – uma expressão!”.  Os dois, muito novos, costumavam caminhar juntos, e ele gostava de cantar “The Lass of Aughrim” para ela. 
 
Quando a família determinou que ela iria morar longe, o rapaz estava doente, mas fugiu de casa, numa noite de neve, para despedir-se dela. Ela o avista no quintal, perto de uma árvore. Ela diz: “Vá embora, você está doente, assim você vai morrer”. E o menino diz: “Eu não quero mais viver.” 
 
“Acho que ele morreu por minha causa”, diz ela. 




São as páginas finais do conto, e os minutos finais do filme, em que Anjelica Huston toma conta da cena, uma daquelas cenas intimistas e concentradas à maneira de Ingmar Bergman. Esta cena dá uma das medidas para compreender James Joyce, porque um contista de sua época seguiria a ladeira inevitável do melodrama, com cena de ciúmes, bate-boca, alguma escaramuça física por parte do marido que se sente "traído" ao descobrir que havia algum aposento na alma da esposa a que ele não tinha acesso. 
 
Joyce faz com que Gabriel Conroy, diante de mais esta perda de conexão com uma mulher que acreditava próxima, se veja, de certa forma, e pela primeira vez, pelos olhos delas. 
 
Uma consciência envergonhada de sua própria pessoa o invadiu. Ele se viu como uma figura ridícula, agindo como um menino de mandados para suas tias, um sentimentalista nervoso e bem intencionado, perorando diante do populacho e idealizando sua própria luxúria patética, um indivíduo cheio de empáfia e digno de pena, aquele mesmo que ele tinha vislumbrado no espelho. (pág. 251) 
 
A revelação humilhante é transformada por Joyce em epifania reveladora, porque a mulher, depois de chorar e chorar, deixa-se cair na cama e adormece. Ele fica à janela, contemplando a neve que cai e pensando na vida. 
 
O ar do interior do quarto esfriou seus ombros. Ele esticou o corpo cautelosamente para baixo do lençol e deitou-se ao lado da esposa. De um em um, eles todos estavam se tornando sombras. Seria melhor passar corajosamente para o outro mundo, dentro da glória plena de uma paixão, do que definhar e apagar-se com a velhice. Ele pensou em como aquela mulher ao seu lado tinha trancado em seu coração por tantos anos a imagem dos olhos do rapaz que amara, no instante em que ele lhe disse que não queria mais viver. 
 
Lágrimas generosas encheram os olhos de Gabriel. Ele nunca se sentira daquela maneira em relação a uma mulher, mas sabia que esse sentimento devia ser amor. As lágrimas se avolumaram em seus olhos e na escuridão parcial ele imaginou estar vendo o vulto de um rapaz parado embaixo de uma árvore gotejante. Havia outras formas por perto. Sua alma estava se aproximando de uma região habitada pelas vastas multidões dos mortos. E ele tinha consciência, mesmo sem compreendê-la, da sua existência incerta e bruxuleante. (pág. 255) 
 
Conta-se que este derradeiro episódio se baseia numa confidência real, feita pela mulher de Joyce, Nora Barnacle, sobre uma paixão de adolescência. O conto seria, entre outras coisas, um relato de um processo de aceitação e entendimento da vida alheia (da autonomia e da irredutibilidade da vida alheia) por parte do escritor. 
 
Outro ângulo interessante do conto é que Gabriel Conroy parece ser um daqueles irlandeses que de certa forma acham a Irlanda constrangedora em suas limitações e seus atrasos. Ele não compreende a velha Irlanda, assim como não compreende as mulheres. Os cosmopolitas querem a Europa, mesmo que ao preço da submissão à Inglaterra. Querem “ser aceitos lá fora” – como o próprio Joyce sempre quis. Como conciliar isso com o patriotismo cego dos irlandeses? A obra de Joyce é também o relato dessa epifania, da realização de uma obra onde a Irlanda continuasse Irlanda mas acomodasse dentro de si o mundo. 

 
 
 
 
 




sexta-feira, 28 de março de 2025

5166) A arte de ver e não-perceber (28.3.2025)

 

(Dustin Hoffman, em "Death of a Salesman")
 
 
Numa entrevista ao ótimo programa Inside the Actor’s Studio (YouTube), o ator Dustin Hoffman contou um fato interessante de sua carreira. 
 
Disse ele que seu pai foi um homem com muitos altos e baixos na vida profissional. Um problema do sr. Harry Hoffman é que tinha um sonho meio impaciente de ascensão social. Assim que conseguia um emprego melhor, mudava de casa, mudava de vida, punha-se a gastar. Logo em seguida vinha um aperto de grana. E ele tinha que se mudar de novo – “para baixo”, para o lugar de onde tinha acabado de subir. 
 
Dustin afirma que essa vida atribulada do pai lhe veio à mente quando ele estava trabalhando na peça A Morte de um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, em que ele fez o papel principal numa montagem em 1984. Todos os problemas, os sacrifícios, as ilusões, etc., tudo que ele precisou botar de si no texto de Miller ele colheu de lembranças da infância, para usar no personagem de Willy Loman. Um vendedor envelhecido, que procura driblar as derrotas da vida refugiando-se num certo otimismo fantasioso. 
 
No dia da estréia da peça, na Broadway, ele estava nervosíssimo, inclusive porque o pai dele vinha assistir. Depois da peça, o pai foi abraçá-lo no camarim, elogiou o trabalho do filho, elogiou a montagem. E aí comentou: 
 
-- Mas esse seu personagem, hein?... Que fracassado, esse cara! 
 
“What a loser!” é a exclamação que o filho reconta, anos depois. Talvez Sigmund Freud ou Jacques Lacan sejam capazes de explicar esse fenômeno em que alguém vê seu tipo humano ou sua personalidade ou seu estilo de vida retratados numa obra dramática... e não o percebe. Não se vê ali. 





Não citei Freud de graça. No seu famoso ensaio O Estranho (Das Unheimlich, 1919) o doutor conta um episódio ocorrido numa viagem noturna de trem, quando o vagão deu um solavanco, abriu-se a porta de ligação com a cabine vizinha, e ele teve um vislumbre de um homem vestindo roupão e barrete de dormir. 
 
E Freud comenta: 
 
Presumi que ao deixar o toalete, que ficava entre os dois compartimentos, houvesse tomado a direção errada e entrado no meu compartimento por engano.  Levantando-me com a intenção de fazer-lhe ver o equívoco, compreendi imediatamente, para espanto meu, que o intruso não era senão o meu próprio reflexo no espelho da porta aberta.  Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a sua aparência. 
(S. Freud, Obras completas, Ed. Imago, trad. Eudoro Augusto Macieira de Souza, p. 265.) 
 
Temos a tendência de cultivar uma imagem lisonjeira de nós mesmos, até por uma questão de sobrevivência. Precisamos achar que somos isto e aquilo, porque a vida lá fora é uma máquina de moer egos, é um matadouro de auto-estimas. Já dizia Nelson Rodrigues que sem um pouco de megalomania um sujeito não consegue nem sequer atravessar a rua. 
 
Isso deve valer nas duas mãos opostas, porque quando vemos um elogio grande demais também temos o impulso de acreditar que o interlocutor está com excessos de gentileza, ou então que aquilo não se refere a nós: “Ora, que é isso... quem sou eu!...” 


 
Como a “musa” do famoso “Soneto de Arvers”, uma pequena jóia poética de Félix Arvers, escrito em 1831. O poeta confessa uma paixão oculta por uma “musa” e diz que quando ela ler este soneto tão apaixonado não chegará nunca a perceber que foi ela mesma quem o inspirou. 
 
O terceto final, na tradução de Olegário Mariano: 
 
Fiel ao dever que a fez tão fria quanto bela,
perguntará, lendo estes versos cheios dela:
“Que mulher será esta?” E não compreenderá.
 
Esse processo de não-reconhecimento ajuda, decerto, muita gente errada a imaginar-se certa. Funcionários corrompidos, patrões cruéis, administradores desonestos, cônjuges adúlteros, todos veem seus tipos sendo retratados no cinema, nas telenovelas, na literatura... e veem isso no maior dos confortos, sem bater uma pestana sequer. É claro! Nada daquilo se refere a eles. O personagem é um calhorda pelo que faz – mas ele não, ele faz algo parecido mas diferente, tem uma série de justificativas que o ajudam a pousar a cabeça no travesseiro e dormir em paz toda noite. 
 
 
 




quarta-feira, 26 de março de 2025

5165) As Máquinas do Tempo (25.3.2025)





 
Tenho com alguns filmes antigos uma relação parecida com a que muitos amigos meus têm com séries tipo Star Wars ou Star Trek. Essas séries, no cinema ou na TV, me deixam indiferente. Sinto apenas a curiosidade normal quanto a qualquer obra de FC. Vejo, gosto disto, não gosto daquilo, tenho uma vaga simpatia-a-favor, mas fica por aí. 
 
Por essa razão, já fui acusado de insensibilidade por pessoas que ficam com lágrimas nos olhos ao assistir pela décima vez O Império Contra-Ataca ou A Ira de Khan. 
 
Entendo total. São filmes que eles conheceram na infância. Filmes que entraram na sua mente quando, por assim dizer, o portão mental ainda estava escancarado, convidativo. 



 
Alguns filmes que a gente vê na infância deixam uma impressão muito forte. Todos os filmes? Não, somente alguns. Por que? Por mil motivos diferentes. Dos filmes que vi com 12 anos de idade ou menos, alguns são clássicos do cinema que revi depois com ainda mais entusiasmo. Outros são filmes obscuros de que lembro algumas cenas e às vezes o titulo. Os demais não deixaram marca alguma. 
 
Nunca vi Star Trek na televisão. Não passava nos canais que eu assistia em Campina Grande quando garoto. E depois dos 18 anos fiquei usando televisão apenas para ver telejornal e futebol. 
 
Até os meus 30 anos de idade, Star Trek era apenas uma série famosa sobre a qual eu lia de vez em quando nos livros e revistas. Simpatizo com algumas premissas da série, que tem uma abordagem tipo “Ciências Sociais Aplicadas ao Universo”. E me identifico com o Sr. Spock, aquela ilha de sensatez. 



 
E a série Star Wars, do ilustre George Lucas? Quando assisti o primeiro filme da trilogia, eu não era mais candidato a fã de coisa alguma. Vi esse filme com 28 anos e já com muitos anos de fazer crítica de cinema em jornal. Gostei porque na época já lia sobre a pulp fiction das revistas dos EUA. Esse filme era uma mistura daquelas revistas com a nascente tecnologia de efeitos especiais. 
 
Star Wars e suas continuações (parei de acompanhar, depois de um certo momento) são uma “fantasia tecnológica” cheia de detalhes simpáticos e de ingenuidades, de “jornada do herói” diluída e de efeitos dramatúrgicos de seriado (assim como a série “Indiana Jones”, sua contemporânea). 
 
Considerá-la o protótipo do cinema de ficção científica é uma imprudência, mas ela é o primeiro título que vem à memória do público leigo no assunto (a maioria da humanidade). 




E no entanto... Aqui nesta página há uma pequena coleção de obras de FC/fantasia que vi com 12 anos ou menos, e estes, sim, me despertam sempre a mesma reação de fascínio e afeto, a mesma reação que meus amigos mais jovens têm com as séries. 
 
Sou totalmente consciente dos seus defeitos, mas perdoo tudo, porque eles me ajudaram a passar por portas que a literatura já havia aberto. Tive sorte (acho hoje) de ter minhas primeiras experiências de “narrativas da imaginação” através da literatura, sendo forçado, com isto, a visualizar por minha própria conta os cenários, ambientes e criaturas mais improváveis da pulp fiction a que eu tinha acesso. 



 
O cinema, porém, nos traz o impacto fatal das coisas prontas, das imagens que não precisamos imaginar. E que jamais imaginaríamos, por maior que fosse nossa capacidade delirante. O delírio do mundo é maior. 
 
Ver certas imagens, contemplar certas paisagens, acompanhar certos enredos... isto provoca uma ampliação da nossa consciência do possível. Mesmo quando o que vemos é claramente impossível. Não importa. Quando vemos um desses filmes, pouco importa a linha evolutiva da linguagem cinematográfica, pouco importa a grande Arte, pouca importa o mundo sério dos adultos. É a nossa capacidade de conviver mentalmente com o impossível que está sendo testada. 
 
Quem na vida adulta se criou – como eu – no universo-paralelo da crítica literária e da crítica cinematográfica às vezes acaba perdendo esta capacidade de se deslumbrar, acaba se apegando à “qualidade estética” como elemento único para definir uma obra. “Só gosto do que é bom”. 



 
Eu sempre procurei manter as duas janelas abertas: a busca pelo que nossa cultura considera a Grande Arte, e a busca pelo que esta mesma cultura considera Lixo Inexplicável. Como no símbolo do Yin-Yang, em cada uma delas existe uma semente da outra. 
 
Ray Bradbury disse, na epígrafe de suas Crônicas Marcianas
 
É bom quando a gente recupera a capacidade de se maravilhar. A Era Espacial transformou nós todos em crianças novamente. 
(trad. BT)
 
E Bradbury, em que pese certa água-com-açúcar presente em muito do que escreveu (e há defeitos maiores por aí), nunca perdeu de vista o lado sério que a vida também tem, o lado macabro, o lado dark, o lado cruel (vide Fahrenheit 451). 

 
Uma velha ironia do mundo da FC diz que a Idade de Ouro da ficção científica é quando você tem 14 anos. E é verdade. Não foi a década de 1930, nem a de 1960, nem a época atual. Foi quando o leitor, não importa qual, tinha uma mente já capaz de entender o que era possível e o que era impossível, e ainda capaz de se apaixonar por este último. 
 
O impagável G. K. Chesterton tem, como sempre, uma boa explicação para o poder da fantasia narrativa. No capítulo “The Ethics of Elfland” do seu clássico Orthodoxy (1908), ele faz um curioso paralelo entre a literatura realista e o deslumbramento da literatura de fantasia, usando crianças como exemplo. 
 
Diz ele:
 
Esse deslumbramento básico, porém, não é uma mera fantasia derivada dos contos de fadas; pelo contrário, todo o fogo contido nos contos de fadas deriva dele. Assim como todos nós apreciamos histórias de amor porque temos o instinto do sexo, todos gostamos de contos fantásticos porque eles tocam o nervo do nosso antigo instinto da fantasia.

 

Isto pode ser comprovado pelo fato de que quando somos crianças ainda muito novas não precisamos de contos de fadas: para nós, basta que seja um conto. A mera vida real já é suficientemente interessante. Uma criança de 7 anos pode se excitar ao ler que Tommy abriu a porta e viu um dragão. Mas uma criança de 3 anos se excita ao saber que Tommy abriu uma porta. Meninos gostam de histórias românticos, mas criancinhas gostam de histórias realistas – porque as consideram românticas. Na verdade, uma criancinha talvez seja a única pessoa, creio eu, capaz de ler um romance realista moderno sem ficar entediada.  (trad. BT) 

 

 

Acho que a idéia de Chesterton tem bastante fundamento, sem que precise ser uma regra universal. Todos sabemos o quanto criança pequena gosta mais da caixa-do-presente do que do presente. O presente pode ser um cyber-polichinelo “made in Taiwan” com balloons holográficos em cinco idiomas, mas o danado do guri só quer se esconder na caixa. 
 
É claro. Primeiro a gente conquista a realidade, o mundo de verdade, o mundo realista; e então a gente decola nos voos da imaginação. Talvez seja por isto que no Brasil a literatura realista continua a ter tanto peso: não sabemos ainda quem somos, não enxergamos (= não temos a ilusão de que enxergamos) o país por inteiro, e um espelho nos seduz mais do que um quadro de Salvador Dali. 
 
A literatura de imaginação é para as pessoas (ou os países) que já se deslocam no “mundo real” com segurança bastante para pegar uma pista e decolar rumo às estrelas. É justamente nesse momento da vida – digamos 14 anos, para acompanhar a citação lá em cima – que começa a Idade de Ouro da FC, porque o garoto ou a garota que lê já conhece o bastante do mundo para perceber o quanto aquilo é impossível, o quanto aquilo é diferente, o quanto aquilo é essencial. 




 






sábado, 22 de março de 2025

5164) Lendas urbanas do teatro (22.3.2025)



 
Voltando para casa, alta noite, sozinho, pelos becos escorregadios da Internet, me deparei com um saite inteiro dedicado a “Lendas Urbanas do Teatro”.  Aquele folclore relativo a montagens teatrais, lembrando de cenas hilárias ou inacreditáveis, mas que todo mundo garante que aconteceram (no teatro de sua cidade, sempre), porque “um primo da namorada do meu irmão estava lá, e viu”. 
 
Tenho certeza de que tudo aquilo é verdade, aconteceu de verdade: na Romênia, na Itália, no Cazaquistão, em Cajazeiras, em San Diego, em Bundanyabba. 
 
 
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(imagem meramente ilustrativa)

 
A “Paixão de Cristo” é o foco principal desses acontecimentos, talvez por ser uma das peças mais montadas no mundo inteiro. Com a ressalva de que não é “uma peça”, e sim o mesmo mito cristão decorado, aprendido, recontado, reformulado e refeito diante do público momentâneo e eterno. 
 
Público que – somos humanos – não pôde conter o riso diante daquela montagem (em Burma, no México, em Maricá?) em que após a crucificação de Jesus, alguém se aproxima, sozinho no palco. Meu Deus... é Judas!  Black-out parcial, holofote só sobre ele, que vem cambaleando, pedindo perdão pela infâmia que cometeu. Arremessa para longe as moedas, que tilintam (e são mesmo trinta; uma assistente-de-direção virginiana encarregou-se deste tributo à verossimilhança). 
 
Aproxima-se da árvore fatal, aos brados: 
 
-- Traí meu mestre! Mereço a morte! 
 
Ele pára a um metro de distância: o galho é alto, e a corda que alguém deveria ter deixado guardada ali não está à vista. O público está com a respiração suspensa, e percebe o problema. 
 
Judas, num rasgo de improvisação, abre os braços dramaticamente: “Traí meu mestre! Quero morrer!” – e atira-se de cabeça no laguinho que há aos pés da árvore, tornando-se o primeiro Judas Afogado da história eclesiástica. 
 
***



(Vittorio de Sicca no teatro)

 
O teatro é um risco permanente diante do Acaso, e por isto é um convite permanente ao Improviso. Monte no tigre, e boa viagem. 
 
O grande Vittorio de Sicca contava que, ainda muito jovem, nos seus tempos de figurante anônimo e faminto, cabia-lhe entrar em cena no terceiro ato e entregar uma carta ao Marquês, ou Conde, ou algo assim. 
 
Quando foi na hora da cena, o rapazinho respirou fundo, entrou no palco e viu ali, bem à sua frente, o Monstro de Mil Rostos -- a platéia.  Não resistiu e caiu desmaiado. 
 
Era um bom motivo para correr o pano, mas (diz De Sicca) o ator do Marquês era macaco velho: levantou-se, recolheu a carta, pegou o rapazola desmaiado nos braços, e comentou com a platéia, enquanto o levava para a lateral: 
 
-- É... preciso esconder a chave da minha adega...   
 
E a casa veio abaixo. 
 
O teatro, como o futebol, vale por esses gols de bicicleta em que alguém tem meio segundo para conceber e executar uma obra-prima. 
 
 
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(imagem meramente ilustrativa)

 
Outra de Semana Santa aconteceu em Campina Grande. É o que dizem – eu não presenciei, mas o que as pessoas presenciam em Campina não está no gibi. 
 
Fernando Silveira foi um grande radialista, da geração de meu pai. Por muitos anos escreveu todo tipo de programas para a Rádio Borborema. E escrevia também os famosos dramas religiosos, de vez em quando levados ao palco do Teatro Municipal. Entre eles a “Paixão de Cristo”. 
 
Reza a lenda que numa dessas montagens de Semana Santa a produção resolveu caprichar. Figurinos de primeira, cenários realistas, trilha sonora bem produzida. E na cena crucial da Última Ceia, depois de um blecaute de alguns segundos, a cena se iluminava para revelar no centro do palco a mesa tradicional, ocupada somente de um lado, como nos quadros. 
 
Jesus Cristo e os apóstolos estão acomodados... e a Ceia era uma ceia de verdade. Segundo testemunhos, foram encomendados na Cabana do Possidônio, que não ficava tão longe assim, seis galetos completos, com arroz, farofa, feijão verde, batata frita e molho vinagrete. Servida a mesa, Cristo e os apóstolos se sentaram, aspiraram com fervor aquele cheiro irresistível... Estavam todos famintos depois de uma tarde inteira de “ensaio geral com roupa e luz”, e atacaram os galetos com fúria. 
 
Foram os dez minutos mais silenciosos da História do Teatro. 
 
 
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(David Suchet)

 
Esta eu vi contada num programa pelo próprio protagonista, o ator David Suchet, o ótimo “Hercule Poirot” da série de TV.  

Diz ele que na adolescência, quando fazia teatro estudantil, houve a estréia de uma peça, com o auditório do colégio lotado de pais, professores, agentes, profissionais de teatro. O segundo Ato deveria começar com o palco todo às escuras e no meio da escuridão o personagem de David chamava, com voz trêmula: 
 
-- Mamãe?... Mamãe?... 
 
Nem bem ele lançou seu chamado, a mãe dele, do meio da platéia, gritou: 
 
-- Estou aqui, David!... 
 
A gargalhada geral foi estrondosa, as luzes se acenderam, o diretor da escola veio ao palco e disse: 
 
-- Senhoras e senhores, vamos voltar e recomeçar o segundo ato. Pedimos a compreensão de todos e o seu silêncio... Senhora Suchet. 
 
E ele conclui dizendo: “Eu sempre a amei por isto”. 
 
 
********



(“Ensaio Droxtop”, Campina Grande, 1974)

 
Saber improvisar sem quebrar a cena é tudo. Aprende-se isto como se aprende tanta outra coisa na profissão artística: dando com a cabeça na parede. 
 
Muitas pessoas em Campina Grande hão de lembrar o grupo Droxtop, criado nos anos 1970 por Gutenberg Assis. Era um grupo de teatro experimental: quinze rapazes e moças que se apresentavam num palco escuro, iluminado pela famosa “luz negra” das boates (na época, uma novidade inquietante). 
 
Era o “Ensaio Droxtop”: música clássica, atmosfera gótica, todos vestindo túnicas brancas, com os rostos pintados de tintas fosforescentes, recitando textos próprios, e de poetas que iam de Augusto dos Anjos a Carlos Drummond e outros. 
 
Convivi muito com o grupo, porque era amigo do diretor e de grande parte do elenco (tínhamos a mesma idade), e na época eu era casado com Lili, Arly Arnaud, que era uma das integrantes. Assisti inúmeras apresentações. 
 
Certa vez o grupo se apresentou em Mossoró (ou Caicó?). Havia uma cena muito dramática em que dois atores, Sarmento e Jomário, agarravam um terceiro, Zé Antonio, e o amarravam a uma cruz, com cordas de verdade; depois, iam até um fogareiro de brasas, aceso no palco, onde estavam esquentando dois ferros de marcar gado (de verdade). Empunhavam esses ferros e um dos dois dizia: 
 
-- E o que faremos agora com este canibal? (apontando Zé Antonio amarrado na cruz). 
 
-- Vamos ferrá-lo! 
 
Era um momento dramático, porque os ferros estavam mesmo em brasa. Claro que o ator tinha amarrada ao peito, por baixo da camisa, uma placa de couro, que recebia os ferros, chiava, e produzia uma fumaça impressionante, enquanto o “canibal” se contorcia em dores histriônicas. 
 
Nessa noite em Caicó (ou foi Mossoró?) fizeram a cena, mas após o momento “oooh” a camisa de Zé Antonio pegou fogo. Os dois carrascos deram-lhe as costas e não perceberam: incorporados nos personagens, de ombros contraídos, brandindo os ferros flamejantes, fitavam a platéia com carrancas ameaçadoras, porque era justamente a hora de se retirarem do palco, deixando ali o crucificado. 
 
Ocorre que, na hora de se voltarem, perceberam que o crucificado se debatia em vão com as cordas, porque havia chamas em seu peito e a fumaça lhe subia pela cara. Jomário (ou foi Sarmento?) teve a presença de espírito de apontar para ele e bradar, por iniciativa própria: 
 
-- E este canibal?  O que fazemos com ele?! 
 
E Sarmento (ou foi Jomário?) saltou à altura da situação, apontando-o e bradando: 
 
-- Vamos levá-lo... para as profundezas do Inferno!!! 
 
Desamarraram o semi-desmaiado Zé Antonio e o conduziram para a coxia, onde alguém já o esperava com o providencial balde dágua. 



("Ensaio Droxtop", Campina Grande, 1974)