segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

0696) O rico, o pobre e o sábio (11.6.2005)



O rico gasta o que quer; o pobre gasta o que pode; o sábio gasta o que precisa. 

Quem disse isto foi o Budista Tibetano, entre uma baforada e outra de seu narguilê árabe (e não me perguntem o porquê desta salada étnica: são os mistérios do Oriente). 

Um grande erro que cometemos é julgar que mais dinheiro é sempre uma coisa positiva. Dinheiro só resolve alguns tipos específicos de problemas, e os efeitos colaterais que muitas vezes traz consigo não valem a pena. 

Dinheiro em excesso é como açúcar em excesso, antibiótico em excesso. Tudo demais é veneno, já dizia minha mãe, que entendia dessas coisas melhor do que o Oriente inteiro.

Tem gente que, mal começa a ganhar dinheiro, joga seu patamar de gastos lá pra cima. Não é um patamar 50% maior não, é coisa de duas ou três vezes mais. Ocorre muito no meio artístico, no qual muitos anos de sofrida ralação sem resultado algum parecem de repente ser premiados com um sucesso estrondoso da-noite-para-o-dia. 

O sujeito sente-se enfim recompensado de tantas noites passadas em claro, tantos chás-de-cadeira em salas-de-espera, tanta peregrinações pelas redações de jornal com duas fotos e um relise, tantos malabarismos para fazer no fim do mês o rodízio entre as contas que vão ser pagas e as que vão ser acumuladas.

Quando menos se espera, começa a entrar dinheiro a rodo! O trabalho decola, o cara não sabe mais onde botar tanta grana. Um cara me disse uma vez: “Abri contas em três bancos, velho, porque um banco só não comporta”. 

O cara aluga outro apartamento no mesmo andar, para transferir seu escritório e seus cinco mil livros. Ou compra um carro para a mulher e dois para os filhos, no espaço de três meses. Conheço um que fez uma festa de aniversário e pagou passagem de avião e hospedagem para uns quarenta amigos de infância.

Uns continuam a ganhar dinheiro, outros não; estes regridem para o estágio anterior e mergulham em depressão. Acharam que as vacas gordas tinham vindo para sempre; quando se deram conta, estavam todas no Spa do Brejo. 

E não tem coisa mais sofrida do que ter experimentado o gostinho do dinheiro e depois ficar sem ele. Me lembra a frase de Fellini, referindo-se à época em que A Doce Vida (1960) estourou no mundo inteiro: 

“Pensei que o sucesso tinha finalmente chegado, que dali para a frente minha vida seria outra. Mas nenhum filme meu voltou a dar tanto dinheiro, nenhum chegou nem perto. Eu pensava que aquilo era o começo do meu sucesso, e acabou sendo o ponto mais alto de minha vida”.

O alívio de quem começa a ganhar “um dinheiro legal” é tão grande que muitas vezes não lhe ocorre que aquilo seja passageiro, e que daí a alguns anos ele vai voltar para a boa e velha pindaíba. É o drama de quem toda vida foi proibido de gastar muito, e de repente sentiu-se na obrigação de gastar demais. 

É como dizia o Budista Tibetano: “Não adianta dar um milhão de dólares, a um mendigo: um ano depois, ele vai estar te pedindo dinheiro pro cafezinho”.










0695) Não perdoaremos teu sucesso (10.6.2005)



De vez em quando, ao folhear os jornais (ou melhor: ao clicar através de suas telas) paro para ler alguma coisa sobre o processo de Michael Jackson, acusado de pedofilia. Tenho uma pena danada desse rapaz. Jackson era um daqueles menininhos chatos do Jackson Five, com cabelos de arapuá e vozes de “castrati”, que cantavam coisas adocicadas como “Music and Me” e “Ben”. Esta, curiosamente, é uma canção de amor de um rapaz para um ratinho, e foi composta por Alex North para a trilha sonora do filme Willard de Daniel Mann (1971), em que o dito rapaz, um sujeito meio sociopata, comunica-se mentalmente com ratos e os utiliza para vingar a morte de sua mãe (Elsa Lanchester), eliminando o cara que perseguiu sua família (Ernest Borgnine). É um filme tão impressionante que escrevi por causa dele o poema “Calafrio”, publicado em meu livro Sai do Meio que lá vem o Filósofo. (Foi refilmado em 2003, com Crispin Glover no papel título).

Sempre tive uma simpatia instintiva pelos desajustados, pelos excêntricos, pelos que não se encaixam. E sempre tive um medo mórbido de psicopatas, tarados e serial-killers, por saber que é muito tênue a linha que separa os dois grupos. Willard é um sujeito imaturo, inadaptado e com ódio à humanidade, e o fato de Jackson, então um garoto, cantar a música-tema do filme sempre me pareceu uma premonição do seu futuro. Jackson estourou pra valer nos anos 1980 com dois videoclips arrasa-quarteirão, no tempo em que video-clip era uma novidade estética, e não a burocracia obrigatória de hoje. “Beat It” e “Thriller” mostraram um Michael Jackson que ninguém esquece, compondo, cantando e dançando com uma fúria criativa que o fez quebrar todos os recordes.

Eu acho, no entanto, que nos EUA existe uma organização secreta composta de homens pálidos, gordos, milionários, com frios olhos azuis, que se reúnem às vezes na biblioteca de uma mansão, fumando charutos caríssimos e tomando uísque mais caro ainda, os quais ficam olhando para uma TV, mudando de canal, à procura de um negro que esteja fazendo muito sucesso. Quando o sucesso é grande demais, eles murmuram uns para os outros: “Não perdoaremos”. Daí em diante, é só uma questão de tempo. No primeiro vacilo, o reinado do crioulo cai por terra. O que está acontecendo com Jackson é o mesmo que aconteceu com Mike Tyson: um negro que se ofusca com a própria glória, perde a noção da realidade, e começa a cavar a própria cova. É tudo que os graves senhores de terno precisam para transferi-lo do “Hall of Fame” para a vala comum.

Jackson é um excêntrico, um maluco, sexualmente infantil, emocionalmente retardado, possivelmente um pedófilo. Deve ter cometido, por desajustamento e imaturidade, a maioria dos delitos de que é acusado. É uma das figuras trágicas de nossa época, porque nada nele foi “normal”, nada nele foi comum. Jackson é uma caricatura, uma exceção, uma colagem de distorções e exageros. É a cara do sistema que o produziu.

0694) Ritmo e Poesia (9.6.2005)



A primeira vez em que vi a palavra norte-americana “rap” ser usada para descrever uma canção da MPB foi quando Caetano Veloso lançou “Língua”: “Gosto de sentir minha língua roçar na língua de Luís de Camões...” 

Foi uma música de alto impacto, não só por ser (sob qualquer ótica) uma canção poderosamente poética, mas porque a imprensa nacional pôde registrar com alacridade o desembarque triunfal de mais um modismo americano em solo pátrio. 

Todas as vezes que um brasileiro consegue fazer com um mínimo de competência alguma coisa que os americanos criaram e lançaram, vemos nisto um sinal de maturidade estética e independência cultural. Paciência; há coisas piores.

Coisa pior, por exemplo, é quando os americanos começam a fazer algo que já fazíamos há séculos, e nós por aqui ficamos de queixo caído com a inventividade deles. É o caso do “rap”, sigla que já diz tudo: “Rhythm And Poetry”. Este estilo de cantar consta basicamente em criar uma base rítmica qualquer e fazer fluir por cima dela um discurso verbal que segue a sua cadência, mas com flexibilidade bastante para adiantar, retardar, fazer saltos e síncopes, parar aqui e pular para encaixar mais adiante. 

É uma demonstração de habilidade musical e verbal, porque mesmo que o teor harmônico e melódico seja deste tamanhinho (geralmente é), é a “levada” produzida pelos instrumentos (ou bases eletrônicas, ou palmas-e-estalos-de-dedos) que impõe a moldura rítmica onde as frases têm que se encaixar.

Nossos emboladores de coco fazem isto há pelo menos um século, com os pandeiros ou os ganzás fornecendo a base rítmica, e a Poesia Barroca Ibérica fornecendo os modelos básicos (quadra, décima, verso setissílabo) em cima dos quais eles criam variações. 

Tanto o Coco quanto o Rap podem servir para cantar versos decorados ou para improvisar versos na hora. A principal distinção a se fazer entre os dois é que existe mais música, mais melodia do Coco do que no Rap, assim como existe no Coco mais rigor métrico, pois o Rap em muitos momentos vira uma mera prosa ritmada, sem a presença de “cortes” regulares que correspondam às linhas de uma estrofe.

Generalizações assim são perigosas, porque cada artista traz um pequeno desvio em relação a qualquer regra que um teórica venha a identificar. A própria canção de Caetano citada acima tem um formato muito mais criativo, ritmicamente mais solto, do que a maioria dos Raps brasileiros, que em geral se limitam a um “patatí-tatí-tatá”. 

Há muitas canções com momentos de “Ritmo e Poesia” na MPB, no sentido de que contêm trechos puramente falados mas que não se afastam da base rítmica. Entre elas, “Ouro de Tolo”, de Raul Seixas; “Nem vem que não tem” com Wilson Simonal; “Avohai” de Zé Ramalho, “O Calhambeque”, com Roberto Carlos; “Deixa isso pra lá” e “Zig-Zag” com Jair Rodrigues; “Sá Marica Parteira” e a longa introdução de “Respeita Januário” com Luiz Gonzaga.





0693) O Oceano Mental (8.6.2005)




Há um conto de Greg Egan em que um grupo de astronautas embarca numa missão que deve levá-los além dos limites do Sistema Solar; é a primeira vez que uma tal viagem está se concretizando. Tudo vai bem, eles atravessam a órbita da Lua, seguem rumo a Marte, rumo aos planetas exteriores. 

De repente, coisas inexplicáveis começam a acontecer. Alguns astronautas desmaiam e ficam numa espécie de coma ou estado catatônico. Outros começam a perder a memória, ficam conscientes mas incapazes de pensar, de fixar sua atenção no que quer que seja. Um a um vão baqueando, até que a única alternativa é abortar a missão e regressar à Terra.

A resposta (que surge nas páginas finais do conto) é que essa missão demonstrou uma verdade inesperada: a consciência humana não é alguns bilhões de consciências individuais vivendo lado a lado, mas um único oceano pensante, dentro do qual cada um de nós tem direito a percepção diferenciada, devido aos órgãos dos sentidos, mas deve a maior parte de sua existência mental a esta enorme e invisível camada pensante em que nascemos e passamos a vida mergulhados. 

Mal comparando, é como um arquipélago no mar, onde as ilhas, vistas de longe, dão a impressão de serem porções soltas de terra, boiando na água, mas se olharmos por baixo veremos que ela são apenas os picos de uma cordilheira submersa. 

Ao se afastar da Terra, o ser humano perde esta parte submersa, fica restrito à conscienciazinha individual que bruxuleia em seu minúsculo cérebro. Daí para a extinção é um passo, do mesmo modo com uma brasa retirada da fogueira e colocada à distância logo se apaga.

Das inumeráveis metáforas produzidas pela ficção científica sobre o que é a nossa espécie, no Universo, poucas me parecem tão plausíveis quanto esta. Não tenho a menor prova concreta a respeito, mas intuitivamente pressinto uma verdade-verdadeira por trás deste fantasioso conto publicado numa revistinha mensal. 

Esta história tem pontos de contato com outras teorias, como a Teoria de Gaia, segundo a qual nosso planeta é um organismo vivo e uno, só que de uma espécie muito mais complexa que as espécies que conhecemos (animais e vegetais); também se liga à teoria do Inconsciente Coletivo, de Jung, segundo a qual nossa consciência individual tem por baixo de si imensas camadas ocultas de recordações armazenadas em nosso DNA ou coisa parecida.

A metáfora criada por Greg Egan nos ajuda a aceitar que só somos o que somos e só pensamos o que pensamos porque estamos mergulhados neste oceano mental, neste mar humano e invisível. É pela presença dele que nossa mente é ativada, e que conseguimos fazer sentido das coisas que vemos. 

Somos como um rádio que só reproduz o que capta, e se for levado para um lugar onde não cheguem as ondas das transmissões, ele ficará mudo. Ficção científica, “por suposto”, mas talvez seja esta a minha maneira de acreditar cientificamente na existência da alma.






0692) Mangue não, companheiro (7.6.2005)


Anos atrás eu estava viajando a trabalho pelo interior do Nordeste, e quando almoçava no restaurante do hotel, no meio da tarde, comecei a ver um jogo decisivo entre seleções da Europa, acho que era Holanda contra Alemanha. Tinha outro hóspede na mesa ao lado e começamos a torcer pela Holanda. Eu estava torcendo porque isto era na época em que a seleção holandesa tinha dois craques absolutos, o crioulo Gullitt e o branquelo Van Baasten (acho que o atual técnico do Barcelona, Rijkaard, jogava nessa mesma equipe). Durante o jogo (que a Holanda acabou ganhando) percebi que o cara da mesa ao lado ia se exaltando cada vez mais. E na hora em que a Holanda fez um gol, ele vibrou muito, olhou em redor, e soltou essa pérola: “É pena que não tem nenhum alemão por aqui!”

Neste breve episódio está encapsulado um aspecto interessante do futebol, que compreendo, mas que me é absolutamente estranho. Grande parte das pessoas gosta de futebol meio a contragosto; eles não gostam muito do jogo em si, eles gostam é de tripudiar do adversário. Passam o jogo inteiro sem prestar atenção ao campo: tomam cerveja, fumam, contam piada, consultam o relógio... O jogo em si é-lhes indiferente. A arte futebolística, as jogadas fenomenais, as defesas impossíveis, os gols de placa... tudo isto passa pela sua alma sem deixar rastro. Mas na hora em que seu time marca um gol ou que o juiz encerra um jogo que eles ganharam, correm de imediato para o local mais próximo da torcida adversária, e tome palavrão.

Eu sou o contrário disto. Não, não quero me achar melhor do que ninguém, e penso até que esse pessoal está exercendo uma forma barata de psicoterapia que, dentro dos limites, acaba tendo uma função catártica e terapêutica. Mas eu assisto futebol em busca da grande jogada, da odisséia de auto-superação do atleta e do time, em busca das extraordinárias façanhas. Para mim, o adversário não é um inimigo a ser espezinhado: é um mero coadjuvante, cuja presença ali é necessária para a honra e glória do Meu Time.

Mangue não, companheiro. O torcedor adversário, no momento da derrota, deve ser tratado com compunção e respeito, como o sujeito que acabou de perder um ente querido. Nossas emoções devem ser no sentido da elevação do nosso Clube: sua bandeira, seu escudo, seus gloriosos símbolos. Devemos celebrar nossas vitórias porque elas exprimem a realização do nosso Destino, daquilo que viemos cumprir na Terra. Mangar de quem perdeu é pecado; Jesus fica triste.

Mas se tiver mesmo que mangar, mangue numa boa. Não queremos o fim dos nossos adversários. Que proveito teríamos se eles decretassem falência, dispensassem os plantéis, cerrassem as portas? Sobre quem iríamos tripudiar? Diante de quem desfilaríamos com a bola nos pés, que redes teríamos para estufar e fazer a terra tremer com nosso brado vitorioso? Longa vida aos nossos adversários. A presença da torcida adversária, afinal, é um dos ingredientes mais saborosos das nossas vitórias.

0691) A volta do “Catatau” (5.6.2005)



Já falei aqui no JPb (“O Catatau”, 17.8.2003) sobre este livro de Paulo Leminski, que teve duas edições em 1975 e 1989. A Travessa dos Editores, de Curitiba, lançou em 2004 uma terceira edição crítica e anotada, estabelecida pela Fundação Cultural de Curitiba, sob a supervisão de Décio Pignatari. Capa dura, papel branco, o livro traz até a página 269 o texto do assim-chamado romance, e daí até a 425 um respeitável pacote complementar: iconografia, índice onomástico, análise dos procedimentos neológicos, plano geral da obra, resumo biográfico e fortuna crítica do autor. É o lado bom da cultura acadêmica, coitada, a quem tanto vilipendio nesta coluna. Mas, é como dizia o próprio Leminski à página 26 da 1a. edição: “Comprou um tamanduá, recebe um tamanduísta para explicar-lhe o funcionamento”.

O bom de Leminski é sua salada de erudição e coloquialismo, irreverência hippie e abstração zen, e um pendor trocadilhista daqueles de confundir lacanianos: “Isso é presente que se apresente a um legítimo representante do daqui-pra-frente em nome do tudo-vai-diferente?” (p. 97) O “Catatau” não é um romance, daqui de onde o enxergo. É um monólogo poliglota, um Ur-texto, um plasma verbal primevo, ainda indiferenciado em gêneros, prévio ao Big Bang em que a Literatura se retalhou em rótulos. “Cai fora, Pai dos Burros, há carnaval aí que não previste nem preveniste!” (p. 193)

Um livro cheio de dificuldades e delícias, livro para poucos e felizes leitores, e que tem como pré-requisito o “caba” ser apaixonado pela arte da palavra. Como diz Pignatari no texto da orelha, “obras difíceis e intrigantes, em culturas progressivas e não apenas sucessivas, sempre acabam por atrair mentes perscrutadoras, que põem em causa os critérios vigentes de avaliação”. Ou, mais precisamente: “Muito comum isso de jogar um anel em alto mar e achá-lo dentro de um peixe pescado na véspera!” (p. 169). É um livro para quem já conhece o Leminski letrista, o Leminski poeta de Caprichos & Relaxos e outros livros, e que pode se imiscuir entre as linhas do Catatau sabendo que aquela amazônia toda foi plantada por um cara só. “De que vale fazer as coisas bem se ninguém está olhando?” (p. 39)

Leminski morreu aos 44 anos em 1989. Bebia pra caramba, fumava maconha, tocava violão, era um tumulto ambulante e divertido, embora carregasse encravado na vida um nódulo de tragédia. Sua biografia, escrita por Ademir Assunção, se intitula “O bandido que sabia latim”. Foi judoca, redator de TV, roqueiro, tradutor, concretista, publicitário. “Outra vida, que esta não está dando para o gasto!” (p. 82) A Travessa dos Editores fica à Rua Des. Hugo Simas, 107, Bom Retiro, Curitiba-PR, 80520-250, fone (41) 338-9994, websaite em: http://www.travessadoseditores.com.br/. Não sei o preço do livro, mas seja quanto for, tá barato. “Pergunta tão rica precisava ficar por aí mendigando respostas?” (p. 127)

0690) Ufologia e FC (4.6.2005)



Como leitor e escritor de ficção científica, muitas vezes me vejo diante de perguntas bem intencionadas mas que demonstram uma confusão muito freqüente na cabeça das pessoas. Chega alguém e me diz: “Por que você acredita em discos voadores?” Muita gente confunde a ficção científica com a Ufologia, o estudo dos objetos voadores não identificados. Existe um certo parentesco, concordo; mas são duas coisas tão diferentes quanto escrever romances policiais e pertencer à Polícia Civil.

A ficção científica é a literatura que explora as situações produzidas por inovações científicas e tecnológicas. Aborda uma ilimitada variedade de temas e situações, dentre as quais a existência de civilizações alienígenas que espionam a terra é apenas uma percentagem mínima. Não custa lembrar que a FC é uma Literatura, um tipo de narrativa essencialmente literário. Foi a literatura, e não o cinema ou a TV, quem criou e desenvolveu todos estes temas. O fato do cinema ser hoje o rosto mais visível da FC é mais uma dessas ironias da História. A literatura de FC (infelizmente pouco traduzida no Brasil) é incomparavelmente mais rica, mais profunda e mais variada do que esse samba-de-uma-nota-só que são os seriados tipo “Guerra nas Estrelas”, “Jornada nas Estrelas” etc.

A Ufologia, por outro lado, não é literatura. Ela se propõe ser uma ciência, ou pelo menos uma atividade de pesquisa e análise de fenômenos que tem a ver com a ciência. Na verdade, a Ufologia de hoje já se divide em duas vertentes: a Ufologia Científica, que tem muito a ver com a astronomia, a astronáutica e o jornalismo investigativo, e a Ufologia Mística, que é uma espécie de religião informal com extraterrestres no lugar de anjos e de demônios.

Curiosamente, nenhum dos dois grupos (Ufologia e FC) gosta de ser confundido com o outro. Os ufólogos afirmam estar trabalhando com assuntos sérios, reais, fatos importantes para o destino da Humanidade, e não querem ser confundidos com o pessoal da FC, que está apenas inventando histórias fictícias sobre situações imaginárias. Já o pessoal da FC considera que está fazendo literatura, praticando uma forma de arte, sem outro objetivo senão o objetivo artístico, e que deve ser julgada artisticamente. Para estas pessoas, um romance sobre discos voadores é um objeto sério e real, mesmo que um disco voador não seja.

As pessoas que escrevem sobre alienígenas em geral não estão preocupadas em saber se eles existem ou não: querem apenas explorar as possibilidades narrativas que essa hipótese oferece. Quem escreve livros sobre vampiros, fantasmas, sereias, saci-pererê, centauros e outras criaturas semelhantes também não acredita em sua existência no mundo real, mas precisa de sua existência no mundo da narrativa. A diferença entre a FC e a Ufologia é que a FC cria histórias imaginárias sobre seres cuja existência é irrelevante, e a Ufologia busca provar ou desmentir, de forma factual, a existência desses seres.

0689) O evangelho segundo Lucas (3.6.2005)



Se eu fizesse uma lista dos melhores diretores de cinema de ficção científica, George Lucas só iria aparecer lá pelo 20o. lugar, e mesmo assim só por critério técnico. Não gosto dos seus filmes. São mecânicos, vazios, sem dramaticidade, especialmente estes dois últimos A Ameaça Fantasma e A Revolta dos Clones (ainda não vi este que saiu agora). Roteiros banais dirigidos sem emoção, bons atores interpretando mal, diálogos ridículos, um clichê atrás do outro. Na série de “Star Wars” salvam-se os dois primeiros filmes; o resto, se passar no liquidificador e coar não dá um curta.

O número de maio da revista Wired traz um matéria sobre Lucas que dá o que pensar. Ele confessa que está de saco cheio de super-espetáculos com efeitos especiais, e diz que agora quer dirigir e produzir os filmes que sonhava fazer quando era um estudante de cinema na Califórnia. Filmes experimentais, vanguardistas, cujo destino é passar em salas especiais para pequenos públicos (“pequenos públicos” para Lucas deve ser coisa de 400, 500 mil pessoas). Lucas foi um estudante de cinema como tantos outros, que se deslumbrava com os truques e as inovações técnicas de Norman MacLaren, e com as colagens de imagem e som de Stan Brackhage. Para quem se formou nessa escola, o cinema era acima de tudo um conjunto de equipamentos (câmera, iluminação, laboratório, moviola) com os quais era possível fazer combinações de imagens e sons que tendiam, idealmente, a se aproximar da pintura abstrata. Uma espécie de ultracinema.

Não admira que tenha sido Lucas o cara que de certa forma inventou o cinema digital. A lista das inovações técnicas que ele patrocinou não cabe nesta coluna (e a descrição delas não caberia neste jornal inteiro). Isso, no entanto, acabou esvaziando seus filmes de conteúdo humano, um conteúdo que ele mostrou de forma tão promissora em Loucuras de Verão (American Graffitti), que continua a ser até hoje um estranho-no-ninho dentro de sua filmografia. Talvez não seja: pelo que sabemos é o relato do que foi sua juventude pré-cinema: carros, garotas, sorvetes, rock-and-roll, molecagens inconseqüentes.

A matéria da Wired diz, com bom-humor, que Lucas começou no cinema como Luke Skywalker, cheio de ideais e de juventude, e hoje tornou-se Darth Vader, o poderoso chefão de um império, o guerreiro do Bem que se vendeu ao poder econômico. É uma ironia apropriada, mas ao mesmo tempo é algo meio injusto com um cara que revolucionou o cinema. Queiramos ou não, técnica é uma coisa fundamental, e o que Lucas e seu grupo fizeram é comparável às invenções do cinema sonoro e do cinema colorido. Para conquistar isto, vale a pena o cara sacrificar uma carreira de bom cineasta. Não faz falta! De bons cineastas o Brasil está cheio, mas não é todo dia que um sujeito cria um império tecnológico e possibilita se fazer cinema do jeito que um pincel faz uma pintura a óleo.

0688) Uma pintura de graça (2.6.2005)


(O quadro de Steve Keene)

Tem coisas que a Internet não cria, mas encoraja, pelo seu poder de minimizar as relações Espaço e Tempo. Uma bobagenzinha torna-se um fato social relevante: é tudo rápido, não se arrasta por semanas e meses. Tem um cara chamado Steve Lodefink que está oferecendo em seu saite (http://www.finkbuilt.com/blog/?p=30) um quadro do pintor Steve Keene, de graça, a quem der a melhor justificativa para ficar com ele. Basta isto: “Eu acho que mereço ganhar esse quadro de graça porque...” – e aí cada um dá a melhor razão que lhe vier à cabeça. Lodefink ainda se oferece para remeter o quadro de graça pelo correio – infelizmente, só dentro dos EUA, embora ele garanta a concorrentes estrangeiros um abatimento de 10 dólares no frete.

O quadro não é de se jogar fora, e o dono o conseguiu por apenas três dólares. Pelo que vi no saite, Steve Keene é um desses artistas cuja proposta é pintar uma quantidade absurdamente grande de quadros, cada um levando apenas poucos minutos. Uma espécie de repentista da pintura a óleo. Isso lhe possibilita botar muitos quadros em circulação. Barateia o preço. E dá origem a concursos como este.

Tem gente que manda qualquer tipo de motivo. “Eu pedi primeiro”, diz o primeiro cara que escreveu. Outro diz: “Meus pais me espancavam, eu tive que fugir de casa, e colei uma pele de animal sobre minha pele para poder trabalhar num circo”. Outros descrevem a horrível (e certamente fictícia) decoração atual de seus apartamentos. Outro diz que vai vender o quadro e gastar o dinheiro com garotas de programa. Outro diz que a pintura lhe lembra a bela silhueta industrial de Detroit, onde passou a infância.

Enfim: são até agora, quando escrevo estas linhas, 229 respostas, e não me interessa quem vai ganhar. O interessante é que a instantaneidade proporcionada pela Internet faz surgir, como que do nada, uma pequena comunidade de troca de informações, confissões, piadas, provocações, etc., tudo em função de uma oferta casual de um objeto cuja existência era totalmente desconhecida para todas estas pessoas até instantes atrás.

O quadro de Steve Keene é um “wampeter”, um objeto, segundo Kurt Vonnegut, em volta do qual forma-se uma comunidade de corações e mentes que se relacionam através dele e em função dele. A Internet proporciona velocidade e visibilidade de comunicação, e isto passa à frente de critérios como “importância” “significado”, “valor”, etc. Tudo isto vem depois, gerado pela própria mecânica da troca de informações. A Internet é uma usina permanente de wampeters, de banalidades que num piscar de olhos se transformam num objeto relevante. É este o espírito dos blogs, dos fotologs, das homepages pessoais, dos saites, das comunidades Orkut tipo “Eu adoro sorvete de graviola” ou “Eu vi o jacaré do Açude Velho”. O lado bom disto é que nunca foi tão fácil tornar visível algo que você, caro leitor, ache realmente importante. Acha que tudo que tem aí é bobagem? Então vá à luta.