Fiquei sabendo recentemente que está para sair uma reedição deste livro mitológico (em todos os sentidos) da lavra de Luiz Berto, prosador de mão cheia que de certa forma justifica a reflexão ouvida de um amigo meu, carioca, bastante idoso, anos atrás: “Eu acho que o Nordeste só presta porque todo nordestino é doido”.
Não, não somos doidos, mas vivemos num mundo que nos
demanda outras prioridades perceptivas. Vemos coisas que os outros não veem –
não por algum defeito do aparelho vedor, mas porque o mundo aqui se organiza
por outros critérios de urgência e de aderência afetiva.
O Romance da Besta
Fubana (Belo Horizonte: Itatiaia, 1984) é um romance na linha que alguns já
quiseram chamar de “realismo mágico” por equiparação à obra de alguns autores
latino-americanos, mas que tem outra substância.
O livro conta os eventos que tiveram lugar na cidade de
Palmares em 1953, com a convergência de uma série de fatos espantosos: uma
romaria messiânica em torno da mulher do mendigo Zé da Ferida, sujeita a
fenômenos de levitação e falas estranhas; uma revolta de raparigas que depois
de provocadas baixaram o cacete na polícia local; o apedrejamento do Forum e da
Prefeitura por uma multidão que não sabia ao certo por que estava fazendo aquilo;
a insurreição de esquerda chefiada verbalmente pelo sapateiro Joaquim,
comunista calejado de pisas na delegacia.
Esses tumultos todos acabam sendo encampados pelo
inevitável “homem certo no lugar certo”: o paraibano Natanael, violeiro
repentista, camelô, intrujão, conversador-mor, estrategista de ambições alheias
e manipulador de expectativas.
Ele se torna o Líder da Revolução, com o auxílio do cego
Chico Folote, que mantém um harém de ex-donzelas a seu serviço; do horoscopista
Telles Júnior, raizeiro, filósofo particular, pesquisador da História Secreta
da Humanidade; da ex-rapariga Amara Brotinho, que ao ser anexada por Natanel se
revela uma liderança nata, santa dos descamisados; e do citado sapateiro
Joaquim, cujo faro bolchevista radical o leva a pegar carona na primeira
insurreição popular que apareça, e calhou de ser aquela.
O clímax acontece na Parte IV do romance, quando a Besta
Fubana desce dos céus e pousa no teto do Mercado, a única estrutura física
capaz de suportá-la.
A Besta Fubana largou um bocejo longo e exauriu um hálito quente,
soltando labaredas com extensões só possíveis de serem medidas em anos-luz.
Línguas astronômicas de fogo e de gases quentes que percorriam o universo numa
velocidade descomunal. Um dos respingos de labareda, após longa viagem pelo
infinito, alcançou o Nordeste Brasileiro e provocou a grande seca de 1932. Uma
das secas mais terríveis de que já se teve notícia naquela terra sofrida.
Recém-acordada do sono secular, a Besta Fubana revirou os olhos numa preguiça
de mulher acabada de ser comida. E, nesse revirar de olhos, perscrutou o escuro
recanto do universo que tinha escolhido para dormir. (p. 232-233)
A prosa de Luiz Berto é de uma segurança absoluta ao
narrar os fatos mais escandalosos ou inverossímeis; seus personagens, como o
Quaderna do Romance da Pedra do Reino
de Ariano Suassuna, mantêm o tempo inteiro um olho no destino supremo da
Humanidade e outro nos varejo das próprias vantagens. Quando a Revolução
triunfa e Natanel distribui ministérios aos ajudantes citados acima, começa uma
segunda luta pelo Poder, desta vez uma luta interna e mortal.
Chico Folote era o encarregado do Ministério das Coisas, dos Santos e
das Coisas Santas, responsável, entre outras atribuições, pela organização das
festas populares e pela arrecadação dos impostos da feira. Os demais impostos
eram administrados pelo Ministério do Povo e das Águas, entregue a Joaquim. O
Ministério das Mulheres e dos Bichos, chefiado por Amara Brotinho, se
encarregava dos assuntos femininos, da administração da zona boêmia e da
pecuária da República. O Ministério dos Fenômenos e dos Estudos, responsável
pela cultura, pela educação e pela saúde do povo, ficou nas mãos de Telles
Júnior. (p. 148)
Ou seja:
O Ministério estava entregue a um sapateiro, um cego esmoler, uma
prostituta e um astrólogo, capitaneados pela competência e pela sabedoria de um
cantador de viola. (p. 226)
O livro se conecta por um lado com a obra de Ariano Suassuna
e de seu mestre, também palmarense, Hermilo Borba Filho. Por outro lado, lança uma corrente alternada
na direção de livros como As Pelejas de
Ojuara (1986) de Nei Leandro de Castro, que compartilha seu frenesi escatológico
e fescenino, além da hospitalidade com que recebe criaturas mitológicas.
Esse clima alucinatório-coletivo está presente também no
visionário A Cachoeira das Eras
(1979) de Carlos Emílio Corrêa Lima e, com maior aderência ao lado histórico e
factual, nos romances do ciclo de Princesa, de Aldo Lopes (O Dia dos Cachorros, 2005, e
A Dançarina e o Coronel, 2014), com a reconstituição de revoltas populares
que começam no confronto político e terminam nas lendas passadas de boca em
boca.
Há referências à
clef a pessoas reais; não apenas o presidente Getúlio Vargas e o governador
pernambucano Etelvino Lins, mas os poetas Juharez Correia (sob seu próprio
nome) e Orlando Tejo, este sob a transparente alcunha de Ornaldo Timbu.
O livro de Berto é mais um elo numa corrente de romances
nordestinos meio fantásticos, mas costurados com minúcia realista e extrema fidelidade
na recriação de tipos populares, ambientes, costumes. É um regionalismo
endoidecido, por assim dizer; uma recomposição da realidade num nível meio
delirante de entendimento. Para poder comportar a distância abissal entre seus
próprios pontos extremos.
Ariano Suassuna, através de Quaderna, dizia não praticar
o estilo regionalista, mas o estilo régio.
Com isso, aludia à mania de grandeza do personagem. Todo mendigo tem algo de
monarca, quando mais não seja porque no seu mundo mental, onde ninguém mais tem
interesse de conviver, ele é déspota absolutista, mesmo que não tenha uma
bolacha seca pra jantar.
A Grande Líder partiu majestosa, ganhando os insondáveis abismos do
infinito. Voltava para a eternidade. Seu vasto terreiro de onde era natural. Novamente,
Sua trajetória deixou no céu um rastro de fogo, que foi visto de Oriente a
Ocidente. Coriscos e extensas labaredas clareavam o escuro da noite. As tropas
do governo olharam assustadas a grande massa esfumaçada e luminosa que
levantava voo de dentro da cidade sitiada. Imensa nave partindo para uma viagem
interplanetária. Uma visão encantada e fantástica, que haveria de ficar na
memória das pessoas por todo o sempre. (p. 287)