emprega quando escreve
instrumento cortante:
bisturi, simples canivete.
Ela aprendeu que o lado claro
das coisas é o anverso
e por isso as disseca:
para ler textos mais corretos. (...)
(Marianne Moore e Francis Ponge)
A essa poética ele justapõe logo a seguir a do francês
Francis Ponge:
Francis Ponge, outro cirurgião,
adota uma outra técnica:
gira-as nos dedos, gira
ao redor das coisas que opera.
Apalpa-as com todos os dez
mil dedos da linguagem:
não tem bisturi reto
mas um que se ramificasse. (...)
A comparação seguinte é entre dois pintores, por um lado
muito parecidos, por outro muito diferentes:
Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda. (...)
adota uma outra técnica:
gira-as nos dedos, gira
ao redor das coisas que opera.
Apalpa-as com todos os dez
mil dedos da linguagem:
não tem bisturi reto
mas um que se ramificasse. (...)
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda. (...)
(Um Miró e um Mondrian)
Mondrian, também, da mão direita
andava desgostado,
não por ser ela sábia:
porque, sendo sábia, era fácil.
Assim, não a trocou de braço:
queria-a mais honesta
e por isso enxertou
outras mais sábias dentro dela. (...)
E assim ele prossegue, fazendo duplas de falsas
oposições: Cesário Verde x Augusto dos Anjos, Juan Gris x Jean Dubuffet.
O que faz ele, em síntese? Ele compara artistas de
temperamentos diferentes, estilos diferentes, culturas diferentes, que produzem
obras bem diferentes umas das outras. E todos estão certos. Não mostra o Sim
contra o Não, não mostra essa estética martelada em nossas cabeças em tantas
repetições didáticas de que sempre existe em tudo o “Jeito Certo” e os demais
são “Jeitos Errados”.
andava desgostado,
não por ser ela sábia:
porque, sendo sábia, era fácil.
Assim, não a trocou de braço:
queria-a mais honesta
e por isso enxertou
outras mais sábias dentro dela. (...)
(Um Juan Gris e um Jean Dubuffet)
Cada poeta ou artista desse grupo pensa, trabalha e
produz dentro de uma área totalmente diversa da área dos outros. E todas são
áreas delimitadas pelo que cada um deles sabe e pelo que não sabe fazer. Nenhum
deles “está errado”. A poesia ou a pintura de um não é desmentida, cancelada ou
tornada obsoleta pela poesia e pela pintura do outro.
E ao mesmo tempo Cabral não está defendendo nenhuma visão
ingênua de “ah, todo mundo é artista, todo poema é bom”. Nem todo artista é
bom. Assim como entre esses pares de obras não existe a vitória de um Sim
contra um Não, também não existe aí uma infinita plantação de Sins onde todos
os poetas e todos os artistas têm o mesmo valor.
Existem, nessas parelhas comparadas, vitórias simultâneas
de um Sim e de outro Sim que procuram coisas diferentes, por técnicas
diferentes. E a descrição que Cabral faz de cada uma dessas técnicas mostra que
esse Sim é um Sim duramente conquistado, e que não basta autointitular-se poeta
ou artista para receber um Sim como crachá.
Claro que no universo dos simples leitores teremos sempre
que aceitar a existência de pessoas que adoram os versos minimalistas de Paulo
Leminski e detestam os versos quilométricos de Walt Whitman, e vice-versa. Sempre
existirão as pessoas que adoram Vieira da Silva e não suportam Remedios Varo, e
vice-versa. É o mundo dos leitores. O leitor procura (e está certo em fazê-lo)
aquilo com que se identifica, a pintura que lhe mostra o que ele consegue ver,
a poesia que lhe diz o que ele consegue escutar.
No mundo dos poetas e dos pintores, no entanto,
rivalidades assim não fazem sentido. Como na parábola de Kafka, para cada
pessoa existe uma porta, e essa porta está ali só para ela. Para penetrar, é
preciso trazer algo único, individual, intransferível. No
portão desse mundo, há uma placa com a terrível pergunta lembrada no poema de
Carlos Drummond: “Trouxeste a chave?”.
O mundo dos artistas só pode ser acessado por quem traz a esse mundo um Sim.
(Augusto dos Anjos e Cesário Verde)