Por causa do atraso de um voo noturno, precisei pernoitar longe de casa para pegar um avião na manhã seguinte, e a companhia aérea me botou num hotel. Foi entrar no quarto, ligar a TV e ver que estava começando uma exibição de A Conversação (The Conversation, 1974) de Francis F. Coppola.
Anotei isso no capítulo das coincidências, porque uma semana
atrás eu estava placidamente em casa tomando a minha Itaipava e revendo pela enésima
vez Blow-Up (1966) de Michelangelo
Antonioni, o filme em que o de Coppola se inspirou parcialmente. (Numa
entrevista que está no YouTube, ele diz que só viu Blow Up depois de já estar trocando idéias com o colega Irwin
Kershner a respeito de um filme sobre espionagem eletrônica.)
O filme de Antonioni é sobre fotografia, o de Coppola é sobre
gravação de áudio, mas ambos contam a história de um profissional calejado, introspectivo,
desdenhoso, que registra à distância o encontro de um casal de jovens e depois,
manipulando os próprios registros, percebe a trama e a execução de um
assassinato.
Como se dissesse que toda história de amor tem por trás de si
uma dança, uma coreografia de movimentos para escapar à morte, sem conseguir.
No filme de Coppola, o personagem é Harry Caul (Gene Hackman),
um “araponga” escutador de conversas alheias, ou, como eles gostam de se
apresentar, “um profissional da área de segurança, vigilância e informação”. Ele
é contratado por um magnata para espionar o casal e gravar suas conversas. Os
dois (de um modo assustadiço e dissimulado) se encontram durante a hora de
almoço, numa praça cheia de gente, no centro dos prédios de escritórios, e falam
andando sem parar, justamente como quem teme estar sendo espionado.
Harry Caul desenvolveu uma técnica própria com 3 microfones de
distâncias variáveis, resultando em 3 diferentes rolos de fita que ele vai
depois filtrar, ampliar, equalizar e justapor. As cenas de gravação e depois da
recuperação das falas são um primor de montagem (Richard Chew; a edição de som
é de Walter Murch), comparável às cenas semelhantes da revelação e ampliação
das fotos em Blow Up (montado por Frank
Clarke).
Há duas cenas notáveis, uma logo depois da outra. A primeira
delas é a surrealista convenção de arapongas, de espiões eletrônicos. Coppola
afirma que essas convenções existiam de fato mas foram tornadas ilegais depois
de 1968. Eles recriaram uma delas para o filme. São estandes e mais estandes de
sujeitos anônimos, nerdosos, envelhecidos, oferecendo suas engenhocas de áudio
e vídeo camufladas; e Harry Caul, que até então a gente vê como um zé-ninguém,
um mero sujeito arredio e mal-humorado, pela primeira vez é tratado como um
ídolo, um craque, “o maior de todos”.
Logo em seguida, Caul leva os amigos (e concorrentes) para o
armazém onde faz seus trabalhos. Ali se segue uma complexa sequência de
diálogos e marcações onde fica evidente o ambiente cobra-engolindo-cobra em que
vive esse pessoal de vigilância. Ninguém confia em ninguém, todos dão tapinhas
nas costas de todos, todos estão prontos para furtar os segredos dos colegas na
primeira chance que tiverem.
Coppola narra o filme com uma precisão detalhista que está a
léguas dos ambientes limpos e vastas extensões de cor uniforme que a gente vê
em Blow Up. Gene Hackman, soturno,
introvertido, azedo, tem uma atuação minimalista e brilhante, usando roupas
desmazeladas, relacionando-se de forma patética com as mulheres. Toca sax
sozinho em casa, acompanhando um disco. Seus únicos instantes de prazer são
quando se relaciona com instrumentos.
Há algumas piscadelas de olho na direção de Blow Up, como a música de jazz (Herbie Hancock no primeiro filme, Walter
Shire no seguinte), sem falar no mímico de rosto pintado que passa perto do
casal na praça, numa clara referência ao filme inglês.
O personagem de Harry Caul é também muito mais complexo e mais
bem construído do que o Thomas de David Hemmings. Anos atrás, Caul gravou
conversas políticas entre dois homens a sós, num barco, no meio de um lago; uma
façanha técnica tão impossível que um deles atribuiu o vazamento da conversa ao
outro, e mandou torturá-lo e matá-lo junto com a mulher e o filho. Caul é católico,
e nunca conseguiu se perdoar por isso.
A Conversação é um filme
sobre tecnologia e, curiosamente, eu imagino que um verdadeiro profissional da
tecnologia digital de hoje, anos-luz à frente do material analógico e magnético
usado pelos personagens do filme, entende tudo que se passa ali e se entusiasma
do mesmo jeito. Porque não é o aparelho pesadão e antiquado que conta, é a
mente de quem maneja o aparelho. São as pequenas jogadas criativas que se pode
produzir com um aparelho qualquer; é o conhecimento refinado do que cada
aparelho pode fornecer.
A manipulação política e a manipulação criminosa da tecnologia
nunca vão deixar de existir, e ela repousa sempre (para benefício do criminosos
e dos políticos) na existência desses nerds quarentões, que vivem para o
técnica, que não pensam noutra coisa senão a técnica, que têm dificuldade até
de ir para a cama com uma mulher porque a cabeça está pensando em filtros de
áudio, em microfonagem de feixe direcional, em bugs miniaturizados e camuflados sabe-se lá onde. Eles só pensam nisso.
Coppola ganhou com este filme uma Palma de Ouro em Cannes, três
indicações ao Oscar e uma carrada de prêmios por aí. Curiosamente, mesmo sendo
um dos seus melhores filmes (para algumas pessoas, o melhor de todos) ninguém
fala mais nele.
Hoje, na época das câmeras big-brother espalhadas pelas
metrópoles, dos milhões de celulares fotografando tudo em todo canto, da
espionagem do Estado e contra o Estado, da Mídia Ninja, das fake news, do Photoshop e do “audio
doctoring”, é talvez mais presciente e mais atual do que os filmes que o
diretor fez sobre a Máfia e sobre a Guerra do Vietnam.