domingo, 24 de outubro de 2010

2382) A arte de se defender (24.10.2010)



Nos anos 1990 fui um grande fã do time de basquete do Chicago Bulls. Vivia ligado na TV a cabo assistindo os jogos da NBA, na época em que Phil Jackson era o técnico e Michael Jordan era o craque do time, ladeado por Scottie Pippen e outros. Era um timaço capaz de deslumbrar até um leigo como eu, que não percebo as sutilezas do jogo. A questão é que Jordan fazia coisas que contrariavam as leis da gravidade e do movimento, coisas que fariam até um marciano coçar a cabeça, incrédulo, e rasgar seu livro-texto de Física. O Bulls era um time com a volúpia de atacar – e uma incapacidade genética de se defender. Ganhava jogos por 110x100, ou por 130x120, o que equivale a ganhar no futebol por 4x3 ou 5x4. E houve uma época em que, escaldada por derrotas surpreendentes e dolorosas, a torcida do Bulls (cuja euforia e orgulho vejo hoje reproduzidos na torcida do Barcelona), quando via o time perder a bola, começava um coro ensurdecedor: “Defence! Defence!”. Já imaginaram o Nou Camp inteiro gritando: “Defesa! Defesa!”?

Temos a tendência de considerar que no esporte o belo é atacar, e que é feio defender-se. Por que? Talvez porque o torcedor não-apaixonado está mais interessado em ver um grande jogo, e não na vitória de A ou B. Para ver um grande jogo, é preciso que os dois times ataquem muito. E afinal de contas a palavra “goal” significa “objetivo” em inglês. O jogo existe para que gols aconteçam. Evitar os gols do adversário deve ser encarado sempre como uma segunda prioridade, não como a principal.

E, de um modo geral, para atacar é preciso um mínimo de talento e de tática, e para defender-se, aparentemente, não. Conduzir a bola até a área e acertar o gol requer habilidade individual e coletiva, inclusive para evitar que os defensores interrompam a jogada. Quanto a estes, basta-lhes interromper a jogada e sua função já foi cumprida. Devem existir umas 100 maneiras de fazer um gol, e umas 100 mil de evitá-lo. Prensar a bola, dar um bico pro lado, empurrar para a lateral, jogar para escanteio, chutar pro alto... Qualquer coisa que o zagueiro-zagueiro faça chama-se missão cumprida. Não precisa técnica nem muito talento. Aparentemente.

Há, contudo, quem faça da defesa uma arte. O futebol italiano é quase todo assim. Vi numa revista inglesa uma bela descrição de como as seleções italianas costumam se comportar numa Copa: “Atacadas, elas se retraem como uma mola de metal, e, ao retomar a bola, atiram-se para diante como o bote de uma serpente”. É mais ou menos como jogava o Inter de Milão do técnico José Mourinho, recente campeão europeu, eliminando inclusive o melhor time do mundo, o Barcelona. Em vez do chutão pra cima, uma ocupação sistemática do campo por um semicírculo de jogadores cercando a bola onde ela vá, prontos para tomá-la e desfechar o contra-ataque. Para muitos um futebol feio. Para os gurmês, um raro exemplo de defesa elevada à categoria de grande arte e de refinada estratégia.