domingo, 27 de abril de 2008

0380) Devido a problemas técnicos (8.6.2004)




Dias atrás eu estava num grupo de pessoas e alguém pôs um CD com gravações antigas de Luiz Gonzaga. Era uma coletânea da gravadora “Revivendo” de Leon Barg, em Curitiba, que pesquisa o acervo dos velhos discos em 78 rotações e os transpõe para CD. São gravações dos anos 1940, ou seja, com tecnologia de mais de 60 anos atrás. Alguém lamentou a má qualidade do som. Outro concordou dizendo que faltava “amplitude nos graves”. Outro lamentou que não fosse possível uma “distribuição melhor de canais”. Ficaram o tempo todo sentindo falta dos recursos técnicos de hoje, enquanto eu ficava me deliciando com a música de ontem. Onde é que esse pessoal anda com a cabeça?!

Eu dizia: “Rapaz, esquece o estéreo, escuta o baião”, mas não adiantava. Eles tentaram me explicar que para poder fruir adequadamente uma música é preciso ter uma riqueza de espectro sonoro que só é possível conseguir hoje, em gravações feitas com a tecnologia de hoje. O que foi gravado no passado, infelizmente, por melhor que tenha sido a intenção, será sempre uma coisa pálida, acanhada, atrofiadazinha. Ouvir um quarteto de Mozart num disco 78 rpm nunca poderá se comparar à riqueza sonora de ouvir Celine Dion numa gravação de verdade.

Ok, reconheço, estou fazendo uma caricatura da situação, mas isto não invalida meu raciocínio. Não quero dizer que estou mais certo do que os outros, mas que cada época forma diferentes tipos de sensibilidade. E hoje em dia o que está se formando, pelo que vejo, é uma geração inteira de ouvidos mimados. Mimados pela limpidez, potência, profundidade, amplitude, nitidez e volume das novas tecnologias de gravação; mimados a tal ponto que o fenômeno musical em si deixa de estar em primeiro lugar, recua para um plano secundário. O que importa é a qualidade do estímulo sensorial: a qualidade do produto estético é irrelevante.

Serei contra a tecnologia? Jamais. Muitos amigos meus, de perfil tradicional-nacionalista, vêem com horror minha paixão pela guitarra elétrica, pelo sintetizador, pelos loops & samples da música eletrônica. Passo a vida aqui nesta coluna elogiando a tecnologia digital, a Internet, todas as bijuterias da pós-modernidade. Mas me desculpem: todo esse conforto está deixando o ouvido de vocês parecido com aquela princesa do conto de fadas, que dormia em cima de oito colchões superpostos, e se botassem uma ervilha embaixo deles ela não pegava no sono de tanto desconforto. Os ouvidos da geração digital tornaram-se incapazes de abstrair um zumbido, de ignorar um chiado, de relevar um arranhão. Ouvem com os tímpanos, não com o cérebro. Ao escutar um concerto de piano, sua atenção não está voltada para o piano, e sim para a caixa de som. Saudade mesmo eu tenho é do grupo Premeditando o Breque, que tocava velhos chorinhos no palco enquanto um deles amassava uma bola de papel junto do microfone, para reproduzir o chiado dos velhos discos 78.

0379) Os que escutavam (6.6.2004)




A força de um bom poema reside tanto no que ele diz quanto no que ele deixa de dizer. Algo semelhante ocorre nas boas histórias de mistério, que quando se encerram parecem ser ainda mais misteriosas do que durante seu transcorrer, e nos deixam com mais perguntas do que respostas.

O poema “The Listeners” do inglês Walter De La Mare (1873-1956) sempre me produziu esta impressão. Nunca o li em tradução, e fico imaginando como se traduziria seu título. “Os ouvintes”? Não gosto: a palavra tem entre nós uma conotação muito forte de “ouvintes de rádio”, é uma palavra muito contaminada de contexto. “Os que escutam”? Não sei.

Em todo caso, o poema começa dizendo: “—Há alguém aí? – perguntou o Viajante, batendo na porta banhada pelo luar, enquanto seu cavalo mastigava a grama no solo fértil da floresta.” 

É uma noite de lua, e esse cavaleiro veio bater à porta de um casarão aparentemente deserto. Um pássaro esvoaça da torrezinha do solar, assustado pela batida, mas “ninguém se debruça da balaustrada, enquanto ele permanece ali, perplexo e imóvel.”

O Viajante bate mais uma vez, com força: “Há alguém aí?!” 

A casa está às escuras e parece abandonada, mas o poeta revela que ela está ocupada por “uma horda de fantasmas que escutam aquela voz vinda do mundo dos homens.” O Viajante sente a estranheza daquele momento, daquela ausência de respostas, e volta a esmurrar a porta com toda força, erguendo a cabeça para as janelas e bradando: “Pois digam a todos que eu vim, e que ninguém respondeu! Digam que eu cumpri minha palavra!” 

Sua voz volta a ecoar no interior sombrio da mansão. Os fantasmas o escutam, mas não ousam fazer o menor movimento. Eles ouvem quando o Viajante caminha até o cavalo; ouvem seus pés montando nos estribos, e o som das ferraduras sobre as pedras. E o silêncio retorna, mais pesado do que antes, quando o som dos cascos do cavalo se perde à distância.

Que lugar é este? Que mansão é esta? Não sabemos. Vemos o desfecho de uma história que não nos foi contada, mas que ressoa dentro de nós como as batidas do cavaleiro noturno ressoam à porta da casa deserta.

Por que esse homem voltou? Por que os fantasmas lá dentro se escondem, silenciam, fazem de conta que não o ouvem chamar? Quem é esse Viajante que vem de tão longe, a essa hora, somente para cumprir uma palavra dada?

Temos a estranha sensação de que já vimos esta cena. A sensação de que já fomos aquela pessoa que para cumprir uma promessa bate em vão à porta de uma casa abandonada; e de que já fomos aqueles que se escondem e escutam alguém batendo à nossa porta, para um acerto de contas do passado distante.

Temos a sensação de que vivemos num país de surdos, de fantasmas amedrontados, e que há um homem que bate à porta deste país, para nos lembrar de um compromisso antigo; mas não temos força para atender. Fingimos que não o ouvimos, na esperança de que um dia ele pare de nos chamar.





0378) O instrumental do arrasta-pé (5.6.2004)



(ilustração: Samuca, Diário de Pernambuco)

Coube a Luiz Gonzaga formatar o que hoje conhecemos como o forró-de-raiz, cuja instrumentação básica é o trio (que é a cara de Gonzagão) sanfona, zabumba e triângulo. 

Complementos enriquecedores a este trio podem ser o reco-reco, o pandeiro e o agogô, que por sua vez são a cara de Jackson do Pandeiro. 

Note-se que em muitas das gravações originais de Gonzaga nos anos 40 e de Jackson nos anos 50 observamos, como consequência inevitável da influência dos arranjadores e instrumentistas em cujo meio eles viviam, a presença de instrumentos mais intuitivamente associados ao samba e ao choro: o violão (fazendo a famosa “baixaria”), o cavaquinho, a flauta e o clarinete. 

Não esqueçamos também que um dos baiões de maior sucesso em todos os tempos foi “Delicado”, de 1951, no cavaquinho de Valdir Azevedo.

Quem leva a sério a definição de um formato “oficial” para o forró de raiz deveria fazer um estudo detalhado da presença e da função de todos estes instrumentos (e outros que não citei) na discografia essencial não apenas de Gonzagão e de Jackson, mas também na de outros artistas que tiveram influência decisiva na invenção da Música Fonográfica Nordestina: Manezinho Araújo (cujas emboladas tiveram um papel importantíssimo na criação de uma nordestinidade musical), João do Vale, Marinês, Ary Lobo e outros.

Surge então uma pergunta: será que instrumental é um fator decisivo para definir um gênero de música? 

Muitas vezes, sim. Na criação de um gênero, os instrumentos usados são algo crucial. Depois que o rock-and-roll já existia e tinha perfil próprio, teve gente fazendo rock com violão acústico, com orquestra sinfônica, com o escambau. Mas o rock não seria o que é se tivesse sido criado sem guitarra, baixo e bateria. O mesmo ocorre com os variados gêneros nordestinos que se escondem sob o rótulo “forró”.

Depois que o forró foi formatado, o próprio Luiz Gonzaga usou guitarra e baixo, e com bons resultados, como por exemplo “O fole roncou”. Eram sonoridades novas superpondo-se a um formato já assimilado e a um contexto cultural já definido. Mas quem pegar as gravações originais de Gonzagão e de Jackson irá se surpreender com a variedade de instrumentos utilizados e principalmente com o minimalismo de efeitos. 

Hoje em dia as bandas mais parecem um pelotão de fuzilamento: a gente vê shows de forró com duas ou três sanfonas no palco, um teclado, um monte de vocalistas, guitarras e baixo, bateria, percussão completa, mais uma zabumba... É um quebra-quebra–guabiraba onde mal se consegue perceber a melodia, a sequência harmônica, a letra.

Peguem os discos antigos de Jackson do Pandeiro. Uma zabumba marcando, o pandeiro fornecendo os balanceios, um ganzá ou reco-reco fazendo aquele traço de continuidade que serve como um trilho de trem, um violão bordando os baixos nas cordas de cima, uma sanfona discreta emergindo para os solos... e o cantor. Ninguém hoje em dia faz tanto com tão pouco.






quarta-feira, 16 de abril de 2008

0377) O Teste de Turing da arte (4.6.2004)




(cartum de Chaval)

O matemático Alan Turing, um dos primeiros teóricos da Inteligência Artificial, propôs certa vez um teste para se decidir se uma máquina era “inteligente”. Turing afirmou que bastava fazer um diálogo: numa sala, um examinador, e noutra sala, a máquina examinada. O examinador enviaria as perguntas por escrito, e leria as respostas. Se ele não pudesse distinguir com segurança se aquilo era uma máquina ou uma pessoa, então não haveria nenhum motivo para dizer que a máquina não possuía inteligência. Uma máquina inteligente, portanto, seria uma que desse respostas plausíveis (respostas que soassem tipicamente humanas) a perguntas aleatórias, como “Quanto é 847.262.957.373 mais 363.869.773?” ou “Você gosta de que tipo de pizza?” ou “Capitu traiu Bentinho?” Note-se que a resposta não teria necessariamente que ser correta; bastaria que parecesse ter sido dada por um ser humano.

Esse tipo de teste é mais ou menos o que se coloca a qualquer pessoa diante de uma obra de arte, seja uma pintura, um filme, um poema. Quando perguntamos: “Isto é arte?” estamos perguntando, de certa forma, se existe uma inteligência por trás daquilo, se existe uma personalidade, uma vida humana, ou se aquilo é apenas um agregado competente de clichês, uma reciclagem de formas já existentes, algo que uma máquina bem programada faria sem dificuldade.

Surgem daí, imagino eu, todos aqueles trabalhos satíricos que questionam a arte moderna. Há brincadeiras famosas como a do marchand que prendeu um pincel ao rabo de um burro, enquanto este comia satisfeito, e exibiu o quadro resultante com o título “Por-de-sol no Adriático”. Há os “poemas escritos por computadores”, e assim por diante. Não me esqueço de uma página memorável do cartunista Carlos Estêvão em O Cruzeiro, satirizando os pintores modernos da escola de Jackson Pollock: o cara põe a tela no chão, joga areia, joga tinta, sapateia em cima, anda de bicicleta, espalha milho e galinhas sobre a tela, e no final expõe o resultado.

Essas brincadeiras todas parecem querer convencer-nos de que a Arte chegou a um ponto tal de despersonalização que pode ser produzida por um animal, por uma máquina, por um ritual caótico de interferências às cegas. Não existe um ser humano por trás daquilo, e mesmo quando existe, somos incapazes de percebê-lo como tal. É o problema de quem entra como jurado num concurso de contos onde as obras aparecem sob pseudônimo. Há coisas ali que parecem escritas por uma máquina: tudo certinho, tudo sintaticamente preciso, tudo obedecendo às convenções narrativas internacionais, tudo enquadradinho nas fórmulas da Modernidade... mas a gente não consegue enxergar aquilo como o resultado de uma pessoa pensando. Faltam esquinas, faltam surpresas, falta o ziguezague natural de uma mente verdadeira. O problema da literatura de hoje não são os computadores, são as máquinas de escrever. As máquinas humanas, incapazes de nos proporcionar sustos e revelações.





0376) Os avós do baião (3.6.2004)



("A MPB no Romance Brasileiro", de José Ramos Tinhorão)

Luiz Gonzaga inventou o baião como gênero musical próprio, mas talvez o registro mais antigo do termo, em sua forma antiga de “baiano”, seja o que José Ramos Tinhorão (A Música Popular no Romance Brasileiro, Editora 34, vol. I) localizou no romance Luizinha, de Araripe Júnior, folhetim de jornal de 1872, publicado em livro em 1878: “As violas temperaram-se; os cantores entoaram a louvação de costume ao dono e à dona da casa, e das unhas dos tocadores rompeu um baiano rasgado, capaz de fazer estremecer ao mais bisonho filósofo.”

“Baião”, no entanto, designa não apenas o toque usado nas violas como também as danças praticadas ao som desse toque, e as festas onde isso tudo acontecia. O caráter intercambiável destes termos (ver “O que é forró”, 24.4.2003) faz inclusive com que muitos achem que “baião” vem de “bailão”, um grande baile, grande festa.

O termo reaparece num livro que, curiosamente, foi escrito por volta de 1891 e só foi publicado em 1952: D. Guidinha do Poço, do cearense Oliveira Paiva. Tinhorão o considera “primoroso”, com linguagem “originalíssima”, e comenta: “a cena de um samba de matutos se revela de uma precisão e de um colorido poucas vezes alcançado na literatura brasileira”. Neste livro, o “baião” é descrito, segundo Tinhorão, “como à base de toques de viola e acompanhado do canto em desafio”. Tinhorão transcreve e comenta um longo trecho do livro em que um dos tocadores de viola queixa-se de que a festa está se diversificando, e deixando de ser cantoria: “Neste fordunço, a cantoria se perde quase toda!”

Me parece bem visível, lendo a literatura da época, que a cantoria a desafio e o popular “samba”, ou “batuque” eram naquele tempo coisas misturadas. Os desafios de viola eram muitas vezes intercalados com dança e percussão, com os violeiros adiantando-se para o meio da roda, lançando seus versos para os vivas e aplausos de todos, e recuando para que o batuque recrudescesse e os pares voltassem a dançar. Verso improvisado e batuque dançado se misturam e se alternam dentro de um mesmo folguedo, como aliás foi bem registrado em outros livros da época, notadamente Fatalidades de Dous Jovens, folhetim de 1856 escrito por Teixeira de Sousa, e O Seminarista de Bernardo Guimarães (1869).

Eu diria que foi desses “fordunços” que surgiram, e se separaram, a Cantoria de Viola como a entendemos hoje (espetáculo de versos improvisados ao som da viola, sem nenhum outro canto ou acompanhamento, sem percussão, sem dança) e os atuais forrós. Antes, era tudo misturado. Com o tempo, imagino eu, foram se despregando um do outro, porque havia quem preferisse dançar, e havia quem preferisse dar atenção concentrada ao desafio poético ds repentistas. Quando Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, após seu histórico encontro, decidiram compor canções reunindo a poética regional, a cadência das violas dos repentistas e a levada musical dos forrós à base de fole e percussão, estavam voltando a unir elementos há muitos anos separados.



0375) Os mundos de Colin Wilson (2.6.2004)



Por que há tanto preconceito contra os livros de auto-ajuda? Que mal há em se ler um livro para levantar o astral, encorpar o otimismo, acreditar que-a-vida-vale-a-pena? Sou um sujeito meio kafkeano, meio gótico, e tem uma duziazinha de autores a que sempre recorro quando preciso de motivação metafísica para continuar respirando. Um deles é Colin Wilson, que já publicou dezenas de livros, já traduzidos no Brasil. Alguém irá objetar que seus livros não são de auto-ajuda, mas este é o X da questão. Minha auto-ajuda é de alto nível, rapaziada. Autor de auto-ajuda pra mim tem que ser um filósofo existencialista que escreve romances de mistério e de ficção científica, pesquisa a paranormalidade, e acredita em magia sexual. Ou seja: Colin Wilson.

Seus romances de FC são mais-ou-menos (Parasitas da Mente, Vampiros do Espaço), mas seus romances policiais são excelentes (Ritual nas Trevas, O Matador, A Gaiola de Vidro); talvez os melhores estudos literários de serial-killers. Seus livros sobre ocultismo (O Oculto, Mysteries) são ótimos, e neles Wilson desenvolve uma de suas teorias principais: a de que o ser humano utiliza apenas uma pequena fração de seus poderes mentais, os quais podem ser desenvolvidos através de técnicas específicas. Os grandes artistas e os grandes místicos são pessoas que conseguem produzir em si mesmos, e sustentar, esses estados de exaltação espiritual em que tudo parece fazer sentido. Wilson chama a esse poder mental de “Faculdade X” (um nome pouco imaginativo, reconheço). Diz ele: “Parece nada haver que o homem não consiga fazer quando dirige a mente para o que pretende. Uma vez formada claramente a idéia do que ele deseja, ele parece insuperável. Seu problema nunca foi força de vontade, mas imaginação: saber para onde dirigir sua vontade”.

Wilson ficou famoso muito jovem, ao publicar seu livro fundamental, O Outsider (1956). O outsider é o indivíduo talentoso mas desajustado, possuído por um impulso imperioso de realizar algo, dotado de uma visão privilegiada, mas que entra em choque com sociedades conservadoras ou repressivas. Os outsiders podem virar grandes artistas à beira da loucura (Dostoiévski, Nijinski, Van Gogh), líderes políticos ou espirituais (Lawrence da Arábia, Gurdjieff), visionários (William Blake) e também podem tornar-se criminosos.

Por que os livros desse cara me servem de auto-ajuda? Acho que tudo é uma questão de credibilidade. Acredito em Colin Wilson mais do que em Nietzsche, Aristóteles, Karl Marx, Paulo Coelho, Khalil Gibran. Acho que é porque os gostos dele são parecidos com os meus. É um cara que se interessa pelo Abominável Homem das Neves e pelos crimes de Jack o Estripador; que leu Van Vogt e Lovecraft, além de Sartre e Kafka. Falamos a mesma língua. Se ele acredita na Faculdade X, e já escreveu 100 livros a respeito, por que não posso eu acreditar, e escrever outros tantos? Mãos à obra. Estão vendo como funciona?

0374) Os ancestrais da Cantoria (1.6.2004)





(Severino Feitosa e Santino Luís. Detalhe de foto de Roberto Coura)

Luiz Gonzaga criou o baião adaptando a batida dos cantadores de viola, nos “baiões” (o termo já era usado pelos cantadores antes mesmo de Gonzaga) que eles executam ao acompanhar seus improvisos. É aquele “pondém-pondém” característico que abre as sessões de improviso, fazendo intróitos que geralmente duram alguns minutos, durante os quais, ao som das violas em plena atividade, o burburinho vai decrescendo, as conversas paralelas vão se extinguindo, o silêncio vai aos poucos se impondo na platéia, até que no recinto nada mais se ouve senão o rasqueio cadenciado e o dedilhar das violas, num ritmo hipnótico que ajuda a “baixar o santo” da inspiração e liga em toda potência as turbinas da poesia.

Em seu indispensável estudo A Música Popular no Romance Brasileiro (Editora 34, 3 volumes), José Ramos Tinhorão pesquisa como nossa literatura registrou manifestações musicais em diversas regiões do país. A literatura brasileira sempre teve um veio realista, naturalista, descritivo dos costumes. Isto nem sempre produz boa literatura, mas acaba resultando em preciosos documentos de época, em registros de comportamento, linguagem, cultura.

O que era o Brasil musical no século 19? Era, a julgar por numerosos exemplos de nossa literatura, um país onde fervilhavam folguedos onde se tocavam ritmos variados. Tinhorão cita numerosos testemunhos em que aparecem, como ritmos populares mais típicos, o lundu, o fado e o batuque. Ao mesmo tempo, nos salões mais chiques (de acordo com J. M. Velho da Silva, em Gabriela, 1875) dançava-se o “cotilhão” ao som da rabeca, além de outros ritmos: “O ril, o minuete afandangado, o minuete da corte, a gavota, o solo inglês, o lundu de ´mon roi´ e as valsas figuradas; faziam o subsídio e eram o repertório daquele opulento arquivo coreográfico.”

As festas brasileiras daquele tempo eram uma pororoca entre a cultura das salas, que se queria européia, e a cultura das ruas, que não tinha recurso senão ser mestiça e local. Era no meio desta última que brotava a figura do “cantor e tocador de viola”, que na época recebia o curioso nome (usado por numerosos autores) de “capadócio”, talvez devido à vida ociosa que levava. Assim o descreve J. M. Velho da Silva: “Tocava mais ou menos perfeitamente viola, guitarra e bandolim, era magistral no lundu, no fado, a que chamamos rasgado e nas cantigas correspondentes cantava ao desafio, improvisava e tinha agudezas de espírito e ditos repentinos e de tanto chiste e aplicação que faziam abismar”. Vê-se que o capadócio típico tocava diferentes instrumentos e dava-se a vários tipos de música. Os versos improvisados eram apenas uma faixa do seu repertório. O capadócio, ademais, é um personagem típico das cidades. Gabriela é uma “crônica dos tempos coloniais” ambientada no Rio de Janeiro. Não aborda o cantador nordestino, mas mostra que a vida urbana carioca teve ancestrais desses cantadores, que no entanto não formaram descendência.




0373) Essa palavra saudade (30.5.2004)




(Desenho de Tomi Ungerer)

Dizem ser uma palavra que só existe na língua portuguesa, e, de fato, as palavras próximas que encontramos em outras línguas sempre parecem estar com algo faltando. 

Em inglês temos, só para dar um exemplo, “homesickness” que é saudade, mas uma saudade específica, a saudade de casa ou da terra natal, algo parecido com o “banzo” dos africanos trazidos nos navios negreiros. 

O francês “souvenir” não é saudade, é recordação, e de substantivo abstrato degenerou em substantivo concreto: virou o nome das famosas “lembrancinhas” que compramos nas viagens para dar de presente aos amigos. 

“Nostalgia”, palavra presente em várias línguas, tem um certo parentesco, mas não se aplica, por exemplo, ao que se sente por uma pessoa específica.

Dizem os lexicógrafos que “saudade” é sinônimo de “solidão”, através da forma intermediária “soledade” (há um bom verbete a respeito no “Dictionnaire International de Termes Littéraires”, em: http://www.ditl.info/index.php). 

Afirma-se também que o termo “saúde” (=saúde da alma) também entrou na mistura, o que explicaria a pronúncia proparoxítona “sa-Ú-da-de”, em voga até séculos relativamente recentes.

Meu dicionário de português-francês (ainda é aquele bem baratinho, do velho Fename) assim define saudade: “Desejo ardente de um bem do qual se está privado; pesar devido a uma ausência, doce recordação”. Uma definição que aborda a palavra de diferentes ângulos, todos eles corretos, mas, mais uma vez, o que temos é uma descrição do sentimento, e não uma palavra equivalente. 

Dei agora uma olhada no OneLook, o melhor dicionário de inglês da Internet (http://www.onelook.com/) que nos dá instantaneamente links para todos os principais dicionários da língua. Haveria “saudade”? Ele me jogou para uma página denominada “A Palavra Inútil do Dia”, com termos obscuros ou estrangeirismos. “Saudade” é definida como anseio ou desejo ardente (“yearning or longing”), “mas mais do que isto”.

O saite da “Britannica” fornece: “Anseio, com conotações de melancolia e de pensativa solidão, e uma atmosfera de uma reverência quase mística pela Natureza que permeia a poesia lírica do Brasil e de Portugal.” Novamente uma descrição, não um equivalente. 

Parece que “saudade” é um pequeno triunfo de nosso idioma, uma holo-palavra onde conseguimos comprimir uma quantidade imensa de significado.

Tenho duas definições favoritas. Uma delas é da escritora americana de origem portuguesa Katherine Vaz, em seu romance “Saudade”: 

"Saudade: um anseio tão intenso por pessoas ausentes, ou por lugares ou épocas que se foram, que essa ausência torna-se a presença mais profunda na vida de alguém -- mais do que um sentimento, uma maneira de ser." 

E a outra é a famosa sextilha, atribuída a Pinto do Monteiro: 

Esta palavra saudade 
conheço deste criança. 
Saudade de amor ausente 
não é saudade, é lembrança; 
saudade só é saudade 
quando morre a esperança.


0372) Os narco-corridos (29.5.2004)



Os “corridos” são um tipo de poesia popular mexicana, cultivado largamente desde o século 19; uma poesia narrativa, feita em estrofes de formato fixo, narrando fatos históricos, ou episódios jornalísticos do presente. Existe, por exemplo, um imenso repositório de corridos contando episódios da Revolução Mexicana. Seria o equivalente mexicano aos nossos folhetos de cordel, se bem que com textos mais curtos, de tamanho próximo a uma letra normal de canção. Além disso, o corrido é um poema cantado que às vezes é impresso, enquanto o cordel é um poema impresso que às vezes é cantado. Musicalmente, os corridos são uma mistura de valsa e polca, acompanhada por violões, sanfonas ou por naipes de metais.

O corrido vem passando por uma mutação curiosa nas últimas décadas. Assim como cresceu no cordel o ciclo do cangaço, celebrando o feito dos bandidos sertanejos, o corrido mexicano celebra hoje os feitos dos traficantes de drogas. Coisa semelhante ocorre nas favelas cariocas, onde proliferam os CDs de rap e funk com letras que glorificam a droga, elogiam a bravura dos bandidos, e zombam da polícia. No México, chama-se a esse tipo de canção “narco-corridos”. Los Tigres del Norte são uma banda considerada os Rolling Stones do narco-corrido: vendem milhões de discos, e seus shows, desde a década de 70, chegam a atrair 100 mil pessoas. Compositores importantes são Paulino Vargas (que tocou na banda Los Broncos de Reynosa), Chalino Sánchez (que já trocou tiros com a platéia durante um show, e foi assassinado em Sinaloa), e Mario Quinteros, líder da banda Los Tucanes de Tijuana.

O típico corrido é cantado em quadras ou sextilhas semelhantes às do nosso cordel: “Les cantaré este corrido / a dos hombres que mataron / sin tenerles compasión / vilmente los torturaron / y ya muertos con un carro / por encima les pasaron” (“El crimen de Culiacán”, de José Ignacio Hernández). Algumas histórias são engraçadas, como “Las Monjitas”, sobre duas traficantes que se disfarçam de freiras. O policial examina o leite-em-pó que elas dizem estar levando para os órfãos, e graceja: “Milagre, irmãs!... O leite virou cocaína!” Então: “Una dijo: me llamo Sor Juana / la otra dijo, me llamo Sorpresa! / y se alzaron el hábito a un tiempo / y sacaron unas metralletas / y mataron a los federales / y se fueron en su camioneta.” (“Las Monjitas”, de Francisco Quintero).

Não direi que os antigos cangaceiros e os atuais traficantes de drogas sejam a mesma coisa, mas não importa quem é o bandido, por que motivo se bate, ou que grupo social representa – sempre haverá algum poeta para celebrar seus feitos. Vai rolar muita água por baixo da ponte (e muito sangue por cima do asfalto) até que a crítica literária reconheça que uma coisa assim também é poesia; e que a crítica musical reconheça que isso também é música popular. Paciência, poetas do povo. Se até François Villon foi reabilitado, quem sabe um dia os narco-corridistas terão uma chance.

domingo, 13 de abril de 2008

0371) A conexão Cariri-Manchester (28.5.2004)




(Paul e Jim McCartney, escutando Luiz Gonzaga)

Falei há alguns dias da curiosa conexão comercial através da qual o algodão do Cariri paraibano era transportado para Campina Grande, ensacado, conduzido para o porto de Recife, levado de navio para o porto de Liverpool, de onde seguia para as imensas indústrias têxteis de Manchester, um dos maiores centros produtores de tecidos no mundo. 

Esse fluxo já vinha desde o século 19, mas alcançou seu auge nas décadas de 1930-1940, quando Campina Grande viveu o seu grande momento econômico. Era um tal de construções art-nouveau, era um tal de Cabaré Eldorado com champanhe francês e prostitutas polacas... 

Eu ainda penso que é tudo mentira dos coroas do Calçadão, mas enfim – nem toda a História é escrita pelos vencedores. Os imaginativos de vez em quando redigem um capítulo.

Foi justamente esta fase, por volta da II Guerra Mundial, que chamou a minha atenção. Ora, navios cargueiros que fazem um tráfego dessa natureza não levam apenas um tipo de mercadoria. A existência de uma rota marítima fixa é um poderoso incentivo à circulação de produtos secundários, que pegam carona no comércio principal. 

Não é impossível que (esta é uma das frases preferidas dos historiadores sérios!) uma cuidadosa pesquisa indicasse a presença de numerosos bens culturais (quem sabe discos de 78 rotações, partituras e instrumentos musicais) cruzando o Atlântico rumo à Inglaterra.

Rumo, mais especificamente, a Liverpool, onde um vendedor de algodão chamado Jim McCartney, funcionário da Liverpool Cotton Exchange, dedicava-se nas horas vagas a tocar cançonetas ao piano, lembrando os tempos de solteiro em que tinha uma banda de “ragtime” com o nome de The Masked Melody Makers. Apreciador de diferentes estilos musicais, Jim transferiu esse amor pela música aos seus filhos, especialmente Paul, nascido em 1942.

Também não é impossível que ao longo da infância de Paul McCartney tenham-lhe chegado às mãos, via navios cargueiros do algodão do Cariri, os discos nordestinos que mais faziam sucesso na época, ou seja, os de Luiz Gonzaga, a partir de “Baião” (1946). 

Talvez ainda não seja tarde demais para rastrear e exumar as tortuosas trilhas que fizeram o jovem liverpudliano (e seus companheiros) sentarem durante horas enquanto o velho Jim tocava para eles aqueles discos estranhos, de imensa variedade melódica, e com o uso insistente de uma sétima-menor que lembrava, aos seus ouvidos já roqueiros, a nota dissonante do blues.

Estarei delirando? Nem tanto. A História é um imenso sambaqui de peças de quebra-cabeças enterradas há milhares de anos. Só acha quem procura, meus companheiros. E só procura quem imagina o que é capaz de achar. 

O rock britânico sempre me pareceu devedor do forró nordestino, desde o “Mersey Sound” dos Beatles até fenômenos mais recentes. Já repararam como a voz anasalada de Morissey, dos antigos “Smiths”, parece com a de João Gonçalves cantando “Pescaria em Boqueirão”?






sábado, 12 de abril de 2008

0370) A conexão Campina-Liverpool (27.5.2004)




(Estação Velha de Campina Grande)

Dizem os detratores de Campina Grande que nós, campinagrandenses, somos mentirosos incorrigíveis. É uma calúnia. O que ocorre é que cultivamos o saudável hábito intelectual de ter opiniões próprias a respeito de tudo, o que inclui a criação de versões próprias sobre os fatos.

O mundo visto do alto da Serra da Borborema é meio diferente. Historiadores ortodoxos como Gibbons ou Spengler revisariam muita coisa que escreveram, se ganhassem uma bolsa para trabalhar um ano no campus de Bodocongó.

Uma história que sempre me perseguiu foi a lenda urbana, contada e recontada no Calçadão, no abrigo da Praça da Bandeira, ou nas mesas do Caldo de Peixe, de que durante o “boom” do algodão de Campina Grande, entre as décadas de 1930-1940, Campina e Liverpool eram cidades rivais no comércio algodoeiro, sendo Liverpool o primeiro centro exportador e Campina o segundo.

Isto começou um dia a me deixar com a pulga atrás da orelha. Liverpool, centro exportador de algodão? Onde diabo se plantava tanto algodão na Inglaterra? Todos os rocks e blues que eu conhecia falando em “cotton fields” eram americanos, não ingleses. Tinha alguma coisa de errada nessa história, e não adiantava consultar Gibbons nem Spengler.

Tempos atrás eu estava conversando com Bolívar Vieira, meu antigo companheiro na banda Os Sebomatos. Como bom beatlemaníaco, Bolívar, depois de se formar em Antropologia na UFPb, foi fazer pós-graduação em Liverpool. Interrogado, dissipou minhas dúvidas.

Na verdade, Campina era, sim, um grande centro exportador do algodão do Cariri (algodão forte, de fibra longa, muito valorizado). Esse algodão não saía pela Paraíba, saía pelo porto do Recife, direto para o porto de Liverpool, que era um porto recebedor (e não exportador). De Liverpool era remetido para as indústrias têxteis de Manchester.

O comércio era feito, na verdade, entre o Cariri paraibano (produtor de algodão) e as indústrias de Manchester (produtoras de tecidos), através da cadeia Campina-Recife-Liverpool.

Nos capítulos 5 e 6 do seu livro Guerreiro Togado, Pedro Nunes Filho mostra a origem dessa cadeia comercial:

“Com o recrudescimento da Guerra da Secessão, a produção algodoeira dos Estados Unidos despencou. (...) A Inglaterra foi o único país europeu que se interessou em desenvolver a produção algodoeira no Brasil. O algodão transformou-se num gênero tão indispensável àquele país, como o próprio pão. (...) A Associação de Manchester passou a empenhar-se pela universalização da cultura algodoeira em todos os lugares onde a terra e o clima fossem adequados.”

Liverpool tornou-se o centro alimentador de Manchester após a construção da ferrovia entre as duas cidades em 1830, quando os tecidos representavam mais da metade do valor das exportações britânicas.

A conexão Campina-Liverpool era na verdade uma conexão Cariri-Manchester, que certamente teve profundas repercussões na história do rock britânico, assunto que abordarei em breve.





0369) A importância da Indonésia (26.5.2004)




Conheceram-se num coquetel num espaço cultural. Ela não era bonita nem gostosa, mas tinha um jeito interessante; ele era meio gordo e tinha barba grisalha, mas ela o achou vagamente simpático. Estavam num grupo maior, que se dispersou e ficaram só os dois, prolongando o assunto anterior, sem saber que assunto novo puxar. Ela falou meio por acaso que já tinha ido à Indonésia. Ele se espantou: “É mesmo? Eu também. Passei 15 dias lá. Você gostou?” Ela deu um gole, comentou: “Olha, é quente demais, mas de noite fica ótimo. As pessoas são legais. Taxistas e garçons são muito atenciosos, mas você tem que controlar, se não eles tiram muita liberdade. São muito informais. Gostei da comida, tem uns pratos apimentados que são o máximo. A cidade era linda, principalmente a parte antiga... Os teatros, são muito kitsch, sabia? E os cybercafés são a melhor coisa que há... O que foi? Falei bobagem?” Ele estava de boca aberta. “Não acredito. Você acaba de resumir tintim por tintim um artigo que escrevi descrevendo Jacarta.” Ela riu, meio sem jeito: “Vai ver que eu li teu artigo e não lembrava.” Ele: “Não, eu nunca publiquei. Mas tenho ele impresso, lá em casa. Quer ir dar uma olhada?”

Daqui a trinta anos estarão repetindo para os filhos como se conheceram. Ao contrário do que martela a propaganda, beleza física e apelo sexual não exercem um papel decisivo no deflagrar desses encontros pessoais. Ajudam a botar a bola em jogo, sem dúvida, mas não fazem os gols decisivos. O gol decisivo, muitas vezes, é feito por um aspecto cada vez mais raro: duas pessoas perceberem que pensam sobre as coisas de maneira parecida. Parece até uma contradição dizer isso, porque o que mais se critica em nossa sociedade é a padronização dos gostos, a repetitividade das informações, a ausência de novidade... Mas é justamente este o problema. Cada um de nós sente que a única possibilidade de manter um diálogo é repetir clichês; começa a achar que o único refúgio possível é o lugar-comum, as manchetes do dia, a última moda da mídia. Quanto mais falamos o que realmente achamos das coisas, menos encontramos alguém capaz de acompanhar nossa conversa. Somos ilhas de isolamento unidas por pontes cujo pedágio é o papo-furado.

Não estou dizendo que a saída é ambos gostarem das mesmas coisas – ambos votarem no PT, torcerem pelo Palmeiras, preferirem comida chinesa à japonesa, serem fãs de Charles Aznavour ou dos Paralamas... Não me refiro à uniformidade de gostos, mas a mentes que funcionam de modo parecido. Mentes capazes de olhar para uma coisa e enxergarem essa coisa, intuitivamente, espontaneamente, de maneira parecida. Quando esse flash telepático brilha simultâneo em duas mentes, não passa despercebido. O mundo oscila entre a banalidade geral e a singularidade incomunicável. Quando duas pessoas olham para, sei lá, a Indonésia, e vêem a mesma coisa, isto não passa em branco.

0368) Vai acabar em pizza (25.5.2004)



Imaginemos um país onde a pizza foi proibida. Autoridades sanitárias e policiais se reuniram e chegaram à conclusão de que pizza vicia, faz mal à saúde, incrementa o colesterol, etc. Ademais, as autoridades estão preocupadas com o crescimento irrefreável das pizzarias, envolvidas numa verdadeira guerra pela conquista de novos clientes. Medidas drásticas precisam ser tomadas. E a pizza é colocada fora da lei.

Parece um golpe de morte no comércio de pizza, mas, à medida que passam as semanas e os meses, o Governo começa a perceber uma coisa engraçada. Todo mundo continua comendo pizza. Os fornos das pizzarias trabalham a pleno vapor. Os motoboys da entrega continuam chispando rua-acima-rua-abaixo com suas caixas de papelão fumegantes, atendendo a uma demanda que não só não diminuiu, como não pára de aumentar. As autoridades, preocupadas, coçam a cabeça. Isso não estava nos planos. Imaginavam elas que, uma vez que o Decreto de Proibição da Pizza fosse publicado no “Diário Oficial”, esta enérgica medida iria virar o jogo. Os pizzaiolos de todo o país, amedrontados com uma atitude tão viril da parte das autoridades, abandonariam essa indústria-e-comércio que lhe rende bilhões, vestiriam seus pijaminhas de aposentados, e passariam a se dedicar ao dominó e à pesca de lambari.

Não é o que ocorre. O tráfico de pizza toma conta das cidades. As pizzarias cresceram muito, enricaram. São corporações financiadas por grandes grupos econômicos, e contam inclusive com uma boa representação parlamentar. É impossível fechá-las: iria mexer com interesses poderosos. Por outro lado, a população continua preocupada com o colesterol e tudo o mais. Pede providências. O que faz o Governo? Diz à polícia que prenda os motoboys. Cria-se assim, nesse país imaginário, a situação meio kafkeana da proibição de um gigantesco comércio de pizza que atende a dezenas de milhões de comedores de pizza, e onde os únicos perseguidos são os motoboys que fazem a entrega a domicílio.

Enquanto este absurdo fundamental não fôr corrigido, nada vai mudar. Quando existe demanda e existe oferta, é inútil tentar suprimir os canais intermediários. Se esse comércio específico incomoda por algum motivo o Estado, cabe ao Estado controlar e reduzir a Oferta, e controlar e reduzir a Demanda. Não se controla um comércio jogando-o na clandestinidade, mas trazendo-o à luz do dia, onde pode ser vigiado e publicamente discutido. Clandestinidade é um perigo, ainda mais num país com uma imensa população desqualificada e ociosa, uma polícia sub-paga e desaparelhada, uma justiça que quando não é sobrecarregada é morosa ou venal, e elites acostumadas a pensar que são donas do mundo. De nada adiantam os recordes nos índices de matança dos motoboys. Se não se mexer nas duas pontas do processo, daqui a pouco não se comerá naquele país outra coisa senão pizza.

0367) Baby forever (23.5.2004)



(João Hamilton Tardivo)


Perto de onde eu moro há uma pet-shop. Meu lado armorial se rebela contra essas expressões americanizadas, mas meu lado tropicalista reconhece que é muito mais simples dizer pet-shop do que “loja de animais de estimação”. É curtinho. Parece um acrônimo, uma sigla. Gosto de palavras curtas, monossilábicas, e nisso a língua inglesa é insuperável, com jatos sintéticos de som que encerram idéias complexas: flash, clip, round, quark, blurb... Palavras assim são sólidas, como um pequeno receptáculo onde a significação está bem compacta, bem socadinha. São o contrário de palavras como “disponibilização” ou “anticonstitucionalidade”, crivadas de afixos, frouxas como uma correntinha de clipes.

Mas, voltando à pet-shop: acho que a mesma ternura que sentimos pelas palavras pequenas nos é despertada pelas criaturas pequenas. Toda vez eu paro e fico olhando, nas vitrines, aqueles cachorrinhos rechonchudos, virando bunda-canastra uns por cima dos outros, trocando tapinhas, dando aquelas mordidinhas de mentira que eles dão, ou simplesmente rolando pelo chão, arreganhando as patinhas pro ar e olhando para a gente através do vidro, com aqueles olhos marrons e líquidos, como se dissessem: “Oi! Eu tô tão feliz! E o senhor?”

Eu estaria mais feliz, companheiro, se não soubesse que você, como todos os outros, vai crescer e transformar-se num sabujo desmedido e malcheiroso, com aquele rosnado de maus-bofes. Devia haver um remédio para evitar que cachorrinhos crescessem. Um genérico-de-DNA qualquer que bastasse a gente todo dia pingar umas gotas no leite para garantir que nossos filhotinhos continuariam filhotando pela vida afora, sem risco de virar um desses cérberos ameaçadores que me espreitam todo dia quando ando pela calçada, doidos que o dono se distraia um pentelhésimo de segundo para voarem na minha garganta e fazerem comigo o que Bush está fazendo com o Iraque.

Pensando bem, devia ter um troço desses para os filhos também. A gente botava na mamadeira, e algum tempo depois na Coca-Cola, e eles ficariam a vida inteira com três anos de idade, dando aquelas corridinhas desajeitadas no parque, aquele risinho de rosto inteiro, e dizendo aquelas frasezinhas trôpegas de quem está fazendo suas primeiras incursões pelos jardins da sintaxe e da semântica. Que beleza, hem? Não cresceriam nunca, nunca virariam esses adolescentes rebeldes e peludos, ou esses adultos que acham que são donos do próprio nariz mas ainda nos pedem o dinheiro do táxi. Gotas. Umas poucas gotinhas diárias, ou uma papeleta homeopática antes do café da manhã, e nossos filhos seriam filhotes eternos, para nossa vaidade de pais e nossa futura ternura de avós, que é o que seríamos deles na velhice. Ninguém devia crescer, principalmente as crianças. Eia, cientistas! Precisamos inventar algo para que nossos serezinhos de estimação não venham a se transformar em gente como nós. Não sei se vale a pena.

0366) A Editora Vecchi (22.5.2004)



Alguém deveria criar uma coleção chamada “História das Editoras Brasileiras”. Cada volume contaria a história de uma das numerosas editoras que criaram não só o nosso mercado livreiro, mas também a nossa própria literatura. Nada mais justo. Escreve-se tanto sobre meros escritores! Nada mais justo do que registrar para a História a atividade humilde e subterrânea daquela meia-dúzia de sujeitos idealistas que enfiaram a mão no bolso e custearam a publicação de prosadores desconhecidos e poetas anônimos, fazendo com que hoje sejam adotados nos vestibulares e tenham estátua em praça pública.

Uma editora pela qual tenho uma curiosidade especial é a Editora Vecchi, fonte inesgotável de livros de aventuras na minha infância. Ficava à Rua do Resende, no 144, no Rio de Janeiro, e entre as décadas de 1950-1960 produziu dezenas de títulos que, a julgar pelas reedições, vendiam como água. Seu carro-chefe, pelo menos do meu ponto de vista, era a coleção dos romances policiais de Arsène Lupin, escritos por Maurice Leblanc, livros que lá em casa eram lidos com entusiasmo pela família toda. É possível que o sucesso de Lupin tenha sido suplantado pelo da coleção “Os Maiores Êxitos da Tela”, com as obras originais de filmes de sucesso: O corcunda de Notre Dame com Gina Lollobrigida na capa, Anastácia com Ingrid Bergman e Yul Brynner, Sissi com Horst Bucholz e Romy Schneider, além de A Dama das Camélias, Manon Lescaut e o Joana D´Arc de Jules Michelet.

Curiosamente, aos 10 anos nunca me interessei pela coleção “Os Mais Belos Romances de Amor”, que não obstante trazia títulos de George Sand, Ibsen, Alexandre Dumas. Minhas atenções estavam totalmente voltadas para a coleção “Os Audazes”, de romances de aventuras, onde li pela primeira vez Rafael Sabatini (O Cisne Negro) e Mark Twain (As aventuras de Huck), além das vidas de Robin Hood e Buffalo Bill. As antologias da Vecchi também eram excelentes. Ainda hoje tenho exemplares de Os Mais Belos Contos Policiais, Os Mais Belos Contos Alucinantes e dos dois Os Mais Belos Contos Terroríficos – e admito que meu conceito pessoal de beleza foi muito influenciado por títulos deste jaez.

Uma das melhores coisas da Vecchi eram as suas “artísticas sobrecapas em cores, do pintor Nils”. No melhor estilo das capas dos “pulp magazines” americanos, Nils preenchia a capa inteira com ilustrações em cores berrantes, cheias de movimento, com vários rostos e grupos de pessoas em planos superpostos, num estilo celebrizado depois pelo ilustrador Benício. A capa do livro parecia um poster de filme, e era cortada por frases como “Eletrizante aventura de Arsène Lupin”. A Vecchi marcou um período de transição da literatura de massas no Brasil, quando as novelas de entretenimento para consumo popular começaram a migrar das revistas mensais ou quinzenais, e a invadir o espaço nobre dos livros. É uma história fascinante, que merece e precisa ser contada.

0365) Os piores lugares do mundo (21.5.2004)


(crianças de Serra Leoa)

Alguns anos atrás, a revista Time fêz uma curiosa matéria de capa intitulada “Os piores países do mundo”. Avaliando as condições econômicas, sociais e políticas de diferentes países – sempre, é claro, de acordo com os parâmetros econômicos, sociais e políticos que vigoram na grande imprensa norte-americana – os articulistas indicavam os piores lugares para viver, caso você pertencesse a algum grupo específico. Há países que são totalmente inviáveis até para um cobrador de impostos, para uma árvore, ou para um adorador do sol.

Vamos começar pelo mais óbvio. Qual o pior lugar para ser mulher? A pesquisa (julho de 2001) foi anterior à queda das torres gêmeas e à queda dos talibãs, mas já apontava o Afeganistão como o pior lugar para ser mulher, por motivos que hoje parecem bem claros. O pior lugar para ser criança é Serra Leoa, com seu alto grau de mortalidade infantil. O pior lugar para ser gay é a Arábia Saudita, onde existe até pena de morte para os “rapazes alegres”. Ninguém está a salvo: o pior lugar para ser um homem branco é a Rússia, com seus índices altíssimos de câncer, alcoolismo, suicídio e crime.

Pode parecer lógico que o pior lugar para ser pobre seja Angola, devastada por décadas de guerra civil. Mas ter dinheiro também não é vantagem, pelo menos na Colômbia – o pior país para os ricos, em função de alta criminalidade e freqüentes seqüestros. Ser presidente da República pode ser um bom negócio até no Brasil, mas não o é na Indonésia, onde violentos golpes de Estado são uma sangrenta tradição. E ser funcionário público, o sonho dourado de tantos brasileiros, pode ser bom aqui, mas não na Somália, país tribal onde a idéia de um Estado central é mais do que nebulosa.

Cada profissão tem seu purgatório, ou seu inferno, em algum setor do mapa-múndi. Ser jornalista, segundo a Time” é uma péssima escolha no Irã, cujo conceito de liberdade de expressão é ligeiramente distinto do que vigora em Manhattan. Ser um “net-head”, ou fanático por informática, também não é bom negócio na Coréia do Norte, onde a ditadura vê com imensa desconfiança até mesmo o uso do celular, quanto mais do PC e da Internet. Ser empresário em Cuba também não é uma boa opção; a Time vê essa perspectiva com os mesmos olhos sombrios com que considera o destino de quem é estudante em Burma ou uma minoria étnica nos Bálcãs. Não importa que grupo humano a gente considere, sempre haverá um lugar menos hospitaleiro do que qualquer outro. Bem que poderia haver um saite da ONU ou da UNESCO com um ranking permanente dos países de acordo com algumas centenas de critérios. Serviria para orientar os planos e as preferências de quem quer fazer turismo, procurar emprego ou conseguir bolsas de estudo.

Ah, ia me esquecendo. É péssimo ser uma árvore em Madagascar, ser um cobrador de impostos na China, e ser um adorador do sol na Grã-Bretanha. Acho que nem precisa explicar.

0364) Calvino e a consistência (20.5.2004)



(Ítalo Calvino)

Em 1984 Ítalo Calvino foi convidado para uma série de seis conferências numa universidade norte-americana. Chegou a preparar cinco delas, enumerando as qualidades que a literatura de hoje deveria deixar de herança para os próximos séculos, mas morreu em setembro de 1985, antes de escrever a sexta. 

As cinco primeiras (“Leveza”, “Rapidez”, “Exatidão”, “Visibilidade” e “Multiplicidade”) foram publicadas sob o título “Seis propostas para o próximo milênio”. 

A sexta, cujo tema era “Consistência”, ficou em branco. O que iria dizer Calvino, nunca saberemos; sua viúva Esther Calvino lembra apenas que ele pretendia fazer menção ao conto “Bartleby”, de Herman Melville.

Peço licença, então, para dar como exemplo de consistência literária a obra do próprio Ítalo Calvino, que a Companhia das Letras vem publicando nos últimos anos. 

Conheci-a há cerca de 15 anos, quando encontrei na biblioteca da Cultura Inglesa, no Rio, uma tradução inglesa de Cidades Invisíveis, talvez o seu livro mais famoso, no qual o viajante Marco Polo descreve para o imperador Kublai Khan as cidades surrealistas que encontrou em suas andanças. 

Depois, saíram no Brasil os 3 romances da série Nossos Antepassados: O Visconde Partido ao Meio, O Barão nas Árvores, O Cavaleiro Inexistente, três fábulas fantásticas sobre personagens que só têm existência parcial.

Um dos livros mais importantes de Calvino é Fábulas Italianas, onde ele faz um apanhado dos contos folclóricos da Itália, como se fosse um Sílvio Romero ou Câmara Cascudo, mas reelabora muitos deles, interferindo no material colhido, numa espécie de parceria com a tradição oral. 

Se um viajante numa noite de inverno é o mais vanguardista de seus romances, uma história em ziguezague e cheia de recomeços, onde ele usa o próprio leitor como pretexto para interferir na narrativa. O castelo dos destinos cruzados, por sua vez, teve seu enredo determinado por cartas do Tarot tiradas ao acaso. 

Também são notáveis suas coletâneas de ficção científica (ou “fantasia cosmológica”) As Cosmicômicas e T Zero, com pequenas fábulas sobre a criação do Universo.

O estilo de Calvino combina a erudição e o humor de Umberto Eco com o senso do absurdo e a imaginação imprevisível de Julio Cortázar. 

Existe em seus textos um veio permanente de metalinguagem, de reflexão sobre o ato de escrever, mas acima de tudo ele é um excelente contador de histórias, um inventor de ambientes fantásticos, um criador de personagens excêntricos e divertidos. 

Talvez o saite mais rico sobre sua obra seja o da Emory University, em: http://www.emory.edu/EDUCATION/mfp/cal.html, com numerosas transcrições de seus livros, ensaios críticos, informações biográficas, e links. Outro saite rico em material é “Outside the Town of Malbork”, em http://www.italo-calvino.com/ , especialmente a seção de resenhas sobre sua obra.






0363) Serendipity (19.5.2004)



(Os 3 príncipes de Serendip)

Em 1754, o escritor inglês Horace Walpole criou a palavra “serendipity” para designar “a faculdade de descobrir acidentalmente coisas importantes ou necessárias”. A origem do termo estava num conto persa intitulado “Os três príncipes de Serendip” (era o antigo nome do Sri Lanka), príncipes que volta e meia estavam fazendo descobertas desse tipo. Não existe, ao que eu saiba, um termo em português para ele. Uma tradução aproximada seria “serendipidade”, que não soa bem. “Serendipismo” flui melhor no ouvido, embora o sufixo sugira mais uma prática contínua do que a ocorrência de sucessivos fatos isolados.

Nomes à parte, o fato é que o fenômeno existe, e ocorre muito, por exemplo, na pesquisa científica. Fleming descobriu a penicilina quando “o mofo deu” acidentalmente numa de suas culturas de estafilococos e matou as bactérias. Becquerel descobriu a radioatividade por acaso quando deixou alguns sais de urânio guardados numa gaveta onde havia folhas de papel fotográfico; ao revelar as folhas viu que o urânio estava liberando partículas que deixavam marcas no papel. Os exemplos são incontáveis, e mostram que o talento criador consiste, muitas vezes, em observar e interpretar corretamente um acontecimento inesperado ou uma consequência imprevista de um experimento.

Saber aproveitar as contribuições do Acaso não é mais do que reconhecer que grande parte da nossa vida é determinada por ele. Planejamento existe, e funciona; mas existe e funciona na mesma medida em que um barco, descendo um rio, consegue determinar a própria rota. O Acaso é um fluxo de acontecimentos que nos envolve e que nos arrasta consigo, queiramos ou não. Nosso livre-arbítrio consiste em percebermos em que direção esse fluxo está se movendo, e nos movermos com ele, procurando extrair o máximo de benefício e o mínimo de acidentes. O “rio do Acaso” pode ser uma correnteza tranquila e horizontal, mas pode ser um tumulto de corredeiras por entre pedras e curvas fechadas.

Em seu conto “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”, Jorge Luis Borges fala de um mundo imaginário onde os desejos tornam-se reais. A expectativa de encontrar um objeto faz com que esse objeto passe a existir. Uma pessoa, por exemplo, perde um lápis e começa a procurá-lo. Outra pessoa também fica à procura. A primeira acha o lápis, mas se esquece de avisar isto à segunda; esta continua procurando, e acaba por achar outro lápis, idêntico ao primeiro. Essa curiosa faculdade permite aos povos desse mundo a criação de uma arqueologia imaginária. Operários são convocados para fazer escavações num sítio “arqueológico”, para procurar uma máscara de ouro (inexistente) que é descrita em detalhes. Acabam por encontrar um certo número de máscaras, ligeiramente diferentes umas das outras de acordo com o maior ou menor grau de imaginação das pessoas que as encontraram. O mundo de Tlon é o mundo da criação artística, onde algo que não existia passa a existir apenas porque o procuramos.



0362) Avestruz (18.5.2004)



O avestruz é um bicho injustiçado. Não admira que tenha uma aparência tão deplorável: é consequência de uma queda na auto-estima. Não venham me dizer que o problema é o pescoço, porque o da girafa é muito maior do que o dele. Só que o da girafa é proporcional, e chega a rimar visualmente com as longas pernas, rima esta reforçada pela bela malha de amarelo e negro que dá textura uniforme ao corpo inteiro da girafa. Já o avestruz, coitado, parece o resultado de um daqueles exercícios coletivos surrealistas, em que cada pessoa fazia um pedaço de um desenho, dobrava o papel, passava adiante; o desenho era continuado pelo próximo, sem nenhum deles saber o que o outro tinha desenhado. O resultado sempre saía parecido com um avestruz.

Diz-se que ele engole e digere qualquer coisa, especialmente relógios. Nunca entendi por que razão os relógios seriam menos digeríveis do que outros objetos, mas no universo dos quadrinhos e dos cartuns é sempre um relógio que vemos um avestruz engolir, quando o desenhista pretende ilustrar essa sua voracidade impune. Comparação que nunca é elogiosa. Nunca vemos alguém dizer: “Puxa, queria ter um estômago de avestruz, assim como você...” Não, é sempre o contrário: “Amigo, traga outro tiragosto... Esse aqui está intragável, você tá pensando que eu sou avestruz?”

Outra metáfora impiedosa é a que explora o propalado hábito do avestruz de esconder a cabeça na areia quando se sente em perigo. Enfiando a cabeça num buraco escuro, o avestruz julga que escondeu-se por completo. Reconheço que poucas imagens seriam mais adequadas do que esta para retratar comportamentos individuais e coletivos que vemos a torto e a direito; mas que parece uma marcação contra o pobre do avestruz, parece.

Quem é o avestruz, afinal? A resposta: a maior ave do mundo... e uma ave que não voa. Esta suprema ironia parece uma contradição, mas um instante depois percebemos que não, que é uma consequência inevitável. O avestruz não voa justamente por ser uma ave descomunal. A melhor carne da maioria das aves está no peito, onde ficam os músculos que movem as asas; a melhor carne do avestruz está nas pernas. Coitado.

Começo a achar que o avestruz é o Capitalismo. Em primeiro lugar, engole e digere tudo que aparece pela sua frente, e ninguém me tira do juízo que isto vai avariá-lo por dentro a longo prazo. Em segundo lugar, quanto mais cresce menos voa, quanto maior se torna mais perde a mobilidade. Em terceiro lugar, descobriu nas últimas décadas um excelente buraco onde esconder a cabeça: o mundo virtual das Bolsas eletrônicas. Inventando um dinheiro de mentira, ele esconde a cabeça no monitor virtual, onde os lucros se multiplicam por mágica, e deixa exposto lá fora o seu enorme corpo físico: a atividade produtiva. Um corpo sujeito ao terrorismo, à corrupção e à quebradeira econômica. O avestruz pode mandar no mundo hoje, mas amanhã não diga que eu não avisei.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

0361) Dolores Duran (16.5.2004)




Tito Madi afirmou certa vez que a música de Dolores Duran e a dele próprio eram uma ponte entre a canção romântica de Francisco Alves e a canção da bossa-nova. 

De fato, era tipicamente da bossa-nova a delicadeza verbal e a visualidade das imagens que a gente encontra nas melhores letras de Dolores, como em “Estrada do Sol”, parceria com Tom Jobim: “É de manhã, vem o sol, mas os pingos da chuva que ontem caiu ainda estão a brilhar...” 

A simplicidade com que materializava emoções está destilada nos versos de sua clássica “A noite do meu bem”: “Quero a paz de crianças dormindo, o abandono de flores se abrindo... Quero a alegria de um barco voltando, quero ternura de mãos se encontrando...”

Viveu 29 anos apenas, dedicados à música. Cantora profissional desde cedo, foi “crooner” de orquestra, excursionou pelo mundo. O único CD seu que possuo é da série “2 em 1” e reúne dois elepês intitulados Dolores Duran canta para você dançar, 1 e 2. Dolores canta em inglês (“Only You”), italiano (“Nel blu dipinto di blu”), espanhol (“Que murmuren”), francês (“Viens”). 

Cantou em nordestinense também, pois viveu em plena apoteose do baião, gravando músicas de Luiz Vieira (“Na asa do vento”) e Chico Anysio (“A fia de Chico Brito”).

Sua especialidade, no entanto, eram as músicas de solidão: “Ai, a rua escura, o vento frio... Esta saudade, este vazio... Esta vontade de chorar...” (“Ternura antiga”, parceria com o pianista Ribamar). 

Seu tempo foi um tempo de boates, cigarro, uísque, madrugadas ao pé do piano, boemia pesada num Rio que era feudo masculino. Era baixinha, tinha rosto redondo, feições miúdas. Deve ter experimentado a melancolia que recai sobre as mulheres sem beleza e os homens sem audácia. Escreveu versos que não envelhecerão: “Eu quero qualquer coisa verdadeira: um amor, uma saudade, uma lágrima, um amigo... Ai, a solidão vai acabar comigo” (“Solidão”)

Sem o melodrama bombástico em que tantas vezes se transformam as canções de dor-de-cotovelo, Dolores sabia organizar em palavras nítidas o tumulto mental dos apaixonados: “A gente briga, diz tanta coisa que não quer dizer, briga pensando que não vai sofrer, que não faz mal se tudo terminar...” (“Castigo”). 

Dizem os amigos que, longe de ser a pessoa depressiva que suas músicas sugerem, era alegre, bem-humorada, mas seu romantismo era de um realismo a toda prova: “Eu desconfio que o nosso caso está na hora de acabar: há um adeus em cada gesto, em cada olhar...” (“Fim de caso”).

Nasceu no subúrbio do Irajá, chamava-se Adiléa da Silva Rocha. Morreu em 1959, de parada cardíaca, depois de chegar de uma farra às 7 da manhã. Provavelmente subiu ao céu e, ao bater na porta, continuava com a esperança de que alguém a abrisse dizendo: “Entre, meu bem, por favor... Não deixe o mundo mau lhe levar outra vez. Me abrace, simplesmente: não fale, não lembre, não chore, meu bem.” (“Por causa de você”)





terça-feira, 8 de abril de 2008

0360) Ela, a feiticeira (15.5.2004)



A Editora Record está lançando a coleção “Clássicos da Aventura”, que abre com o romance Ela, de H. Rider Haggard. O livro já teve uma edição brasileira nos anos 1950, nas coleções de livros-de-bolso da “Edições de Ouro” (Tecnoprint), com o título Ela, a feiticeira. É um clássico do romance de aventuras, por um autor relativamente esquecido. Digo “relativamente” porque os romances de Haggard têm sido de vez em quando adaptados para o cinema, com resultados invariavelmente desastrosos. Seu clássico As minas do Rei Salomão, que tem uma primorosa tradução portuguesa de Eça de Queirós, foi filmado de maneira ridícula (com Richard Chamberlain no papel), em tom de comédia, numa tentativa frustrada de imitar o sucesso de Indiana Jones. E seu personagem mais conhecido, Allan Quatermain, apareceu recentemente, vivido por Sean Connery, no caótico A Liga Extraordinária, reunião de super-heróis que banalizou e distorceu uma boa aventura de quadrinhos escrita por Alan Moore.

Ela (She) foi escrito em 1887, e é um dos pontos altos daquela literatura vitoriana em que exploradores se embrenham nos confins da África em busca de aventuras. É o lado deslumbrante da aventura do colonialismo, onde impecáveis cavalheiros britânicos enfrentam perigos, combatem povos selvagens, e descobrem tesouros espantosos, além de vestígios ou remanescentes de antigas civilizações. Ela nos conta a aventura de Horace Holly e seu pupilo Leo Vincey, que no curso de uma dessas aventuras vão parar no reino perdido de Kôr, governado por uma rainha ímortal, de tal beleza que só pode ser vista através de véus. Dotada de poderes sobrenaturais, a rainha Ayesha descobre que Leo Vincey é a reencarnação do seu amado, que havia morrido milhares de anos antes, e cujo regresso ela continuava a esperar.

Diz-se que quando Haggard terminou seu romance, levou o manuscrito ao escritório do seu editor, jogou-o em cima da mesa e disse: “Aí está o livro que fará meu nome ser lembrado no futuro.” Além de ser uma excelente história de aventuras, “Ela” foi interpretado também como um raio-X no inconsciente de sua época. Carl Jung viu em Ayesha a personificação da “anima”, da imagem feminina que mobiliza o desejo e as energias vitais de todos os homens. Ela é irresistível, dominadora; é a personificação “dos humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e o relacionamento com o inconsciente”. Bela, cruel, apaixonada, Ayesha tornou-se um símbolo da feminilidade sem freios e sem censuras. A sociedade que produziu Sherlock Holmes, símbolo do racionalismo frio e impassível, despojado de emoções, produziu também a sua contrapartida. No mundo vitoriano, de moralidade repressora e hipocrisias públicas, os arquétipos emergiam em estado puro, como jorros de lava do inconsciente subterrâneo.

0359) Calvino e a multiplicidade (14.5.2004)


(Algorithmic Art)

A quinta das Seis propostas para o próximo milênio escolhidas por Ítalo Calvino é a multiplicidade, cujo habitat natural ele situa no romance, este gênero literário que, como o Conde Drácula, tantas vezes tenha sua morte proclamada quantas retorna, mais vivo do que nunca, quando menos se espera. Calvino define o romance contemporâneo “como enciclopédia, como método de conhecimento, e principalmente como rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo.” O romance não seria um gênero com uma fórmula nítida, mas um campo de testes e aplicações de fórmulas; não seria um objeto, e sim um atrator de objetos.

O exemplo colhido por Calvino para dar o pontapé inicial em sua idéia de multiplicidade é o do romancista italiano Carlo Emilio Gadda, o qual, para ele, ilustra bem algumas tendências do romance do século 20: 1) a superposição, ou uso simultâneo, de diferentes níveis de linguagem; 2) a consciência do mundo como um “sistema de sistemas” que se influenciam mutuamente; 3) a percepção de cada objeto, evento ou personagem como o “centro de uma rede de relações” cuja descrição pode se estender ao infinito; 4) uma voracidade em absorver diferentes ramos do saber (que ele exemplifica com Flaubert lendo mais de 1.500 livros para escrever Bouvard e Pécuchet).

Calvino vê na literatura de hoje esta busca quixotesca pelo mais-infinito e pelo menos-infinito: “Sempre me fascinou o fato de que Mallarmé, que em seus versos tinha conseguido dar uma incomparável forma cristalina ao nada, tenha dedicado seus últimos anos de vida a conceber um livro absoluto que seria o fim último do universo...” Ele lembra Novalis, que também se propôs escrever um “livro absoluto”, ora visto como uma “enciclopedística”, ora como uma “Bíblia”, e lembra Humboldt, que em seu Kosmos se propôs a produzir uma “descrição do universo físico”. No entanto, ele acha que as tentativas mais bem sucedidas são aquelas (como em James Joyce) onde o livro, em vez de tentar trazer o universo inteiro para dentro de si, abre-se para ele: “o que conta não é o seu encerrar-se numa figura harmoniosa, mas a força centrífuga que dele se liberta, a pluralidade das linguagens como garantia de uma verdade que não seja parcial.”

Ele vê nos contos de Jorge Luís Borges, “textos contidos em poucas páginas”, a melhor concretização dessa literatura múltipla, ponto focal da sensibilidade poética e da consciência científica: “cada texto seu contém um modelo do universo ou de um atributo do universo – o infinito, o inumerável, o tempo, eterno ou compreendido simultaneamente ou cíclico”. Seus contos são equivalentes a “romances extensos ou extensíssimos, nos quais a densidade de concentração se reproduz em cada parte separada”. A multiplicidade, portanto, não está condicionada à extensão do texto, e sim à capacidade do autor de lidar com diferentes categorias de pensamento e diferentes discursos narrativos.

0358) Calvino e a visibilidade (13.5.2004)



Italo Calvino vê dois tipos de processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem (quando lemos um livro e visualizamos suas descrições , p. ex.) e o que parte da imagem para chegar à palavra (quando presenciamos um fato ou vemos um filme, e tentamos descrevê-lo). 

O pensamento verbal, analítico, se realimenta constantemente com a nossa percepção e nossa memória visual. Ser capaz de visualizar o inexistente é uma arte, e ele abre sua conferência sobre “Visibilidade” nas Seis propostas para o próximo milênio citando Dante, poeta universalmente louvado por sua impressionante capacidade de imaginar o fantástico. 

Diz ele (Purgatório, XVII, 25): “Chove dentro da alta fantasia...” A imaginação é um lugar onde as imagens parecem chover, chegar até nós.

A visibilidade a que Calvino se refere é mais a capacidade de fazer ver com a mente do que a de fazer ver com os olhos, mas as duas estão ligadas. Calvino descreve a gênese de muitas de suas obras como uma imagem visual que brota sem explicação: um homem que só tem a metade esquerda do corpo; um homem que vive andando de árvore em árvore, sem tocar o chão; uma armadura vazia, mas que fala e anda. 

O que acontece em seguida é o desenvolvimento de uma voz narrativa adequada a essa imagem, e essa empostação verbal vai se apossando do escritor à medida que ele desenvolve o texto, não restando à imaginação visual senão seguir a reboque das palavras. A imagem visível deflagra o processo criativo, que a partir daí é administrado pela carpintaria verbal.

Calvino é um dos escritores contemporâneos que mais freqüentam e melhor entendem o mundo da Ciência. Sem aceitar a falácia da oposição entre Ciência e Arte, ele afirma sensatamente que a mente do poeta e a do cientista funcionam de maneira muito semelhante, propondo-se problemas e resolvendo-os através de um processo de associação de imagens, que para ele é “o sistema mais rápido de coordenar e escolher entre as formas infinitas do possível e do impossível.” 

É um raciocínio intuitivo e instantâneo muito parecido ao dos jogadores de xadrez (ver “Xadrez sem mestre”, 31.5.2003; “O xadrez e o repente”, 14.9.2003). A fantasia é para ele “uma espécie de máquina eletrônica que leva em conta todas as combinações possíveis e escolhe as que obedecem a um fim. Ou que simplesmente são as mais interessantes, agradáveis ou divertidas”.

O Autor recorda a infância, quando mergulhava nas histórias em quadrinhos dos jornais italianos (Sobrinhos do Capitão, Gato Félix, etc.), antes mesmo de saber ler, inventando os diálogos ou interpretando as situações de acordo com as figuras – processo que retomou depois ao usar o Tarot e a pintura clássica para sugerir o enredo de O castelo dos destinos cruzados

É interessante que a maior parte dos narradores intuitivos prefira usar pontos-de-partida visuais, aleatórios, carregados de conteúdo emocional, e em seguida elaborá-los verbalmente.