Poucos caras são tão interessantes na Música Popular
Brasileira da primeira metade do século 20 quanto Almirante (1908-1980), que
foi cantor, compositor, produtor musical, redator e produtor de programas de
rádio, grande pesquisador. Chamava-se Henrique Foreis Domingues; eu sempre
pronunciava “Forêis” esse sobrenome dele, mas mudei a pronúncia ao ver esse
trecho de uma carta em verso escrita para ele por Aloísio de Oliveira, então
(em 1943) morando nos EUA:
(...)
Se eu soubesse mais cedo
que pra você escrever
tivesse que aparecer
um caso de compaixão
que falasse ao coração
do meu amigo Foreis,
eu já teria arranjado
teria falsificado
uma porção de Josués.
Aloísio fazia parte do Bando da Lua e estava nos EUA
acompanhando Carmen Miranda, uma das grandes amigas e parceiras musicais de
Almirante. Pouca coisa que aconteceu de importante na música radiofônica das
décadas de 1930 em diante não teve Almirante por perto. Foi também grande
parceiro (e depois biógrafo) de Noel Rosa, seu companheiro do famoso “Bando de
Tangarás”.
Em 1930 Almirante compôs (com Homero Dornelas) e gravou o
samba “Na Pavuna” – uma gravação histórica. Ao que se diz, foi a primeira
música gravada no Brasil utilizando as percussões típicas do samba (tamborim,
surdo, pandeiro, cuíca, etc.). Nenhum
produtor musical ou técnico de som da época admitia que esses instrumentos
fizessem acompanhamento – era só orquestra ou instrumentação “delicada”. “Na
Pavuna” foi um sucesso fenomenal, tão importante quanto o primeiro samba
gravado, o “Pelo telefone” de Donga e outros.
“Na Pavuna” (gravação
original):
Outros sucessos gravados por Almirante fazem parte de
qualquer antologia do samba ou da marchinha brasileira:
“O Orvalho Vem Caindo” (Noel
Rosa e Kid Pepe)
“Touradas em Madri” (Braguinha
e Alberto Ribeiro):
“Gavião Calçudo” (Pixinguinha
e Cícero de Almeida):
Sem falar nesta marchinha, que todo torcedor do Treze já
cantou:
“Marcha do Grande
Galo” (Lamartine Babo e Paulo
Barbosa):
A biografia No
tempo de Almirante – uma história do Rádio e da MPB, de Sérgio Cabral, Pai (Ed.
Francisco Alves, 1990) me chegou pelas mãos do parceiro musical Alfredo
Del-Penho. Traz em 400 páginas um imenso material sobre esse personagem bem
humorado, humano, incansável, que era chamado “A Mais Alta Patente do Rádio
Brasileiro”. Almirante surgiu e cresceu com o rádio, e a ele, talvez mais do
que à música, dedicou sua vida inteira, trabalhando em todas as grandes emissoras
da época.
Interatividade é uma palavra que muita gente conheceu
depois da Internet, mas era uma das grandes armas do rádio, que pedia
insistentemente colaborações, críticas, informações, participação de todo tipo
dos seus ouvintes, através do correio. Ouvintes enviavam letras, partituras
musicais, recortes de jornais e revistas, para terem seus nomes citados nos
programas que acompanhavam fielmente.
Almirante reuniu um espantoso arquivo de informações
mandadas do Brasil inteiro para seus programas de variedades, como
“Curiosidades Musicais”. Ainda em vida, ele repassou esse arquivo para o
Governo Estadual, que criou com este material o atual Museu da Imagem e do Som,
do Rio de Janeiro.
Numa carta de 1940 a Celestino Silveira (pág. 192-193 do
livro), Almirante explica essas suas décadas de atividade:
(...) Comecei, então, a fazer o programa sobre todos os assuntos. O
título a tudo permitia. Como a Nacional é uma estação de grande penetração no nosso interior, passei a pedir
colaborações dos ouvintes. Graças a isso, pude mostrar pelo Rádio belezas
musicais do Brasil inteiramente desconhecidas, coisas que ninguém até hoje teve
a iniciativa de fazer com a insistência com que eu faço. Foi assim que consegui
fazer irradiar temas folclóricos que nunca tinham sido mostrados pelo Rádio.
Cito, como exemplo, as cantigas de roda dos estados, pregões do Rio e dos
estados, melodias de trabalho, cantigas e rezas para defuntos, rezas para
chamar chuva, melodias de Natal e de Reis, cantigas de cegos e muitas outras. (...)
Todos os meus colaboradores, desde o que me enviou a cantiga mais valiosa, até
o que me informou o fato mais insignificante, sempre tiveram os seus nomes
citados no programa.
Os programas sobre assuntos como o dos instrumentos exóticos (já feito)
e o de pios de caça e o da música dos ruídos (ambos ainda por acabar) me fazem
perder um tempo inacreditável. Basta que eu diga que o dos instrumentos
rústicos tomou-me o ano inteiro. Um ano a fio reunindo elementos, um ano
convocando instrumentistas curiosos, tocadores de violino de uma corda só, de
flautas e clarinetas de bambu, de folhas de árvore, de lápis nos dentes e os
legítimos berimbaus de cuia.
Dessa curiosidade, aliada à possibilidade de recolher e
de divulgar, surgiu uma das mais interessantes amizades e parcerias de
Almirante – com Luís da Câmara Cascudo, o grande folclorista natalense. À
primeira vista parece uma dupla improvável, o cantor de sambas e o etnólogo
livresco. Mas os dois pertenciam à mesma espécie, a do pesquisador autodidata,
que recolhe informações, estuda, vasculha, pergunta, assedia, junta material,
enche estantes e mais estantes de informações que não interessam a ninguém da
sua época.
Cascudo, em suas raras idas ao Rio, ia ver no auditório
os programas de Almirante. De volta a Natal, mandava-lhe cartas como esta, de
1964 (pág. 338-339):
(...) Desejava, Almirante, dois documentos partidos de suas garras:
a)
Uma
batucada legítima. Música e letra devem ser sem interesse (?), mas estou precisando
de informação limpa e clara, como você sabe dar aos peticionários jagunços do
meu tope e feição provinciana.
b)
Uma
embolada. Música e basta uma amostra dos versos, não todos. Apenas refrão e um
versinho característico.
Esse é o choro... Sim. Uma pergunta que tem engasgado os técnicos e
proprietários do assunto. Para você, o que é que diferencia choro de samba, ou,
como diz o povo, chorinho de sambinha?
Solicito que Vossa Magnificência responda esse peditório, a fim de que
o solicitante não fique com os dedos no ar e a máquina aberta num indeterminado
compasso de espera. No mais, querido Almirante, receba o afeto que se encerra
neste peito não senil.
O rádio o tornou uma figura íntima do Brasil inteiro, uma
referência de cultura popular como a televisão transformou, décadas depois,
figuras como Rolando Boldrin ou Téo Azevedo. Estudiosos como Renato Almeida
escreviam para consultá-lo, como nesta carta de 1940 (pág. 196):
Uma coisa que quero lhe perguntar: o que se chama ‘samba de partido
alto’? E, mais uma pergunta: o choro tem três partes, quais são elas? Desculpe
essas caceteações, mas você é uma das raras pessoas a quem a gente pode se
dirigir no Brasil. E um pedido final: você pode mandar-me aquele sambinha da
Penha, que cantou no programa de ontem? E, com os votos de um felicíssimo 1940,
lhe mando um abraço muito agradecido e afetuoso.
E até um romancista do porte de Érico Verissimo, fazendo
pesquisa para um romance de época, lhe escrevia em 1950 (pág. 258-259):
Tomo a liberdade de pedir-lhe uma série de informações de que estou
necessitado para o segundo volume do meu romance O Tempo e o Vento – “O
Retrato” – e que cobrirá o período entre 1909 e 1945.
a)
Pode
dar-me o nome de algumas músicas de dança mais populares entre 1910 e 1915?
b)
E das
modinhas, lundus, etc. do mesmo período?
c)
Quais
os discos mais populares da famosa Casa Édison, do Rio de Janeiro?
d)
Pode
fornecer-me a letra da canção “Talento e formosura”?
e)
E da
cançoneta cujo estribilho é “Varre varre, minha vassourinha”?
f)
Quando
começou a voga de “O luar do Sertão”?
g)
E a de
“Caraboo”?
Como você compreenderá, essas coisas – danças, canções, etc. – ajudam a
criar atmosfera e a marcar o tempo. Como um pobre pagamento por essa sua
colaboração, estou lhe remetendo um exemplar do primeiro volume de O Tempo e
o Vento – com um abraço do seu fã Érico Verissimo.
Almirante entrou na minha vida quando eu tinha cerca de 8
anos, mas não foi através da música. Foi através do seu programa radiofônico de
histórias de assombração, “Incrível! Fantástico! Extraordinário!” – mas este é
um assunto ao qual voltarei noutro dia.